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22 março 2023

luís filipe castro mendes / o bibliotecário de alexandria


 

 

Quem julgará o que acordou, sobressaltado,
para salvar os espólios? Ele viu claramente o lume vivo,
as chamas que ninguém poderia apagar;
mas concluiu que tudo não era mais que um sonho
e sonhou sabê-lo.
 
 
 
luís filipe castro mendes
relâmpago
revista de poesia
nr. 16/4 2005
luís miguel nava
fundação luís miguel nava
2005



 

24 fevereiro 2016

luís filipe castro mendes / casas na noite



A luz que vem do passado não bate de frente nas casas,
porque ninguém olha de frente para o que passou ou morreu
e demasiadas coisas fomos deixando assim, mal arrumadas por casas velhas,
até nos darmos conta que desse modo aceleramos o nosso próprio fim
 – mas isso é indiferente aos astros e à luz, a sombra vai caindo e a noite
marcha sobre os nossos passos com a leveza de uma criança.
A vida também não nos olha de frente: fita-nos assim de soslaio
E nós, subreptícios no semblante, fazemo-nos desentendidos.
A poesia é mais uma forma de desconversar, aqui, agora,
ou até nos gritos de quem apenas implora “olhem para mim”,
quando irremediavelmente ficou escuro
e a luz não chega para todos e a noite que nos espera
será para sempre de lua nova.


luís filipe castro mendes
relâmpago
revista de poesia
nr. 36/37 abril/outubro
2015



10 janeiro 2012

luís filipe castro mendes / memento mori




                                                            Death is not in life
                                                            (Wittgenstein)




Eu vi morrer  três pessoas
a uma acompanhei até ao fim,
no que seria talvez o que lhe restava de vida
ou porventura o que lhe sobrava de morrer;
outra morreu quando eu dormia,
longe do hospital:
e tive que atravessar pela madrugada
uma cidade estrangeira
para chegar à sua morte;
e meu Pai, enquanto eu ia
comprar-lhe uma garrafa de oxigénio,
que nunca soube a quem serviu depois.

Nós nunca vemos ninguém morrer,
porque morrer é por dentro de cada um,
como talvez tudo o que tenha algum sentido,
como talvez amor.

O que verdadeiramente importa
é opaco ao nosso olhar
e cada prova que vivemos
é só e única:
morrer ou ver morrer

e o amor também.





luís filipe castro mendes
relâmpago
revista de poesia
nr. 27 outubro
2010




17 agosto 2010

luis filipe castro mendes / história pessoal

1.
Entre a morte e a música,
abandonámos finalmente as nossas mãos sobre as águas.
A persistência dos rios serviu-nos de guia
e o silêncio escondeu-nos
de olhares atravessados pelo frio
de uma só palavra.


2.
A recusa
percorrida na terra,
partilhada
por mãos brutais de amor,
a recusa
floresce,
transforma o pássaro na sua própria voz
transfigurada.


3.
A dor
«antiquíssima, libertando»
o archeiro do seu arco,
o tempo do seu peso,
tornando enfim o corpo
pura respiração.


4.
A poesia
recupera restos, tonalidades
desapercebidas,
a intensidade de uma paixão vazia.
A poesia
não tem memória.


5.
Margens
de orvalho
ou a inquietação penosa
de durarem os dias
na sua perda.


6.
A claridade
da flor na chama,
o rumor
por dentro dos frutos,
a palavra «raiz».

O inverno
nas árvores enfim concordes.


7.
O amor, uma história
quase pessoal.






luís filipe castro mendes
poemas
nova renascença
janeiro/março
inverno de 1987