02 setembro 2010

guillevic /discurso







Considerar que um novo corpo
É feito de um continente

Em que a areia e o vento
Pertencem a um século desconhecido.







guillevic
encloches (1971)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003






gil t. sousa / dentro do tempo





24/



dentro do tempo, o tempo

o cheiro do mundo
quando me cantas essa rua antiga


*
já por aqui morri
e, vivo,
regresso ao beijo seguro
e fiel




gil t. sousa
falso lugar
2004





01 setembro 2010

luís miguel nava / sol subterrâneo






O sol é subterrâneo, aquele a que eu
me quero hoje estender é o do meu espírito, é preciso
cavar bem fundo até o fazer surgir.





luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
rebentação
publicações dom quixote
2002




30 agosto 2010

antónio franco alexandre / veneza , travessia














III

porque amanhece, subindo
a casa calcária, súbitas asas espalhadas
no silêncio da rocha: o próprio asco
da água calcinada, a curva líquida de merda
à beira do palazzo,
& o doce ventre onde uma espiga ardente
jorra na piazza o céu dentro dos vidros.
suba a cà foscari! os dentes
ácidos de sementes quebradas, ii manifesto
deitado sobre a cama, junto ao sexo.
desabotoando a camisola verde, dizia «os braços,
& na porta de areia os turistas pacientemente esmagavam
o papel dos chuveiros, dizia, «o torso,
& eu sentia, no quadrado cerrado, o suor
escorrido dos lábios, dizia, «a neve,
algures o vento,
& as lajes molhadas, um re de cinza
contra os olhos,
enquanto as asas se despiam, vagarosas.
porque amanhece. almoço de bataglia
c/ spaghetti.
mrs. stone roendo as implacáveis unhas.
a mão que dobra, lenta, a dobra dos cabelos.
a flor pousa no pássaro. miragem. quase noite.
vago, de hashish, o acre
minuto de falar. dizia, «ninguém,
& o quarto quebrado, as mesas onde o mundo
pousa os dedos, porque
certamente amanhece, dizia, «o medo,
& o ombro levantado ameaçava os dias.
invento, a água,
o testículo de ouro,
a lâmina das folhas, invento, na bicicleta verde,
pousava sobre o pêlo: a flor.
& o quarto quebrado, a franja das falanges
sobre a curva das asas.
a pálida brancura das gavetas.
o crânio do silêncio contra a mesa. in
vento, manhãs, quando se parte, de dentro
das esquinas, dizia, «o sol,
algures o sangue,
&. as mãos espalhavam a pele,
cobriam cuidadosas os ossos, o lençol.
noite fora crescia a bicicleta verde,
de cornos espetados sobre o olhar deserto.
esmagava, no peito, o papel das sementes. dizia, «o ar,
& repartido o trigo, amanhecia.
a casa, escura. a relva incendiada. e por dentro
da luz, a seiva do calcário, miragem. invento.
o sol partido em dois. azul, e quase noite
os degraus encardidos, a cama onde adormece
o moedeiro falso.
colar a boca aos passos, o desejo.
devagar se despindo; dizia «o mar,
algures os astros,
& a boca amealhava o ouro ardido.
invento, o ombro de água,
a ruga onde começa
a brancura das asas, horizontal respira.
a carne mansa, do calor da relva
deitada sobre a cama, junto às lajes.
uma manhã, invento, dentro da chuva, erguido
sobre a cinza, dizia «quase noite,
então amanhecia.
ao fundo, longe, vê: a poeira nos pulsos,
& a mão se dobra, lenta, no travão das rodas.
despindo em torno o ar, dizia, «o dia,
& os aviões roncavam sobre a areia.
subindo o céu de vidro,
a casa desertada, ao longe
a cúpula dos sinos, a névoa de são marcos.
ventre que a noite invade,
madrugador o pão dos embarcados. não invento.
papel de azul, as asas, um fio cortado a vento.
inclinado nos olhos, olhava, inclinado nas unhas,
olhava, dizia «amanhece,
porque amanhecia.





antónio franco Alexandre
(tríptico nómada)
poemas

assírio & Alvim
1996









29 agosto 2010

al berto / carta da árvore triste





[…]

escrevo-te enquanto não amanhece
a morte desperta em mim uma planta carnívora
o mundo parece despedaçar-se pelos desertos do delírio
pântano de lodo entre a pele da noite e a manhã
espaço de penumbras e de incertezas
onde podemos perder tudo e nada desejarmos ainda
por isso aproveito o pouco tempo que me sobeja da noite
este vácuo lento este visco dos espelhos
espessa escuridão agarrada à memória debaixo da pele
começa a asfixia o perigo de ter amado
no mais profundo segredo das noites devorávamo-nos
e um barco tremeluzia pelas cortina do quarto
como um presságio
nos objectos e a roupa atirada para cima das cadeiras
revelam-me a pouco e pouco a desolação em que tenho vivido

é-me desconhecida a vida fora dos sonhos e dos espelhos
tu brincavas com o sangue
a noite cola-se-me aos gestos
enquanto balbucio com dificuldade esta carta
onde gostaria de deixar explicadas coisas
não consigo
o silêncio é o único cúmplice das palavras que mentem
eu sei
comemos a lucidez do asfalto
mudámos de morada sempre que foi preciso recomeçar
vivíamos como nómadas sem nunca nos habituarmos à cidade
mas nada disto chegou para nos entendermos
o tempo transformou-se num relógio de argila
tudo esqueci dessas derivas
e pelo corpo de nossos desencontros diluíram-se os sonhos
a verdade é que nunca teria conseguido escrever-te
sob o peso da luz do dia
a excessiva claridade amputar-me-ia todo o desejo
cegar-me-ia tentaria cicatrizar as feridas reabertas pela noite
sou frágil planta nocturna e triste
o sol ter-me-ia sido fatal
conduzir-me-ia ao entorpecimento da memória
e eu quero lembrar-me do teu rosto enquanto puder
o pior é que me falta tempo
sinto a manhã cada segundo mais próxima
ameaçadora e cruel
a luz arrastar-me-á para uma espécie de inércia inexplicável
o silêncio será definitivo
o sangue adormece nas veias e o desejo de permanecer
arremessar-me-ia para o esquecimento sem regresso
poderia até projectar um eventual regresso antes de partir
tenho a certeza de que parto para sempre
não haverá regresso nenhum
creio que se tornaria mais fácil escrever-te de longe
na deambulação por algum país cujo nome ainda não me ocorre
num país com sabor a tamarindos rodeados de mar
onde flores mirrassem ao entardecer e devagar
a paixão nascesse durante o sono
um país um pouco maior que este quarto
fingiria escrever-te para te enviar a minha nova morada
poderia assim queimar os dias no desejo de receber noticias
inventaria mesmo desculpas plausíveis
greves dos correios inexistentes terríveis epidemias
catástrofes
e na espera duma carta acabaria por me embebedar
beber muito e esperar
esperar
digo tudo isto mas já não te amo

[…]







al berto
o medo
três cartas da memória das índias
(excerto)
assírio & alvim
1997





26 agosto 2010

konstandinos kavafis / a cidade

Dizes: vou partir
Para outras terras, para outros mares
Para uma cidade tão bela
Como esta nunca foi nem pode ser
Esta cidade onde a cada passo se aperta
O nó corredio: coração sepultado na tumba de um corpo,
Coração inútil, gasto, quanto tempo ainda
Será preciso ficar confinado entre as paredes
Das ruelas de um espírito banal?
Para onde quer que olhe
Só vejo as sombras ruínas da minha vida.
Tantos anos vividos, desperdiçados
Tantos anos perdidos.


