Mostrar mensagens com a etiqueta edmundo de bettencourt. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta edmundo de bettencourt. Mostrar todas as mensagens

03 agosto 2023

edmundo de bettencourt / nebulosa



 

Certo passado audaz sempre revive,
apenas, sob um céu menos escuro.
Quem vive para o futuro,
já o vive!
 
Futuro!
Quando te posso ver, por ti, plena aurora,
condena-te a presença:
és este agora
que possuo
como a abelha suga a rosa…
e sem que o resto me importe.
 
Mas ante sou depois, ver-te ou pensar-te
é ver uma nebulosa
– é como pensar na morte.
 
 
 
edmundo bettencourt
o momento e a legenda (1917-1930)
poemas de edmundo de bettencourt
assírio & alvim
1999
 



 

04 outubro 2020

edmundo de bettencourt / relâmpago

 
 
Um agudo gemido felino
incendeia-lhe os olhos.
E ei-la que de novo se recorta
nua e fosforescente no escuro.
 
Nas trémulas narinas, de prenhez, afilando-se,
zune electricamente
a insatisfação suma semente apenas.
 
Quer mais,
quer outras!
 
Cega do consciente amor que atrai,
tumultuária noite riscada de fulgores,
sonha o inteiro fruto.
 
 
 
 
edmundo bettencourt
poemas surdos 1934-1940
poemas de edmundo de bettencourt
assírio & alvim
1999

 

15 fevereiro 2020

edmundo de bettencourt / noite vazia


Crescimento do silêncio a devorar as nuvens.
Voo incansável e monótono das aves brancas do cérebro.
Florida e ondulada suspensão da mágoa.
As ferocidades são ternuras desmaiando na estepe adivinhada.
O amor abre goelas bocejantes nos côncavos da ausência do espaço.
E a morte espreitando a lentidão
irradia baçamente a sua despedida.

Noite vazia.

As aves brancas do cérebro
inutilmente abatem as suas asas!


edmundo bettencourt
poemas surdos 1934-1940
poemas de edmundo de bettencourt
assírio & alvim
1999






03 outubro 2018

edmundo de bettencourt / dia




Com um peso de cegueira a esmagar-me o cérebro,
Face queimada pelo vento contra
E trôpego dos passos que venci em vão,
Atinjo a hora convencional da noite
Em que não há descanso já
Pois o sono é vazio de si mesmo
E mais que nunca durmo só por fora.

Desperto?
Passou um dia? Um ano?

É cinzenta de chumbo a claridade.
É cinzenta de chumbo a escuridão.

No tempo que não pára
Este minuto Aqui
Quanto espaço nos rouba?




edmundo bettencourt
ligação 1936-1962
poemas de edmundo de bettencourt
assírio & alvim
1999







13 abril 2015

edmundo de bettencourt / o segredo e o mistério



Mistérios a pouco e pouco vão morrendo,
e extenuados de vigílias os anjos
são afinal as sussurrantes sibilinas vozes
que desvendam adivinham segredos
atrás de sentinelas
cuja ferocidade é uma ironia da ternura…

Na palidez da luz
cercando uma velha cabeça,
a quem um sono de embrião já tolda os olhos,
sorriem enigmáticos os sonhos.


  

edmundo bettencourt
edoi lelia doura,
antologia das vozes comunicantes da poesia portuguesa
organizada por h. helder
assírio & alvim
1985




14 junho 2014

edmundo de bettencourt / luar



Apenas o luar chegou,
desfez-se em asas no ar.
E toda a noite levou
a regressar devagar...

Em noites alvas, de lua,
não há nudez com vergonha.
À luz do luar, o barro
é o mármore com que sonha.

À luz do luar, as aves
nocturnas, breve, enlanguescem
e, ao seu crepúsculo da sombra,
mortas de sonho adormecem...

Os silêncios do luar são
aléns de notas agudas,
são gritos paralisados
em rictos de bocas mudas!

O luar rouba ao escuro
o que de dia é segredo.
À luz do luar podemos
ver respirar o arvoredo...

Canção ouvida ao luar
não terá ritmos perdidos
- é som vivendo no olhar
- luz que fica nos ouvidos.

À luz do luar a água
soluça todas as dores,
que à luz do luar a água
tem na cor todas as cores.



edmundo bettencourt
poemas de edmundo bettencourt
1962



09 maio 2014

edmundo de bettencourt / abrigo



Presa da chuva corre a prostituta,
corre presa,
e em frente é a porta aberta do palácio que lhe acena.

Mas à entrada,
o resto duma sereia emerge do escuro,
e um lobo acorda do sono dum tapete,
com uma risonha flor nos dentes,

que a uma claridade subterrânea
o palácio está sem tecto,
suas paredes transparecem,
todo ele é uma poça de água cintilando!

