Mostrar mensagens com a etiqueta arsenii tarkovskii. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta arsenii tarkovskii. Mostrar todas as mensagens

08 julho 2024

arsenii tarkovskii / pela noite

 
 
 
Pela noite concedias-me o favor,
Abriam-se as portas do altar
E a nossa nudez iluminava o escuro
À medida que genuflectia. E ao acordar
Eu diria «Abençoada sejas!»
Sabendo como pretenciosa era a bênção:  
Dormias, os lilases tombavam da mesa
Para tocar-te as pálpebras num universo de azul,
E tu recebias esse sinal sobra as pálpebras
Imóveis, e imóvel estava a tua mão quente.
 
 
arsenii tarkovskii
8 ícones
versão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987




03 novembro 2023

arsenii tarkovskii / vida, vida

 




 

 

1.
 
Não acredito em pressentimentos, nem agoiros
Me assustam. Não evito a calúnia
Ou o veneno. Não há morte sobre a terra.
Todos são imortais. Tudo é imortal. Não há
Que ter medo da morte aos sete nem aos setenta. O real e a luz
Existem, mas não a morte ou a treva.
Viemos hoje à enseada,
E o cardume da imortalidade veio
Quando eu puxava as redes.
 
 
arsenii tarkovskii
8 ícones
versão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987
 



02 janeiro 2017

arsenii tarkovskii / rios palpitantes por dentro do cristal



Rios palpitantes por dentro do cristal,
A montanha assomando na bruma, mar enfurecido,
E tu com a bola de cristal nas mãos,
Sentada num trono enquanto dormes,
-  Deus do céu! -, tu pertences-me.
Acordas para transfigurar
As palavras de todos os dias,
E o teu discorrer transbordante
De poder revela na palavra «tu»
O seu novo sentido: significa «rei».
Simples objectos transfigurados,
Tudo – a bacia, o jarro -, tudo
Uma vez de sentinela entre nós
Se forma límpido, laminar e firme.



arsenii tarkovskii
8 ícones
versão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987




20 outubro 2016

arsenii tarkovskii / o espelho



V
Uma pessoa tem um corpo,
um só, sozinho,
a alma já está farta
de ficar confinada dentro de uma caixa,
com orelhas e olhos
do tamanho de moedas,
feita de pele – só cicatrizes –
cobrindo um esqueleto.
Pela córnea ela voa
para a cúpula do céu,
sobre um raio gélido,
até a uma rodopiante revoada de pássaros,
e ouve pelas paredes
da sua prisão viva
o crepitar de florestas e milharais,
o troar de sete mares.
Uma alma sem corpo é pecaminosa
como um corpo sem camisa:
nenhuma intenção, nem um verso.
Uma charada sem solução:
Quem vai voltar
ao salão do baile,
quando não ninguém para dançar?
E eu sonho com uma alma diferente
vestida com outras roupas:
que se inflama enquanto corre
da tristeza à esperança;
pura e sem sombra,
como fogo, ela percorre a Terra,
deixa lilases sobre a mesa
para que se lembrem dela.
Então continua a correr, criança, não
Te aflijas por causa da pobre Eurídice;
Continua a rodar o teu aro de cobre,
corre com ele mundo fora
enquanto, em notas firmes
de tom alegre e frio,
em resposta a cada passo que deres,
a Terra soar em teus ouvidos.



arsenii tarkovskii
o espelho
andrei tarkovsky
1975




13 outubro 2016

arsenii tarkovskii / o espelho



IV
Um sonho perturba-me com uma
persistência espantosa.
Chama-me de volta
à aldeia do meu avô.
Àquela casa, onde eu nasci
há 40 anos,
em cima da mesa de jantar.
Mas, quando quero entrar nessa casa,
aparece qualquer coisa a impedir-me
tenho este sonho com frequência.
Mas quando vejo as paredes
de madeira e a escuridão da entrada,
sei, mesmo a sonhar,
que não passa de um sonho.
E a minha imensa alegria perde-se
na sombra do esperado despertar.
Às vezes, porém, deixo de sonhar
com a casa e os pinheiros
em torno dessa casa da minha infância.
E tenho saudades.
E espero impaciente
o regresso deste sonho,
onde voltarei a ver-me criança
e a sentir-me feliz de novo,
porque tudo está ainda pela frente
e tudo será ainda possível…