....................................................................................................



Não existe outra terra, meu amigo, nem outro mar,
Porque a cidade irá atrás de ti; as mesmas ruas
Cruzam sem fim as mesmas ruas; os mesmos
Subúrbios do espírito passam da juventude à velhice,
E tu perderás os teus dentes e os teus cabelos
Dentro da mesma casa. A cidade é uma armadilha.
Só este porto te espera,
E nenhum navio te levará onde não podes.
Ah! então não vês que te desgraçaste neste lugar miserável
E que a tua vida já não vale nada,
Nem que vás procurá-la nos confins da terra?






konstandinos kavafis
justine, lawrence durrell
tradução daniel gonçalves
ulisseia
2007







24 agosto 2010

herberto helder / deixarei os jardins a brilhar…


















Deixarei os jardins a brilhar com seus olhos
detidos : hei-de partir quando as flores chegarem
à sua imagem. Este verão concentrado
em cada espelho. O próprio
movimento o entenebrece. Chamejam os lábios
dos animais. Deixarei as constelações panorâmicas destes dias
internos.



Vou morrer assim, arfando
entre o mar fotográfico
e côncavo
e as paredes com as pérolas afundadas. E a lua desencadeia nas grutas
o sangue que se agrava.



Está cheio de candeias, o verão de onde se parte,
ígneo nessa criança
contemplada. Eu abandono estes jardins
ferozes, o génio
que soprou nos estúdios cavados. É a dor que me leva
aos precipícios de agosto, a mansidão
traz-me às janelas. São únicas as colinas de ar
palpitando fechado no espelho. É a estação dos planetas.
Cada noite é um abismo atómico.



E o leite faz-se tenro durante
os eclipses. Batem em mim as pancadas do pedreiro
que talha no cálcio a rosa congenital.
A carne, sufocam-na os astros profundos nos casulos.
O verão é de azulejo.
É em nós que se encurva o nervo do arco
contra a flecha. Deus ataca-me
na candura. Fica, fria,
esta rede de jardins diante dos incêndios. E uma criança
dá a volta à noite, acesa completamente
pelas mãos.








herberto helder
le poème continu
somme anthologique
traduction de magali montagne & max de carvalho
postface de manuel gusmão
edition bilingue
institute camões / chandeigne
2002






23 agosto 2010

aurora maria amaral / palavras






fervilham as palavras nos dedos,
esqueletos inúteis à procura de um corpo
que só eu lhes posso dar
memórias audíveis nos cantos escuros
vozes que em silêncio reclamam vida eterna
são elas. as palavras malditas e amadas
que nascem silenciosas no meu peito
até gritarem bem alto,
exigindo liberdade!




aurora maria amaral







22 agosto 2010

gil t. sousa / a casa






23/



e a casa fecha-se
como uma flor que se gasta


agora
as palavras sobem-na
como raízes
devoradoras
sobre os olhos
entaipados


há esse amor
um vermelho muito alto
tão alto
e a morrer, a morrer
como sangue ao relento
ou livros abandonados
no chão da memória


no desejo

e há um adeus muito triste
um céu antigo
que tudo cobre sem gritar


ternura
é a ternura meu amor
é esta fogueira medonha que se apaga
no coração silencioso
do tempo frio


a casa, amor
o punho fechado do destino
roendo
o que os olhos largaram na rua
o que as mãos pousaram
no coração
para sempre, para sempre, para sempre








gil t. sousa
falso lugar
2004






20 agosto 2010

josé luis garcía martin / aqueles dias de verão








Estava de verdade
muito só naqueles dias
de verão. Á noite
sentava-se à janela comigo,
desgrenhada, descalça, suada
à espera de um fresco amanhecer
que não chegava nunca.

Chegaste, porém, tu,
arcanjo de trevas, sanguinário e belo,
portador de uma cega sentença.
Com o punho batias
ao portão incapaz de dormir. Aqui
não vive ninguém.
Cavernosa a voz
e com susto a noite, as estrelas
aziagas. É um morto quem vive
nesta casa. Que Deus o ampare,
irmão.

E amparaste-me tu
no fundo de um poço
sem ar e sem ninguém.








josé luís garcia martin
trípticos espanhóis 1º.
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998






19 agosto 2010

andre breton e paul éluard / o juízo original








Não leias. Olha as figuras brancas desenhadas pelos intervalos separando as palavras de várias linhas dos livros e inspira-te nelas.

Dá aos outros a tua mão a guardar.

Não te deites sobre as muralhas.

Retoma a armadura que abandonaste na idade da razão.

Põe a ordem no seu lugar, desarruma as pedras da estrada.

Se sangras e és homem, apaga a última palavra na ardósia.

Forma os teus olhos fechando-os.

Dá aos sonhos que esqueceste o valor daquilo que não conheces.

Conheci três lampistas, cinco guarda-barreiras mulheres, um guarda-barreira homem: e tu?

Não prepares as palavras que gritas.

Habita as casas abandonadas. Não foram habitadas senão por ti.

Faz um leito de afagos aos teus afagos.

Se eles batem à porta, escreve as tuas últimas vontades com a chave.

Rouba o sentido ao som, existem tambores encobertos mesmo nos vestidos claros.

Canta a grande piedade dos monstros. Evoca todas as mulheres de pé sobre o cavalo de Tróia.

Não bebas água.

Como a letra l e a letra m, pelo meio encontrarás a asa e a serpente.

Fala consoante a loucura que te seduziu.

Veste-te com cores cintilantes, não é hábito.

O que encontras só te pertence enquanto a tua mão está estendida.

Mente ao morder o arminho dos teus juízes.

Enforca-te, bravo Crillon, eles te tirarão da forca com o seu Isso depende.

Ata as pernas infiéis.

Deixa a madrugada aumentar a ferrugem dos teus sonhos.

Aprende a esperar, de pés para a frente. É assim que brevemente sairás, bem coberto.

Acende as perspectivas da fadiga.


