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04 abril 2021

vitorino nemésio / versos a uma cabrinha que eu tive

 
 
Com seu focinho húmido
Esta cabrinha colhe
Qualquer sinal de noite
De que a erva se molhe.
 
Daquela flor pendente
Pra que seu passo apela
Parece que a semente
É o badalinho dela.
 
Sua pelerina escura
Vela-a da noite sentida;
Tem cada pêlo uma gota,
Com passos, poeira, vida.
 
De silêncio, silvas, fome,
Compõe nos úberes cheios
Toda a razão do seu nome
E fruto de seus passeios.
 
Assim já marcha grave
Como os navios entrando,
Pesada dos pensamentos
Da sua vida suave.
 
E enfim, no puro penedo
De seus casquinhos tocado,
Está como o ovo e a ave:
Grande segredo
Equilibrado.
 
 
 
vitorino nemésio
eu, comovido a oeste
antologia poética
asa
2002





12 janeiro 2020

vitorino nemésio / ultra-violeta



Sonho muito.
Tiro pedaços de sangue à noite, pretérito do dia
(Eu é que fico pretérito – preterido: - a noite irá).
Esclareço assim pequenas confusões adiantadas no senso,
Na cinza científica (azoto, silício, etc.),
No preconceito serial caligrafado a néon.
Escrevo torto/morto
E de repente tenho boa letra, vivo e não rimo:
Fugiu do meu sangue o ritmo do tambor auricular,
E, à sístole que fecha, a diástole abre e levanta
A Catedral do Homo Sapiens que abençoa sem mitra
                                                                    [os ignorantes,
O Poeta de sangue, dador de sangue,
Cheio de picadas e rosas como uma pulga e um lençol,
Uma roseira brava ou um avental de menina,
Seja Rosa de Lima ou vá pela mão do Snr. Rosa.

Sangro muito.
Forço a protecção do epitélio
Destruindo o equilíbrio aos glóbulos sem núcleo,
Meras esferas admiráveis, rubras,
Levemente gordurosas,
Pã, pã, reflectindo o silêncio interior nas almofadas
E tingindo as estradas da pintura sagrada do acidente
(Cruz ao morto!).

Sangro muito.
Avermelho o branco deslumbrante até ao infra
E deliro ainda mais sobre o violeta, que queima:
Por isso há quem me chame o Pelicano esvaído,
Mas eu, o pai dos Nomes, chamo-me só Poeta,


vitorino nemésio
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987






04 novembro 2017

vitorino nemésio / ser levado



Tivesse eu sido o que não fui,
Hoje era o mesmo projectado
António, Pedro, Lopo, Rui,
Quatro semblantes num só estado.

Mas serei, ainda que a morte
Me faça amiba, verme, pó:
Agulha a Deus, íntimo norte,
Resto de tudo uma alma só.

De eterno levo o tempo em frente
Como o boi leva o feno visto:
Mas ele é rês, e em mim vai gente:
Levado embora, existo, existo!



vitorino nemésio
o verbo e a morte
antologia poética
asa
2002




25 fevereiro 2017

vitorino nemésio / nada



Eu no meu corpo como o tigre no seu bafo.
O mundo leva iguais a jaula e a casa.
Somos a vida que não é,
Fora não ser a morte.
Nem mesmo nada somos:
Estamos no que fomos
À espera do que importe.

Não se pode sair, e entrar já não:
Nada já deu entrada ao só nascido
Que é esse mesmo Nada:
Pelo que Nada não é nada,
Mas é nada
Em Deus que tudo gera.
Eu na minha alma como o bafo no seu tigre.




vitorino nemésio
o verbo e a morte
antologia poética
asa
2002



10 dezembro 2016

vitorino nemésio / nomeio o mundo



Com medo de o perder nomeio o mundo,
Seus quantos e qualidades, seus objectos,
E assim durmo sonoro no profundo
Poço de astros anónimos e quietos.

