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20 outubro 2016

arsenii tarkovskii / o espelho



V
Uma pessoa tem um corpo,
um só, sozinho,
a alma já está farta
de ficar confinada dentro de uma caixa,
com orelhas e olhos
do tamanho de moedas,
feita de pele – só cicatrizes –
cobrindo um esqueleto.
Pela córnea ela voa
para a cúpula do céu,
sobre um raio gélido,
até a uma rodopiante revoada de pássaros,
e ouve pelas paredes
da sua prisão viva
o crepitar de florestas e milharais,
o troar de sete mares.
Uma alma sem corpo é pecaminosa
como um corpo sem camisa:
nenhuma intenção, nem um verso.
Uma charada sem solução:
Quem vai voltar
ao salão do baile,
quando não ninguém para dançar?
E eu sonho com uma alma diferente
vestida com outras roupas:
que se inflama enquanto corre
da tristeza à esperança;
pura e sem sombra,
como fogo, ela percorre a Terra,
deixa lilases sobre a mesa
para que se lembrem dela.
Então continua a correr, criança, não
Te aflijas por causa da pobre Eurídice;
Continua a rodar o teu aro de cobre,
corre com ele mundo fora
enquanto, em notas firmes
de tom alegre e frio,
em resposta a cada passo que deres,
a Terra soar em teus ouvidos.



arsenii tarkovskii
o espelho
andrei tarkovsky
1975




13 outubro 2016

arsenii tarkovskii / o espelho



IV
Um sonho perturba-me com uma
persistência espantosa.
Chama-me de volta
à aldeia do meu avô.
Àquela casa, onde eu nasci
há 40 anos,
em cima da mesa de jantar.
Mas, quando quero entrar nessa casa,
aparece qualquer coisa a impedir-me
tenho este sonho com frequência.
Mas quando vejo as paredes
de madeira e a escuridão da entrada,
sei, mesmo a sonhar,
que não passa de um sonho.
E a minha imensa alegria perde-se
na sombra do esperado despertar.
Às vezes, porém, deixo de sonhar
com a casa e os pinheiros
em torno dessa casa da minha infância.
E tenho saudades.
E espero impaciente
o regresso deste sonho,
onde voltarei a ver-me criança
e a sentir-me feliz de novo,
porque tudo está ainda pela frente
e tudo será ainda possível…


arsenii tarkovskii
o espelho
andrei tarkovsky
1975




06 outubro 2016

arsenii tarkovskii / o espelho


III
Não acredito em pressentimentos
e augúrios.
Não me amedrontam. Não fujo da calúnia.
Nem do veneno.
Não há morte na Terra.
Todos são imortais. Tudo é imortal.
Não há por que ter medo da morte aos 17
ou mesmo aos 70.
Realidade e luz existem,
mas morte e trevas, não.
Agora estamos todos na praia
e eu sou um dos que içam as redes
quando um cardume
de imortalidade nelas entra.
Vive na casa – e a casa continua de pé.
Vou aparecer em qualquer século.
Entrar e fazer uma casa para mim.
É por isso que os teus filhos
estão ao meu lado
e as tuas esposas,
todos sentados a uma mesa,
uma mesa para o avô e o neto.
O futuro é consumado aqui e agora,
e se eu erguer levemente
a minha mão diante de ti,
ficarás com cinco feixes de luz.
Com omoplatas como esteios de madeira
eu ergui todos os dias
que fizeram o passado.
Com uma cadeia de agrimensor,
eu medi o tempo
e viajei através dele como
se viajasse elos Urais.
Escolhi uma era que
estivesse à minha altura.
Rumámos para o sul,
Fizemos a poeira rodopiar na estepe.
Ervaçais cresciam viçosos;
um gafanhoto tocava,
esfregando as pernas, profetizava.
E contou-me, como um monge,
que eu pereceria.
Peguei no meu destino
e amarrei-o à minha sela;
e agora que cheguei ao futuro ficarei
erecto sobre os meus
estribos como um garoto.
Só preciso da imortalidade
para que o meu sangue continue
a fluir de era para era.
Eu prontamente trocaria a vida
Por um lugar seguro e quente
se a agulha veloz da vida
não me puxasse pelo
mundo como uma linha.


arsenii tarkovskii
o espelho
andrei  tarkovsky
1975



29 setembro 2016

arsenii tarkovsky / o espelho



II
Ontem fiquei à tua espera desde manhã.
Eles sabiam que não virias,
eles adivinhavam.
Lembras-te como o dia estava lindo?
Um feriado! Eu não precisava de casaco.
Hoje vieste, e aconteceu
que o dia foi cinzento, sombrio, e chovia, e era algo tarde,
e ramos frios com gotas escorrendo.
As palavras não podem consolar,
nem os lenços enxugar.


arsenii tarkovskii
o espelho
andrei tarkovsky
1975



22 setembro 2016

arsenii tarkovskii / o espelho






I

Todo o instante que passávamos juntos
era uma celebração, como uma epifania,
no mundo inteiro, nós dois sozinhos.
Eras mais audaciosa,
mais leve que a asa de um pássaro,
estonteante como uma vertigem,
corrias escada abaixo
dois degraus de cada vez, e conduzias-me
por entre lilases húmidos,
até ao teu domínio,
no outro lado, para além do espelho.

Quando chegava a noite
eu conseguia a graça,
os portões o altar escancaravam-se,
e a nossa nudez brilhava na escuridão
que caía vagarosa.

E ao despertar
eu dizia “abençoada sejas!”
e sabia que a minha bênção
era impertinente.
Dormias,
os lilases estendiam-se da mesa
para tocar tuas pálpebras
com um universo azul,
e tu recebias o toque
sobre as pálpebras,
elas permaneciam imóveis,
e a tua mão ainda estava quente.

Havia rios vibrantes dentro do cristal,
montanhas assomavam por entre a neblina,
mares espumavam,
e tu seguravas
uma esfera de cristal nas mãos,
sentada num trono ainda adormecida
e – meus Deus do Céu!  – tu  pertencias-me.
Acordavas e transfiguravas
as palavras que as pessoas pronunciam todos os dias,
e a fala enchia-se até transbordar
de poder ressonante,
e a palavra “tu”
descobria o seu novo significado: “Rei”.

Objectos comuns
transfiguravam-se imediatamente,
tudo – o jarro, a bacia – quando,
entre nós como uma sentinela,
era colocada a água, laminar e firme.

Éramos conduzidos, sem saber para onde;
como miragens, diante de nós recuavam
cidades construídas por milagre,
havia hortelã silvestre sob os nossos pés,
pássaros faziam a mesma rota que nós
e no rio peixes nadavam correnteza acima
e o céu desenrolava-se
diante dos nossos olhos.
Enquanto isso o destino
seguia os nossos passos
como um louco de navalha na mão.



arsenii tarkovskii
o espelho
andrei tarkovsky
1975