Vende com que comer, compra com que morrer de fome.

Faz-lhes a surpresa de não confundir o futuro do verbo ter com o passado do verbo ser.

Sê o vidraceiro da pedra engastada no vidro novo.

A quem peça para ver o interior da tua mão, mostra os planetas não descobertos do céu.

Diz à luz, tu calcularás as dimensões encantadoras do insecto-folha.

Para descobrir a nudez daquela que amas, olha as suas mãos. O seu rosto baixou.

Separa o giz do carvão, as papoulas do sangue.

Dá-me o prazer de entrar e sair nas pontas dos pés.

Ponto e vírgula: vês, mesmo na pontuação, como eles são surpreendentes.

Deita-te, levanta-te e agora deita-te.

Até à nova ordem, até à nova ordem monástica, isto é até que as mulheres mais jovens e belas adoptem o decote em cruz: os dois ramos horizontais descobrindo os seios, o pé da cruz nua no baixo-ventre, ligeiramente avermelhado.

Daquilo que tem a cabeça sobre os ombros, abstêm-te.

Regula a tua marcha pela das tempestades.

Nunca mates uma ave da noite.

Olha a flor da campainha: ela não permite ouvir.

Falha a finalidade aparente, quando tiveres que atravessar o teu coração com a flecha.

Opera milagres para os negares.

Tem a idade deste velho corvo que diz: Vinte anos.

Tem cuidado com os carroceiros do bom gosto.

Desenha na poeira os jogos desinteressados do teu tédio.

Não escolhas o tempo de recomeçar.

Sustenta que a tua cabeça, contrariamente às castanhas-da-índia é em absoluto sem peso, uma vez que ainda não caiu.

Doura a pílula com a centelha sem isso negra pela bigorna.

Faz para ti sem franzir as sobrancelhas uma ideia possível das andorinhas.

Escreve o imperecível na areia.

Corrige os teus pais.

Não guardes em ti aquilo que não fira o bom senso.

Imagina que esta mulher está contida em três palavras e que esta colina é um abismo.

Lacra as verdadeiras cartas de amor que escreves com uma hóstia profanada.

Não deixes de dizer ao revólver: Muito lisonjeado mas parece-me tê-lo já encontrado em qualquer lado.

As borboletas do exterior não procuram mais do que alcançar as borboletas do interior; não substituas em ti, se vier a ser quebrado, um único espelho do revérbero.

Amaldiçoa o que é puro, a pureza está amaldiçoada em ti.

Observa a luz nos espelhos dos cegos.

Queres ter ao mesmo tempo o mais pequeno e o mais inquietante livro do mundo? Pede para relerem os selos das tuas cartas de amor e chora; não obstante tudo, tens razão para isso.

Nunca esperes por ti.

Contempla bem estas duas casas: numa estás morto, na outra estás morto.

Pensa em mim que te falo, põe-te no meu lugar para responderes.

Receia passar demasiadamente perto das tapeçarias quando estás só e ouças chamar por ti.

Torce o teu corpo com as tuas próprias mãos por cima dos outros corpos: aceita corajosamente este princípio de higiene.

Come apenas aves em folhas: a árvore animal pode sofrer de Outono.

A tua liberdade com a qual me fazes chorar a rir é a tua liberdade.

Faz fugir o nevoeiro diante de ti mesmo.

Considerando que a natureza mortal das coisas não te confere um poder excepcional de duração, pendura-te pela raiz.

Deixa ao travesseiro idiota o cuidado de te acordar.

Corta as árvores se quiseres, quebra também as pedras mas tem cuidado, tem cuidado com a luz lívida da utilidade.

Só te fitas com um olho, fecha o outro.

Não anules os raios vermelhos do Sol.

Segues pela terceira rua à direita, depois pela primeira à esquerda, chegas a uma praça, voltas junto do café que conheces, segues a primeira rua à esquerda, depois a terceira rua à direita, lanças a tua estátua por terra e ficas.

Sem saber o que irás fazer com ele, apanha o leque que esta mulher deixou cair.

Bate à porta, grita: Entre, e não entres.

Nada tens para fazer antes de morrer.










andre breton e paul éluard
a imaculada concepção
tradução franco de sousa
estúdios cor
1972








17 agosto 2010

luis filipe castro mendes / história pessoal

1.
Entre a morte e a música,
abandonámos finalmente as nossas mãos sobre as águas.
A persistência dos rios serviu-nos de guia
e o silêncio escondeu-nos
de olhares atravessados pelo frio
de uma só palavra.


2.
A recusa
percorrida na terra,
partilhada
por mãos brutais de amor,
a recusa
floresce,
transforma o pássaro na sua própria voz
transfigurada.


3.
A dor
«antiquíssima, libertando»
o archeiro do seu arco,
o tempo do seu peso,
tornando enfim o corpo
pura respiração.


4.
A poesia
recupera restos, tonalidades
desapercebidas,
a intensidade de uma paixão vazia.
A poesia
não tem memória.


5.
Margens
de orvalho
ou a inquietação penosa
de durarem os dias
na sua perda.


6.
A claridade
da flor na chama,
o rumor
por dentro dos frutos,
a palavra «raiz».

O inverno
nas árvores enfim concordes.


7.
O amor, uma história
quase pessoal.






luís filipe castro mendes
poemas
nova renascença
janeiro/março
inverno de 1987








15 agosto 2010

aurora maria amaral / histórias a contar






Acalento o silêncio da noite
como se de um filho se tratasse.
aqui estou,
ébria de solidão e tempo passado,
plena de esperança,
certa da resistência que virá...
acalento memórias e desilusões
sei que outras virão
e alegrias também
e música e magia e luares
mantenho acesa a minha chama
a alma plena de alegria
partirá a dar a mão ao sonho
e muitas historias a contar
era uma vez...
nesse lugar longínquo
onde as dores não existem
e o tempo permanece quedo,
um cavalo alado,
um tesouro antigo,
gnomos que passeiam
nos corpos anunciando
o prazer






aurora maria amaral





12 agosto 2010

harold pinter /poema







Não olhes.
O mundo está prestes a rebentar.

Não olhes.
O mundo está prestes a despejar a sua luz
E a lançar-nos no abismo das suas trevas,
Aquele lugar negro, gordo e sem ar
Onde nós iremos matar ou morrer ou dançar ou chorar
Ou gritar ou gemer ou chiar que nem ratos
A ver se conseguimos de novo um posto de partida.






harold pinter
várias vozes
tradução jorge silva melo e francisco frazão
quasi
2006






11 agosto 2010

09 agosto 2010

ângela marques / circulares





VIII

a casa que sonhei era branca, muito rente ao chão,
e as janelas de madeira amparavam-me os sonhos,
traziam histórias estranhas e levavam-me pelo mundo:
corria de lyon a paris, passava por veneza
para lembrar aquele degrau onde me sentei feliz
e voltava à mesa com a toalha posta de linho
uma malga de leite
um naco de pão
o teu sorriso quente
a festa começava quando as mãos se encontravam
e partiam a descobrir os recantos de nós
a viagem era louca até ao chão
os corpos rolavam envolvidos em água
até que o teu cheiro se vertia pelo soalho

era tudo tão simples na casa que sonhei!