arsenii tarkovskii
o espelho
andrei tarkovsky
1975




06 outubro 2016

arsenii tarkovskii / o espelho


III
Não acredito em pressentimentos
e augúrios.
Não me amedrontam. Não fujo da calúnia.
Nem do veneno.
Não há morte na Terra.
Todos são imortais. Tudo é imortal.
Não há por que ter medo da morte aos 17
ou mesmo aos 70.
Realidade e luz existem,
mas morte e trevas, não.
Agora estamos todos na praia
e eu sou um dos que içam as redes
quando um cardume
de imortalidade nelas entra.
Vive na casa – e a casa continua de pé.
Vou aparecer em qualquer século.
Entrar e fazer uma casa para mim.
É por isso que os teus filhos
estão ao meu lado
e as tuas esposas,
todos sentados a uma mesa,
uma mesa para o avô e o neto.
O futuro é consumado aqui e agora,
e se eu erguer levemente
a minha mão diante de ti,
ficarás com cinco feixes de luz.
Com omoplatas como esteios de madeira
eu ergui todos os dias
que fizeram o passado.
Com uma cadeia de agrimensor,
eu medi o tempo
e viajei através dele como
se viajasse elos Urais.
Escolhi uma era que
estivesse à minha altura.
Rumámos para o sul,
Fizemos a poeira rodopiar na estepe.
Ervaçais cresciam viçosos;
um gafanhoto tocava,
esfregando as pernas, profetizava.
E contou-me, como um monge,
que eu pereceria.
Peguei no meu destino
e amarrei-o à minha sela;
e agora que cheguei ao futuro ficarei
erecto sobre os meus
estribos como um garoto.
Só preciso da imortalidade
para que o meu sangue continue
a fluir de era para era.
Eu prontamente trocaria a vida
Por um lugar seguro e quente
se a agulha veloz da vida
não me puxasse pelo
mundo como uma linha.


arsenii tarkovskii
o espelho
andrei  tarkovsky
1975



29 setembro 2016

arsenii tarkovsky / o espelho



II
Ontem fiquei à tua espera desde manhã.
Eles sabiam que não virias,
eles adivinhavam.
Lembras-te como o dia estava lindo?
Um feriado! Eu não precisava de casaco.
Hoje vieste, e aconteceu
que o dia foi cinzento, sombrio, e chovia, e era algo tarde,
e ramos frios com gotas escorrendo.
As palavras não podem consolar,
nem os lenços enxugar.


arsenii tarkovskii
o espelho
andrei tarkovsky
1975



22 setembro 2016

arsenii tarkovskii / o espelho






I

Todo o instante que passávamos juntos
era uma celebração, como uma epifania,
no mundo inteiro, nós dois sozinhos.
Eras mais audaciosa,
mais leve que a asa de um pássaro,
estonteante como uma vertigem,
corrias escada abaixo
dois degraus de cada vez, e conduzias-me
por entre lilases húmidos,
até ao teu domínio,
no outro lado, para além do espelho.

Quando chegava a noite
eu conseguia a graça,
os portões o altar escancaravam-se,
e a nossa nudez brilhava na escuridão
que caía vagarosa.

E ao despertar
eu dizia “abençoada sejas!”
e sabia que a minha bênção
era impertinente.
Dormias,
os lilases estendiam-se da mesa
para tocar tuas pálpebras
com um universo azul,
e tu recebias o toque
sobre as pálpebras,
elas permaneciam imóveis,
e a tua mão ainda estava quente.

Havia rios vibrantes dentro do cristal,
montanhas assomavam por entre a neblina,
mares espumavam,
e tu seguravas
uma esfera de cristal nas mãos,
sentada num trono ainda adormecida
e – meus Deus do Céu!  – tu  pertencias-me.
Acordavas e transfiguravas
as palavras que as pessoas pronunciam todos os dias,
e a fala enchia-se até transbordar
de poder ressonante,
e a palavra “tu”
descobria o seu novo significado: “Rei”.

Objectos comuns
transfiguravam-se imediatamente,
tudo – o jarro, a bacia – quando,
entre nós como uma sentinela,
era colocada a água, laminar e firme.

Éramos conduzidos, sem saber para onde;
como miragens, diante de nós recuavam
cidades construídas por milagre,
havia hortelã silvestre sob os nossos pés,
pássaros faziam a mesma rota que nós
e no rio peixes nadavam correnteza acima
e o céu desenrolava-se
diante dos nossos olhos.
Enquanto isso o destino
seguia os nossos passos
como um louco de navalha na mão.



arsenii tarkovskii
o espelho
andrei tarkovsky
1975






29 janeiro 2016

arsenii tarkovskii / quando sob os pinheiros



Quando sob os pinheiros, e quando escrava,
minha alma vestia um corpo torturado,
ainda a terra voava célere para mim
e as aves se desvairavam ao som rouco dos cavalos.