Nomeei as coisas e fiquei contente:
Prendi a frase ao texto do universo.
Quem escuta ao meu peito ainda lá sente,
Em cada pausa e pulsação, um verso.




vitorino nemésio
o verbo e a morte
antologia poética
asa
2002



17 novembro 2016

vitorino nemésio / a árvore do silêncio



Se a nossa voz crescesse, onde era a árvore?
Em que pontas, a corola do silêncio?
Coração já cansado, és a raiz:
Uma ave te passe a outro país.

Coisas de terra são palavra.
Semeia o que calou.
Não faz sentido quem lavra
Se o não colhe do que amou.

Assim, sílaba e folha, porque não
Num só ramo levá-las
com a graça e o redondo de uma mão?

(Tu não te calas? Tu não te calas?!)



vitorino nemésio
canto de véspera
antologia poética
asa
2002




11 setembro 2016

vitorino nemésio / o bicho harmonioso



Eu gostava de ter um alto destino de poeta,
Daqueles cuja tristeza agrava os adolescentes
E as raparigas que os lêem quando eles já são tão leves
Que passam a tarde numa estrela,
A força do calor na bica de uma fonte
E a noite no mar ou no risco dos pirilampos.

Assim, gloriosos mas sem porta a que se bata;
Abstractos mas vivos;
Rarefeitos mas com o hálito nebuloso nas narinas dos animais,
Insinuado nos lenços das mulheres belas, cheios de lágrimas,
Misturado às ervas grossas da chuva
E indispensável aos heróis que vão rasgar no céu, enfim, o último sulco!
Ser a vida e não ter já vida ‑ era um destino.

Depois, dar a minha Mãe a glória de me ter tido,
A meu Pai, vendado de terra, um halo da minha luz, e tocar tudo,
Onde eu houvesse estado, de uma sagração natural:
Não digo como as Virgens Aparecidas,
Que tornam imbecis e radiosos os pastorinhos,
Mas como certo orvalho de que me lembro, em pequeno ,
Para lá da janela a luz cortada por chuva,
E uma prima que amei, a rir, molhada, chegando;
Mar ao fundo.

Tudo isto, e vontade de dormir, também em pequenino,
E logo uma mão de mulher pronta a fingir de asa aberta,
E preguiça,
Impressão de morrer do primeiro desgosto de amor
E de ir, vogando, num negrume que afinal é toda a luz que nos fica
Desse amor forrado de desgosto,
Como as estrelas encobertas,

Que, depois de girar a nuvem, mostram como estão altas:
Tudo isto seria aquele poeta que não sou,
Feito graça e memória,
Separado de mim e do meu bafo individualmente podre,
Livre das minhas pretensões e desta noite carcomida
Pelo meu ser voraz que se explora e ilumina.

Mas não. Do canto necessário
Para me diluir em som e no ar que o guardasse
(Como o nervo do degolado alonga em tremor seu pasmo)
Não chego a soltar senão uma vaga nota,
E a noite faz muito bem em vergar uma gruta sem ecos
No  meu buraco vil de bicho harmonioso.

Deixarei, estampada pelo silêncio definitivo,
A ramagem fremente dos meus dedos num pouco de terra,
Estranho fóssil!


vitorino nemésio
o bicho harmonioso
antologia poética
asa
2002




02 setembro 2015

vitorino nemésio / o canário de oiro


Se deixo entrar este canário de oiro
Que me espreita e debica
(Eu que sou ossos a gaiola,
Débil passarinho loiro!
Eu, professor como um menino de escola!)...
Pois sim... Canta. Fica!

E então, para que tudo em mim se honre e execute
(Voz, penas e dejectos
Do canário),
Dou-lhe, seus passeadores, os meus afectos,
As minhas veias duras para grades:
Dentro delas, contrário,
Ele se embeleze e lute.

Ah, que o canário é o meu sangue talvez!

Mas então isto que é?! Que violino engoli?
Que frauta rude aveludou a minha noite?
Em que prato de cobre bateu o nó do açoite?
Tão exacto, meu Deus, só vibrado por ti!

Musical, todo fogo, em mim me vou e expando,
Cada lágrima cai de mim como harmonia:
De quatro em quatro, vão a minha dor jogando
Essas lágrimas vãs no tapete do dia.