Porto, 5-4-85





ângela marquescircularesnova renascença
abril/junho
primavera de 1985






05 agosto 2010

juan luís panero / arte poética





A comprida, vagarosa língua da morte
lambeu a mão daquele que escreve,
lucidez ou loucura, ninguém sabe;
só restam palavras, palavras roídas.







juan luís panero
antes que chegue a noite
versões de antónio cabrita e teresa noronha
fenda
2000






04 agosto 2010

tim webb e sarah brewer / sexo





Só para ter uma ideia geral do que é o sexo no nosso planeta (e para impressionar os seus amigos nas festas) pense apenas que, a cada segundo que passa, ocorrem em todo o mundo 19 000 orgasmos masculinos. Por outras palavras, é bastante provável que, no mundo inteiro, 6 milhões de seres humanos estejam constantemente ocupados com a apreciação sexual do corpo de outra pessoa. E isto sem contarmos com aqueles que estão a apreciar activamente o próprio corpo.

Se compararmos o número referido com a taxa de natalidade internacional de 4,5 NPS (nados por segundo), a hipótese de os humanos copularem apenas com fins reprodutivos torna-se completamente ridícula. E óbvio que o rácio entre o produto resultante e a unidade de energia gasta não impressionará os economistas, já que, provavelmente, a maior parte deles terá abandonado estes prazeres mundanos há muito tempo.

O sexo apresenta inúmeras vantagens quando comparado com outros passatempos. É mais barato do que o golfe ou o ténis, porque a maior parte do equipamento é gratuito. Exige menos perícia do que, por exemplo, o snooker, apesar de não podermos negar que, em ambos, o desempenho pode ser aperfeiçoado com prática e trabalho árduo. Dá mais satisfação imediata do que coleccionar selos ou ouvir a Rádio Renascença e tem ainda a vantagem de não ser necessário reunir tantos jogadores como para um jogo de futebol.

Tudo isto se deve, provavelmente, ao facto de o sexo ser uma actividade bastante simples, aprazível e normalmente inofensiva, que entrou nos nossos hábitos ao longo dos séculos. Basta apenas consultarmos os documentos históricos mais básicos para chegarmos à conclusão de que todos os grandes líderes (especialmente aqueles que, durante os últimos anos, foram apontados como déspotas incompetentes e tirânicos) apresentaram propostas políticas que incluíam menos sexo para as massas. Na realidade, para se descobrir um ditador dos tempos modernos, o melhor a fazer é saber quais os seus pontos de vista sobre sexo ilícito.

Antigamente a situação era bastante simples. O sexo era uma actividade tão normal como comer, beber ou respirar. O facto de todas as pessoas o fazerem era reconfortante, e não ameaçador, pelo que a discussão pública estava limitada às casernas, aos bares e a outros locais de limitada actividade sexual, onde era fácil contar histórias fantásticas sem precisar de provar nada.

No entanto, a invenção da penicilina, da contracepção eficaz, da Cosmopolitan e do Ford Escort XR 3i alterou esta situação para sempre.

A compreensão das convenções sexuais (e de inspiradas novas maneiras de fazer sexo) tomou-se aceitável e, mais do que isso, um requisito obrigatório para a admissão em determinados círculos sociais.





tim webb & sarah brewer
o especialista instantâneo em sexo
trad. de paulo david silva
gradiva
1996




02 agosto 2010

saint-john perse / estreitos são os navios






fragmentos


I

…Estreitos são os navios, como estreito o nosso tálamo.
Imensa a extensão das águas, mais vasto o nosso império
Nas câmaras cerradas do desejo.

Entra o Verão, que vem do mar. Somente ao mar diremos
Os estrangeiros que fomos nas festas da Cidade, e qual o astro subindo das festas submarinas
Que veio uma noite, sobre o nosso tálamo, farejar o leito do divino.

Em vão a terra próxima nos vai traçando a sua fronteira. Uma única vaga através do mundo, uma única vaga desde Tróia
Até nós vem rolando a sua anca. No muito grande largo, ao largo, longe de nós, outrora este sopro se imprimiu...
E uma noite nas câmaras foi imenso o rumor: a própria morte, nem ao som de búzios, de modo algum aí se faria ouvir!

Amai os navios, ó pares apaixonados; e o mar alto no interior dos quartos!
Uma tarde a terra chora os seus deuses, e o homem dá caça às feras ruivas; as cidades usam-se, as mulheres sonham... Que exista sempre à nossa porta
Esta alvorada imensa chamada mar — escol de largas asas e levantamento armado, amor e mar do mesmo leito, amor e mar no mesmo leito —

e de novo este diálogo dentro dos quartos:






saint-john perse
estreitos são os navios (fragmentos)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003






01 agosto 2010

fernando luís / num café de bolonha







4

De quando em quando há
um precipício, um desatino nas coisas,
encadeamentos nebulosos a que
nos levam palavras, olhares.

Nada altera a substância do mundo,
nem o acreditado sentimento nem,
em irradiado poder,
a inesperada metáfora.

Tudo está no vazio,
nesse estremecimento. Tu, mesmo
tu, levas o teu nome ao impasse,
à perda das coisas nele contidas.

É então, de quando em quando,
que voa a trave do pensamento,
a pedra da alma, o sangue,
o sangue encordoado e brilhante
e acordas impaciente,
parado, e te afundas
na ideia de morte.









fernando luís
num café de bolonha
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990






30 julho 2010

miguel esteves cardoso / rara







Ouço-te
a ser rara
a estrela

no espaço

onde algo
se desprende
e quase tudo
se desmonta

Ouço-te
a virar
os paus

a comer
vestígios
importantes

e estás
em apuros

com as noites

estás em
ponta fina
de margens
dadas

os braços
pelo pó

e os olhos
por força maior

Ouço-te
ao aparecer
da vista

e do tacto
e estás incólume

de mim

das causas
disso

dos porquês
daquilo









miguel esteves cardoso
sema
publicação sazonal de artes e letras
ano I, n.º 2,
verão 1979





28 julho 2010

wallace stevens / a casa estava silenciosa e o mundo estava calmo








A casa estava silenciosa e o mundo estava calmo
O leitor tornava-se no livro; e a noite de verão

Era como a essência consciente do livro.
A casa estava silenciosa e o mundo estava calmo.