Agulhas negras, escamas de pinheiro,
                                                                    as cascas,
e rubro sob os pés jorra
                                           o mirtilo,
e meus furiosos dedos rasgam pálpebras,
meu corpo quer viver. Será que este
                                                                  sou eu?

Serei eu de carbonizada boca procurando
os joelhos das raízes secas, e que a terra
engole como outrora o sangue, e as irmãs
de Faetonte se transfiguram, choram âmbar?



arsenii tarkovskii
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
trad. nina guerra e filipe guerra
assírio & alvim
2001




06 agosto 2015

arsenii tarkovskii / pela noite concedias-me o favor,


Pela noite concedias-me o favor,
Abriam-se as portas do altar
E a nossa nudez iluminava o escuro
À medida que genuflectia. E ao acordar
Eu diria «Abençoada sejas!»
Sabendo como pretensiosa era a bênção:
Dormias, os lilases tombavam da mesa
Para tocar-te as pálpebras num universo de azul,
E tu recebias esse sinal sobre as pálpebras
Imóveis, e imóvel estava a tua mão quente.



arsenii tarkovskii
8 ícones
versão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987



05 junho 2015

arsenii tarkovskii / e agora sonho com



E agora sonho com
Um branco hospital entre as macieiras,
E um lençol branco sob o meu queixo,
E um médico de branco que olha para mim,
E uma branca enfermeira à cabeceira
Batendo as asas. Estavam todos ali.
Quando a mãe veio, acenando –
E partiu….


arsenii tarkovskii
8 ícones
versão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987




02 dezembro 2014

arsenii tarkovskii / sentia-me quente




                                   Sentia-me quente,
Desapertei o colarinho e adormeci,
As trombetas soaram, cavalos a galope, a luz
Batia suave minhas pálpebras, a mãe,
Que voava sobre o caminho, acenando,
Partiu….




arsenii tarkovskii
8 ícones
versão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987





29 julho 2014

arsenii tarkovskii / tive em miúdo uma doença



Tive em miúdo uma doença
E fome e medo. Grossas escamas soltando-se
Dos lábios, que eu humedecia. Nunca esqueci
Esse sabor, salgado e frio.
Mas não parava de andar, andar, andar.
Sentava-me nos degraus do alpendre ao sol,
Caminhava no meu modo leve como se dançasse
A melodia do caçador de ratos, no rio. Sentava-me
Ao sol nos degraus, a tiritar,
E a mãe vinha ali, acenando, parecia
Tão perto, e eu sem poder tocar-lhe:
Movo-me para ela, que sete degraus acima
Acena; movo-me para ela, que acena
Sete degraus acima.


arsenii tarkovskii
8 ícones
versão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987



23 novembro 2010

arsenii tarkovskii / cresce a névoa da vista – esse poder






Cresce a névoa da vista – esse poder,
Duas luras em diamante invisíveis;
Surdo pela tempestade de outrora
E o bafo da casa de meu pai;
Nós cegos numa trança de músculos
Como bois velhos no campo arado;
E na noite não brilham mais
As asas do meu dorso.





arsenii tarkovskii8 íconesversão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987



08 setembro 2009

arsenii tarkovskii / o verão partiu








O Verão partiu
E nunca devia ter vindo.
Será quente o sol
Mas não pode ser só isto.








arsenii tarkovskii
8 ìcones
versão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987






03 agosto 2008

arsenii tarkovskii / 8 ícones






Íamos, sem saber para onde,
Perseguidos por miragens de cidades
Derrotadas construídas no milagre,
Hortelã pimenta aos nossos pés,
As aves acompanhando-nos o voo,
E no rio os peixes à procura da nascente;
O céu, a nós se abrindo.







arsenii tarkovskii
8 ìconesversão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987


05 dezembro 2007

andrei tarkovsky / os primeiros encontros






cada momento passado juntos
era uma celebração, uma Epifania,
nós os dois sozinhos no mundo.
tu, tão audaz, mais leve que uma asa,
descias numa vertigem a escada
a dois e dois, arrastando-me
através de húmidos lilases, aos teus domínios
do outro lado, passando o espelho.









arsenii tarkovskii8 ìcones
versão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987




07 novembro 2006

andrei tarkovsky / porque o destino





Porque o destino seguia-nos o rastro
Como um louco com uma navalha na mão.





Arsenii Tarkovskii
“8 ìcones”
Assírio & Alvim
1987