Fora,
uma lira de chuva num deserto
acena à prostituta…



edmundo de bettencourt
poemas surdos
assírio & alvim
1981





07 agosto 2013

edmundo de bettencourt / horas




Gelava o tempo branco do relógio.
Fundiu-se um dia o mostrador
aberto para dentro
num foco por onde as horas negras fugiram enlouqueci-
                                 das!
Lá para longe na faixa rósea da distância
recuaram ante o incessante alarido dos sinos
e logo regressaram
desesperadamente procurando em vão
o maquinismo do relógio.

Via-se o dia fechado de silêncio
num quadrado de luz amarelada
 e de novo preso o pé do jovem
quando ia para sair.


   
edmundo de bettencourt
poemas surdos
assírio & alvim
1981


13 fevereiro 2013

edmundo de bettencourt / ar livre





Enquanto os elefantes pela floresta galopavam
no fumo do seu peso,
perto, lá andava ela nua a cavalgar o antílope,
com uma asa direita outra caída.
E a amazona seguia...
e deixava a boca no sumo das laranjas.
Os olhos verdes no mar.
O corpo em a nuvem das alturas
-  a guardadora
da sempre nova faísca incendiária!





edmundo bettencourt
edoi lelia doura,
antologia das vozes comunicantes da poesia portuguesa
organizada por h. helder
assírio & alvim
1985



07 junho 2012

edmundo de bettencourt / circunstância





Do clarão que é das ruínas,
pelo escuro,
uns pedaços se unem em fio estendido, serpente
um dia já sangue erguendo e triturando o edifício.


Eis um mar que se abisma
que a si próprio se engole
e a si próprio se vomita
com uns destroços de galera.

Ruínas…
no clarão que as ilumina,
aos poucos se dilui um fio com princípio e fim.
Mas, a acabar, ainda resplandece
na chave que abre a porta aos pesadelos!





edmundo de bettencourt
poemas surdos
assírio & alvim
1981



09 abril 2012

edmundo de bettencourt / vigília





No panorama de frio
jazia cristalizado o voo dos gaviões.

Ao seu encontro ia fremente
o respirar da terra quente quase adormecida.

Fluía um riso irónico das dentaduras alvas da neblina
para bocas de ouvidos,
olhos de bocas.

Surgiu então coberto de silêncio
o homem que desde sempre morrera trucidado.

O seu sangue caía enquanto andava.
Das gotas pelo chão se levantaram logo as árvores de fogo
dentro em pouco a floresta incendiária
de todo o frio que o chamava.

E antes que soprasse a ventania
a borboleta colorida foi queimada.

Mas antes que o sol humidamente
repousasse num clarão de olhos fechados,
as cinzas de pirâmides se espalhavam
indo ferir o enorme olho esbugalhado
que de aquém fitava um espaço maior!





edmundo de bettencourt
poemas surdos
assírio & alvim
1981




19 dezembro 2011

edmundo de bettencourt / consagração





Tinham desaparecido
as casas da cidade.
E havia agora uma praça,
donde a população olhava o céu, à espera.

O avião chegou.
Vinha sobre uma nuvem branca,
que irradiava aromas,
a claridade e a música, pelos ares...

O aviador de fora e à frente,
conduzia-o
e andava no ar como no chão!

De repente o avião desceu
vertiginosamente!

Caía...

E embora não se ouvisse explosão,
em baixo
um fumo negro, imenso, com destroços,
e o fogo, começaram subindo
à altura em que o avião pairava antes.

A multidão,
rápida,
como as águas duma enchente,
escoou-se...

Depois mais nada;
isto é:
somente uma infinita escuridão por sobre
a qual a palavra perdão jamais será escrita!





edmundo de bettencourt
poemas surdos
assírio & alvim
1981


10 fevereiro 2011

edmundo de bettencourt / poema de amor





A noite é cheia de vales e baías.
E do meu peito aberto um rio largo de sangue…
Águas densas, de correntes lentas,
serpentes mortas a arrastarem-se.
Águas?
Águas negras, pastosas, alcatrão rolante.
Mas águas puras, verde-claras, atraindo
a margem donde os crocodilos fogem mastigando.
Águas em transparências lucilantes, para cima,
e as estrelas do mar, um polvo e um mefistófeles
ficam no ar sobre ilhéus e lodosos calhaus
que se descobrem.
Plantas brancas e extáticas…
Lágrimas… nuvens… e a cabeça, o perfil,
os olhos, todo o corpo da mulher amada, a prostituta
antes de virgem, que é bela e feia, velha e nova,
e não conhece os filhos!

O fogo envolve essa mulher amada
e é um guindaste erguendo-a e atirando-a,
enquanto dispersas pelo chão brilham mandíbulas
naturalmente à espera…






edmundo de bettencourt
poemas
arcádia
1963