As palavras eram pronunciadas como se não houvesse livro,
A não ser o leitor inclinado sobre a página,

A desejar inclinar-se, a desejar extremamente ser
O letrado para quem o seu livro é verdadeiro, para quem

A noite de verão é como uma perfeição de pensamento.
A casa estava silenciosa porque assim tinha de estar.

O silêncio fazia parte do sentido, parte do espírito:
Era a perfeição no seu acesso à página.

E o mundo estava calmo. A verdade num mundo calmo
No qual não há outro sentido, a própria verdade

Está calma, ela própria é verão e noite, ela própria
É o leitor em tardia vigília, inclinado, lendo.








wallace stevens
the house was quiet and the world was calm, transport to summer (1947)
vozes da poesia europeia III

traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003






27 julho 2010

josé miguel silva /ao amanhecer







As lágrimas não sabem
o que dizem, deixam-se cair
em turvos argumentos,
lembram-se de coisas.
Quase nos estragam as bebidas.

Ao fim de três whiskies,
abres uma porta
e tudo se aclara.
As memórias, os cadernos,
os aprestos do negrume,
ficaram para trás.

Agora já conheces
os fósforos que tens,
abriga-os da chuva de dezembro.
Quem sabe que cigarros
estarão à tua espera.






josé miguel silva
canal revista de literatura nr.6
verão de 1999
palha de abrantes








26 julho 2010

paulo barbosa / desemprego







Tal como Rimbaud, as vozes instrutivas exiladas, a abominação a todos os
modos de vida, a inabilidade na luta
Tal como La Boétie, perfilho o “Discurso Sobre a Servidão Voluntária”
Tal como o meu irmão, degrado-me na usura e sou dispensável
Tal como Belmiro, queixo-me da conjuntura e sou perverso
Agora acordo preguiçoso, sem hora nem ponto, conhecendo as mutilações
que nos aguardam, implacáveis
Tal como Ginsberg, fico sentado dias a fio a olhar as rosas na retrete
Colecciono más caras e escrevo frase sobre frase pelo cano abaixo






paulo barbosa
oficina de poesia
revista da palavra e da imagem
nr. 1 série II
junho 2002





21 julho 2010

manuel alegre / coração polar






1

Não sei de que cor são os navios
quando naufragam no meio dos teus braços
sei que há um corpo nunca encontrado algures no mar
e que esse corpo vivo é o teu corpo imaterial
a tua promessa nos mastros de todos os veleiros
a ilha perfumada das tuas pernas
o teu ventre de conchas e corais
a gruta onde me esperas
com teus lábios de espuma e de salsugem
os teus naufrágios
e a grande equação do vento e da viagem
onde o acaso floresce com seus espelhos
seus indícios de rosa e descoberta.
Não sei de que cor é essa linha
onde se cruza a lua e a mastreação
mas sei que em cada rua há uma esquina
uma abertura entre a rotina e a maravilha
há uma hora de fogo para o azul
a hora em que te encontro e não te encontro
há um ângulo ao contrário
uma geometria mágica onde tudo pode ser possível
há um mar imaginário aberto em cada página
não me venham dizer que nunca mais
as rotas nascem do desejo
e eu quero o cruzeiro do sul das tuas mãos
quero o teu nome escrito nas marés
nesta cidade onde no sítio mais absurdo
num sentido proibido ou num semáforo
todos os poentes me dizem quem tu és.


2

Ouvi dizer que há um veleiro que saiu do quadro
é ele que vem talvez na nuvem perigosa
esse veleiro desaparecido que somos todos nós.
Da minha janela vejo-o passar no vento sul
outras vezes sentado olhando o ângulo mágico
sinto a sua presença logarítmica
vem num alexandrino de Cesário Verde
traz a ferragem e a maresia
traz o teu corpo irrepetível
o teu ventre subitamente perpendicular
à recta do horizonte e dos presságios
ou simplesmente a outra margem
o enigma cintilante a florir no cedro em frente
qual é esse país pergunto eu
qual é esse país onde tudo existe e não existe
qual é esse país de onde chega este perfume
este sabor a alga e despedida
esta lágrima só de o pensar e de o sentir.
Não é apenas um lugar físico algures no mapa
é talvez o adjectivo ocidental
o verbo ocidentir
o advérbio ocidentalmente
quem sabe se o substantivo ocidentimento.
Está na palma da mão no nervo no destino
e também no teu corpo aberto ao vento do nordeste
é talvez o teu rosto alegre e triste - esse país
que existe e não
existe.

Eu não sei de que cor são os navios
sei que por vezes
no mais recôndito recanto
no simples agitar de uma cortina
numa corrente de ar
num ritmo
há um brilho súbito de estrela e bússola
uma agulha magnética no pulso
um mar por dentro um mar de dentro um mar
no pensamento.

Há um eu errante e mareante
não mais que um signo
um batimento
um coração polar
algo que tem a cor do gelo e do antárctico
e sabe a sul a medo a tentação
uma irremediável navegação interior
um navio fantasma amor fantástico







manuel alegre
senhora das tempestades
dom quixote
1998




19 julho 2010

adonis / um espelho para o século xx






Um caixão com a cara de um rapaz
Um livro
Escrito no ventre de um corvo
Um animal selvagem escondido numa flor

Um rochedo
A respirar com os pulmões de um lunático:

É isto
É isto o Século Vinte






adonis
a palavra interdita
trad. maria de lurdes guimarães
campo das letras
2001




15 julho 2010

e. e. cummings / pode nem sempre ser assim




[ i ]




pode nem sempre ser assim; e eu digo
que se os teus lábios, que amei, tocarem
os de outro, e os teus dedos fortes e meigos cingirem
o seu coração, como o meu em tempos não muito distantes;
se na face de outro os teus suaves cabelos repousarem
nesse silêncio que eu sei, ou nessas
palavras sublimes e estremecidas que, dizendo demasiado
ficam desamparadamente diante do espírito vozeando;


se assim for, eu digo se assim for –
tu do meu coração, manda-me um recado;
que eu posso ir junto dele, e tomar as suas mãos,
dizendo, Aceita toda a felicidade de mim.
Então hei-de voltar a cara, e ouvir um pássaro
cantar terrivelmente longe nas terras perdidas.







e. e. cummings
xix poemas
trad. jorge fazenda lourenço
assírio & Alvim
1998






14 julho 2010

amalia bautista / xerazade







Levo já quase mil noites com fábulas
e a cabeça dói-me e tenho seca
a língua e esgotados os recursos,
a imaginação. E nem sequer
sei se me salvarei com as mentiras.






amalia bautista
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004







12 julho 2010

gil t. sousa / do teu nome






21/




sobra de todo o silêncio
o raro acorde
do teu nome

a que solidão altíssima
me entregas
quando te deixas morrer assim
no abraço faminto
do tempo?