Que sérias são estas coisinhas de soar,
Poetas que vos is,
Soldados velhos,
Escolhendo na morte uma farda e um lugar!
Somos aqueles imbecis
Desenvolvidos nos espelhos,
Ai, nos espelhos paralelos
Da sala onde um de nós é sozinho a cantar!
Estamos fumados, amarelos,
De tanto ler e delirar.

Inúteis fôssemos, poetas;
Quero dizer: como as cascas cor de laranja ou alvas de ovo,
Que não são laranja nem ovo:
Ainda se havia de ver
Se as podridões quietas
Não são o sal e o renovo.

Que águia trouxe do céu meu diapasão de ferro?
Que milhafre criou minha carne em seu bico?
A mão qual foi que me rasgou no erro,
Mulher, o coração que te dedico?

Quem era aquele de quem tirei o sangue forte,
Esta pequena música corrente?
A veia mamou-a a morte,
Que engorda à custa da gente!

Quem era aquela mulher de branco
Que tinha os seios fortificados
E o ventre puro de onde arranco
E os altos olhos separados?
A de fogo e de fel, reclusa e encordoada?
A que nunca toquei porque estava selada?

E o anjo bravo, só lume, o outro sujeito,
Em que chama tocou sua asa desabrida?
Que maçarico foi que lhe platinou o peito
E o deixou em ferida?

Perguntaria,
Se esfinges mais houvesse,
Em que sal se tornou a que se deu por Maria
E me prometeu o que eu quisesse?

Ah! Aves de parabólica plumagem!
Anjos de matéria nenhuma e de toda a arrogância,
Mulheres e homens de que sou a última viagem
Começada no mar que me salgou a infância!

Ah, ovo que deixei, bicado e quente,
Vazio de mim, no mar,
E que ainda hoje deve boiar, ardente
Ilha!
E que ainda hoje deve lá estar!

Ah, Sete Espadas, minhas primas!
Estrelas nítidas e diversas!
Piões, pombas, baraças, e até as Sras. Simas
Todas quatro alteando as suas toucas perversas!

Onde? quando? já? outra vez? ou ainda não?

O tempo gasta a minha voz como se fosse o seu pão.

É ele, é ele o que tem tudo escondido,
Ele o que A desviou e A violou no vento,
Ele o que fez de mim o menino perdido
E me deu a navalha com que me fiz violento!

Ele leva para o alto as cordeiras e come-as,
Ele esconde no vale os lobos reduzidos,
Ele pede-nos as coisas emprestadas e some-as,
Ele gasta-nos a voz, os olhos e os ouvidos.

Tempo, ladrão, dá-me conta do fardo:
As saudades práli! As promessas práli!
O que te vale é o escuro: Eu ainda ardo;
Minhas estopas são embebidas por ti.

Ai, a cordeira preta, a do velo maior,
Um palmo de gemido, onde a terias posto?
Tinha os galhinhos entre a lã: é melhor
Desenriçá-Ios do meu desgosto.

Tempo, molde de todos os lugares,
Pegada de quem desaparece,
Esquema de bocejos e de esgares,
Frio de tudo o que arrefece.

Tempo que levas meu Pai morto,
Com catorze cavalos, todos de músculo solar,
E, para o ano, quinze! e crescendo! e ele absorto!
E os cavalos cada vez mais empinados! Morto…
Com que jarrete ou asa o hei-de eu alcançar?
     

vitorino nemésio
o bicho harmonioso
1938



05 janeiro 2011

vitorino nemésio / poema






Uma tarde é tão pouco em nossa mão!
Os seus anéis deixados os pesamos
Com puros olhos; damos
Rigor ao que é recordação.


Depois a noite esculpe
Nossa extensão no sono.
A que erma catedral iremos nós de estátuas?
Sem um deus que nos culpe,
Tais os anéis de outono
Somos imagens fátuas.





vitorino nemésio
edoi lelia doura
antologia das vozes comunicantes
da poesia moderna portuguesa
assírio & alvim
1985