gil t. sousa
falso lugar
2004






10 julho 2010

r. lino / palavras do imperador hadriano no princípio do sono








há um pouco de vento fustigando a tarde
- mas não mais que um pouco –
e o meu corpo exposto às dunas
cai como ao princípio da noite.
hoje e ontem
escorrem-me pelos olhos
enquanto estendo as mãos
e por elas inscrevo o gosto do tacto pela areia.
disseram-me que o homem
estava escrito no homem
e o tempo dele: linhas cruzadas
ou ilhas ou maior profundidade,
nunca pude ler as tuas mãos
e das linhas apenas percebi
como pelos gestos tu me afirmavas
ou negando
me reafirmavas: dunas pelo vento
e de novo partíamos.
não posso, no entanto, pedir contas
à tua ausência. no simulacro
da coragem, quantas vezes
teremos dito o que negávamos
e a tua boca
mais perto da minha
teria, apesar
a certeza de que ninguém perde ninguém
e que os negócios do estado
apenas confirmam
entre as misérias de uns
e os ousados roubos de outros
como passa sobre essa certeza
o tempo
ao correr das sociedades
e dos impérios
no princípio desta noite.





r. lino
palavras do imperador hadriano
1984
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987







08 julho 2010

jorge reis-sá / danny boy








Vou finalmente fechar o postigo, expirar a entrada mais feliz
do meu coração. É altura, José, de deixar as flores secarem,
o poço ganhar a escuridão que vem ameaçando há anos.


Soltarei de vez os canários e os pardais que prendi
naquela gaiola, junto ao coberto. Da mesma forma
que o farei contigo – segue o teu caminho e deixa que


este pobre velho que a vida baralhou encerre os seus pulmões
e procure noutra casa entradas maiores para o maior coração.








jorge reis-sá
vou para casa
quasi
2008






06 julho 2010

rui lage / les baigneuses




...........................para o Agostinho Santos




nas margens do rio depois de jantar
um vulto equipado de isqueiro
e tabaco de enrolar
passa a pente fino cabelos
que as casas deitam nas águas
com fachadas anoitecidas
e postigos iluminados,
quais do banho saídas
ou das telas de Degas
níveas mulheres de robe
e turbante a fumegar.




rui lage
corvo
quasi
2008




05 julho 2010

jean daive / éden








Uma mulher a medir.

Uma mulher de braços estendidos
transfere comprimentos ou
proporções.

Ela calcula
o sono desse homem que nunca
mais dormirá.

É preciso que se saiba
que tudo começa
pela ampliação
fotográfica
de uma vírgula.



*



Isso
tece um som,

Um afrouxar
repentino,
esse líquido ladeando uma luz
para uma fotografia
em que o cinzento predomina,

Aquilo que vês é composto
de um homem e uma mulher
justamente.

Cadeirão. Sentado a um canto.
Estás sozinho na sala, Fumas
talvez, de queixo nos joelhos.

Entras
outra vez só
num
som da rua.

Vês sombras azuis
correndo
e no visor
a carne de comer.



*



Palavras penduradas
em que o cinzento predomina.

A gasolina pintada a cor-de-rosa
em redor de uma casa
aflui.

O jardim arde.

Uma pedra cai
e tu não és mais pesado.

Perfila-se um fim
como depois da história de uma paixão.

Mas evita-se um sentido cinético do mundo.

E a necessidade reencontrada
do isolamento.

Também
o teu cadeirão
se não articula
com o que o autor quer dizer?

Sorris. Apreendes uma separação.



*



Como é que se antecipa
o gaguejar,
um sistema de coordenadas?

O mundo de um filme
de longuíssima duração
não te subtrai.

Porque
este não é o mundo
que entra nos teus olhos.

É o fim do dia. É o fim das legendas.

A escuridão não tem pó
como a mulher.

Lateralmente
o fumo ondula
semelhante
a uma pulsação.

Mais tarde.

Um cansaço no quarto e na
cama o tempo é não gerado.



(de Narration d’équilibre 6, 7 8, 9)









jean daive
sud-express
poesia francesa de hoje

tradução pedro tamen
relógio d´água
1993







04 julho 2010

armando silva carvalho / a chave inglesa







Era um corpo inteiramente
português.
Transido de ternura
o óleo das suas mãos
protegia-me
o coração.

Não sei que mecanismo
despertava em si
quando chorava,
fazia crescer a relva,
meus dentes indecisos
como crias
corriam e devoravam.

Escreveu-me duas cartas
em cima de um tractor
e nelas descrevia
em frases simples
o modo tortuoso
que me fez traidor.







armando silva carvalho
as escadas não têm degraus nr. 3
livros cotovia
1990






03 julho 2010

yorgos seferis / a água quente…











A água quente lembra-me todas as manhãs
que não tenho mais nada vivo ao pé de mim.












yorgos seferis
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães
e nikos pratisinis
relógio d´água
1993





30 junho 2010

umberto saba / trabalho








Outrora
a minha vida era fácil. A terra
dava-me flores frutos abundantes


Hoje arroteio um terreno seco e duro.
A enxada
bate em pedras, em tojos. Tenho de cavar
fundo, como quem busca um tesouro.







umberto saba
dez poetas italianos contemporâneos em selecção
trad. albano martins
dom quixote
1992








28 junho 2010

martin earl / vinho








Quanto mais ao sul mais chegados à terra
São as culturas, dobradas como velhos japoneses
Sobre as pernas, um braço esticado, a olhar
Para trás por sobre os ombros, para as figuras
Que os outros fazem, todos assim, ou de joelhos
Pelo arame fora, enquanto vai descendo o sol:

Um Deus verde enlaçado, ao qual a mágoa
Segue a toda a parte, como por sistema –
A sua hora um copo de vinho cheio de tempo,
Onda semeada no sangue, sulco aberto
No cérebro, engenho aguçado demais:
Saem-lhe as ideias, em latim, sem rima.

Mas quando, à altura dos olhos, vejo
Jorrar a luz da janela que o atravessa,
Como se viesse de algures dentro
Do copo, ou dos olhos de quem bebe,
Eis que trespassa o coração, vai direita
Ao medo e leva tudo, eu sei que vou ficar.







martin earl
sonnets from the portuguese
trad. de manuel portela
oficina de poesia
revista da palavra e da imagem
nr. 1 série II
junho 2002








24 junho 2010

gil t. sousa / é como acordar





20/



é como acordar.

mas aquilo que flúi quando acordas,
aquilo que te liga os dias donde vens
aos dias a que queres chegar,
aquela abundância de razão e de consciência
que te dá sentido à vida...

esse movimento está ausente
e sentes-te como um fumo.

qualquer coisa te pode esmagar,
qualquer gesto te pode transportar
a um chão que não existe,
a um caminho
que os teus passos não sabem percorrer.

e as tuas mãos ficam húmidas desse delírio.
e os olhos caem-te aflitos no lugar da doçura ausente.

e ficas sem gritar,
ergues-te sobre esse dia que chega
e tudo é maior do que possas ter para te agarrar.
e deixas-te ir, etéreo como um fumo…

podia ser esse o minuto da loucura.
podia ser esse o momento de abraçar a luz
e estalar docemente numa noite qualquer.

como uma fenda de fogo,
como um punhal de lume
que enfim te rasgasse o mundo.







gil t. sousa
falso lugar
2004








23 junho 2010

joaquim cardoso dias / em pé sobre a visão






em pé sobre a visão submersa dos anjos
nada é tão impossível para que não me dissesses
entre um barco ou outro deves lavar
os teus olhos sempre que voltes a olhar o mar





joaquim cardoso dias
o preço das casas
entrada de emergência
gótica
2002





22 junho 2010

antónio manuel azevedo / que mal podem as palavras








1
Não é sempre primeiro
o amor. E quando o trazemos
nos bolsos distraídos das mãos
é o voo da manhã.

Não é tudo. Imagina
A devastação.



2
uma alegria profunda nos protege
quero dizer obscura, quero dizer
silenciosa. Sim, sabemos tantos modos
de imitar o fim da pouca vida
que sobra sempre a matéria dos desertos
para errar os amores novos. Que mal
podem as palavras saber de ti.



3
É uma voz sem socorro. Sem lugares
para adormecer, sem destino
estreito destino para o que dizer te possa
do que passa mesmo quando não sinto
pisa mesmo quando não respiro
e fecho os olhos para te ver melhor.
Às palavras nada mais trarei.



4
Esta morte não podemos dormir.
De te perder ou de ter perdido
não estou hoje mais seguro.
Na praça as sombras dos homens
São tão pequenas para o meio-dia.
Crescem com a tarde para o fim
confundem-se de noite para repartir
o coração.



5
Desde que o mês é este
Oitavo mês mau para partidas
repito que não mais posso ter
em mim que não seja

tu. Desde que é esta a condição
a do frágil tempo de uma espera
mau para palavras repito
as que procuram saber

mais valeria o repouso
na imagem do amor
a que preserva. Ninguém
vai perguntar o que falta
sempre falta.



6
Da pedra de cada dia formar o rosto
pequeno e com brilho, o perfil sereno
da manhã, o olhar claro à tarde furtando
a cor sobre o longe do mar onde fica
o coração e anoitece.

À medida deste trabalho esperava ou pedia
a magia menor dos versos, a graça de voltar
sobre ser pobre em lembranças de ouro ou rosa
ao lugar em setembro da tua sombra e não achar
razão.



7
Dia seis, de reis
nesta república quase nada passa
o ano sim, o mês, a ocasião
o vento pela praça e por uma sorte estreita
ao abrigo da aragem de janeiro
passa um cão
e um dia assim como outro dia
sem epifania.



8
Da noite se diz
que antiquíssima
igual em tudo é
aos novos navegantes
em tudo propícia
às migrações lentas
do olhar.



9
Antes queriam uma estátua
que lhes dissesse os futuros
da sorte em pequeno mapa achar
certeza. A este fim
observaram os sonhos, seguiram a linha
da melhor mão, o sul das aves.

Cansaram em paciência as ruas
a vontade. De coração nenhum
partiam, dormiam de bruços
pelas horas da luz.

Instante não havia que se pudesse dizer
propício, era pela hora miúda
a pressa das palavras sobre o imóvel mundo
enganos repartindo. O lugar de tudo
ao norte, iam mandá-lo
à memória.



10
Também nós tivemos nas mãos
os cabelos mortos das nossas rainhas.
Os olhos iam para os lados do poente um dia
e outro dia. Víamos a sombra pousar
no ombro descarnado o último dedo
de luz abandonar a resistência da montanha.

Sentada junto às águas do teu rio
não viste nada, a escutar a chuva
da minha noite não posso ver-te.
Posso mostrar-te as memórias
que aprendi, a minha ilha de Circe.







antónio manuel azevedo
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990






20 junho 2010

josé saramago / tem o relógio horas tão vazias







Tem o relógio horas tão vazias que, breves mesmo, como de todas é costume dizermos, excepto aquelas a que estão destinados os episódios de significação extensa, (…), são tão vazias, essas, que os ponteiros parece que infinitamente se arrastam, não passa a manhã, não se vai embora a tarde, a noite não acaba.




josé saramago
o ano da morte de ricardo reis

16 junho 2010

andre breton e paul éluard / a ideia do devir



A perfectibilidade humana, pensámos muito nesta espécie de caça ao urso nas montanhas que se sapam a si mesmas antes de se tornarem montanhas que se sapam a si mesmas e são todavia montanhas. O urso em questão não desdenha de aparecer entre duas derrocadas ou duas elevações de buracos e outros acidentes do terreno. Nos seus olhos há vida e morte para dar e receber, o que não acontece sem urna certa consciência da estupidez. Vá! ao muro acabou-se. Mas aquilo que amava... Apontar! Talvez convenha cantar! Fogo! E dizer que talvez ainda me esperem!

A pequena volta que consiste em dar ao desgosto a forma de uma esperança terrível e desamparada não se faz sem o abandono de alguns cuidados de segunda ordem. A dor física nunca foi para nós senão a quinta roda do coche da carne. A confiança nunca se fez luz senão através dos postigos da observação. Prestar justiça nunca foi mais do que o primeiro termo e o menor de uma solução que pode cobrir os homens com o manto transparente da igualdade. Logo, nunca se está bastante seguro da vida para não se estimar dos outros.

Botão do uniforme que não escolhi, botão que tem em relevo a pequena granada do meu espírito, bem me diz que sou substituível. O céu era uma pena para o meu chapéu, a terra urna espora. O que me mata contudo é aquilo que merecia ter sido. Antes que se tivesse regulado os meus passos sobre a bússola a navegação muito longa prosseguia para me permitir produzir-me, eu, pequeno ciclone, muito orgulhoso. O navio sobe a escada em caracol da tromba. Lá no alto dos degraus está surpreendido por ter de saltar no ar para não mais se mirar sendo no futuro de um modo claro e franco. Estas luvas de repulsa que tenho calçadas não foram cosidas para mim. E depois também que mãos são estas que tenho estendidas e para as quais as minhas mãos se estendem, que olhares são estes que lancei para tudo, estes olhares que tudo abandonava, que recordações são estas que mantêm aquilo que será?

Sem ascendência, sem descendência. A caixa das cartas está vazia na extremidade do jardim ou melhor, não: ela atola-se na areia, está magnífica. Cada grão de areia é um aglomerado de parcelas provenientes da usura daquilo que só se usou para voltar a servir. O ponto que não alcancei está tão afastado como o ponto que alcancei. Foi daqui que parti, deste grão de areia mais pequeno que um dedal, ou deste cubo de praias indefinidamente a escorregar na mesa das repetições?

Se fosse para recomeçar, se fosse para recomeçar... A roseira de espuma do mar está de pé a meu lado neste retrato poeticamente definitivo. Ainda me comparo com aquele que não poderia ser. Este ancião olha ao longe os seus bisnetos atirarem uns aos outros bolas de neve através da sua barba, esta criança sonha que morreu, a segurança do dia seguinte faz a ponte sobre o abismo que o separa da véspera. Toda a autoridade com a qual me reduzo na minha fraqueza amalgama as construções dos homens e do tempo.

Certamente, é bem menos que a sorna se se considerar a diferença. Eis os pequenos remédios de hoje nos quais só entram ainda as flores do campo, eis sobre um coxim a última invenção toda emaranhada nos seus fios, eis o lindo ruído do esmagar de cascalho com os pés que se faz numa festa. No esquecimento completo dos terrenos estéreis, as descobertas em potência dormem o seu primeiro despertar. Aparecimento perturbante das noites escuras, um ser que se conheceu é um ser novo. Quantos corredores e que corrida! É tão longe que não haverá ninguém a esperar a chegada. Os primeiros terão mil e mil vezes alcançado os últimos, de tal modo, apesar de tudo, a pista é pequena: ora, como nos defendemos bem, e com razão, de contar as voltas… Nas nossas breves relações com a existência o essencial é que tenhamos mantido um pouco o ritmo. A memória perde-se das curvas do trajecto. É por urna linha indefinidamente recta que a direcção é dada, que o regresso se tornou impossível. E o corredor ultrapassa-se... Tornou-se invisível. O seu dorso loucamente curvado faz parte integrante da encosta que trepa. É necessário que o seu dorso se estenda paralelamente a todos os dorsos curvados, a todos os dorsos admiráveis. Desgraça para aqueles que deles tiverem tentado fazer um pedestal, que será feito com estes abrigos das suas mãos caindo incessantemente num sufocante perfume de terebintina, que será feito com esta poeira que ainda obscurece o mundo, que será feito também com estas carreiras do pior nas verduras do mal, com estes oásis do melhor nos desertos do bem. As invisíveis barreiras do pensamento humano, as invisíveis barreiras dos corpos semelhantes sepultarão ao tombarem todos os inimigos do género humano.




andre breton e paul éluard
amor
a imaculada concepção
tradução franco de sousa
estúdios cor
1972




14 junho 2010

fiama hasse pais brandão / idade








Conheci dias duradouros,
o sol tão longo entre manhã e tarde.
Um levantar súbito de luz
por trás da crista das heras no muro velho,
e depois descer no verão entre grades verdes
e para além do portão como a cair no Hades,
no inverno. Não havia tempo
nos dias longos, mas a passagem diária
do sol abençoado.







fiama hasse pais brandão
três rostos
poemas revistos 1985-1987
assírio & alvim
1989









13 junho 2010

amadeu baptista / estações






Miúdos de treze anos fumam erva
nas obras das traseiras,
a vizinha
recorre ao xanax e à catatua
para recuperar a adrenalina, o octogenário
dorme no cadeirão de orelhas secundado
pelo cão que a netinha
há-de supliciar até à raiva. Ronrona
a gataria pela lata de sardinha
que a louca do bairro distribui
ao final da manhã, ainda a esquina
está incandescente da matilha
que assediou o quarteirão durante a noite.
Camas desfeitas dos corpos dos amantes
lembram-me a tua ausência
incontornável.






amadeu baptista
estações
apeadeiro / revista de atitudes literárias
primavera 2002
quasi
2002






11 junho 2010

william carlos williams / pastoral








Quando era mais jovem
tinha a certeza
que devia fazer algo da minha vida.
Agora, mais velho,
caminho por vielas
admirando as casas
dos muito pobres:
telhados desengonçados
pátios cheios de
velho arame de capoeiras, cinzas,
móveis desconjuntados;
as cercas e os anexos
construídos com aduelas
e tábuas de caixotes, todos,
com alguma sorte,
sujos de um verde-azulado
cuja pátina
me agrada mais
que qualquer cor.

Ninguém
acreditará que isto
seja tão importante para a nação.







william carlos williams
antologia breve
tradução josé agostinho baptista
assírio & alvim
1993






09 junho 2010

maria gabriela llansol / se eu fosse aquela em que tu







210

«Se eu fosse aquela em que tu
Pensas, a que tu tens amor», dizia
Insistente a canção, à luz daquele
Candeeiro da Belle Époque. Tinha
Oito anos e olhava para o garoto
Sobre o seu supedâneo. Estive para
Dizer «Eu sou aquela em quem tu
Pensas» e estive para não dizer. E se
Tivesse dito? Seria aquele semântico
Tu que sempre me diria. E se dito não
Tivesse? Meu Eu gramatical ficaria
Apenas meu, é certo… mas tão incerto.








maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003





05 junho 2010

samuel beckett / dieppe








ainda a maré vazia
o cascalho morto
meia volta e depois os passos
em direcção às antigas luzes

1937





samuel beckett
trad. manuel portela
“relâmpago” nr.13
10/2003









04 junho 2010

gil t. sousa / passados





19

não te esqueças de me visitar. traz-me as fotografias de Veneza e aquele poema que me escreveste quando o nosso amor ainda era o que de mais magnífico acontecera nas nossas vidas e no mundo.

havemos de nos sentar nas mesmas cadeiras como se fossem as mesmas manhãs de sábado. havemos de olhar os mesmos telhados, divagar sobre a eternidade dos gestos e jurar comovidamente que as nossas almas se tocaram de uma maneira única e inesquecível.

eu hei-de esconder-te a minha interminável solidão e tu hás-de demonstrar-me, muito inocentemente, nas tuas palavras tão cheias de vida e de juventude, como a morte nos descobre mesmo nos lugares mais altos.



gil t. sousa
falso lugar
2004


01 junho 2010

antónio josé forte / a torre de pisa














A torre de Pisa
em Itália
como qualquer torre
não fala


Inclina-se
para a frente
e cumprimenta
a gente


Não é como
a torre de Belém
que não cumprimenta
ninguém









antónio josé forte
uma rosa na tromba de um elefante
desenhos de aldina
parceria a. m. pereira
2001






31 maio 2010

vasco ferreira campos / antes que o verão chegue









Antes que o verão chegue
e as longas tardes
se espalhem pelo coração
e te prendam ao desgaste habitual
toca uma palavra
para que permaneça
na minha boca
onde mais ninguém
possa ficar confundido.
Uma apenas.

E vê como pesa menos sobre o silêncio
a sombra que vais mover.








vasco ferreira campos
a voz à chuva
guimarães
pedra formosa
1996