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15 dezembro 2023

harold pinter / luz do dia

 




 
Atirei um punhado de pétalas sobre os teus seios.
Arranhada pela luz do dia, jazes petalisada.
Assim a tua pele imita o rubor, a cabeça
Roda em todos os sentidos, exibindo um massacre de flores.
 
Eu levo-te então das trevas até ao dia,
E pouso pétala sobre pétala.
 
                                                     
                                         1956
 
 
 
harold pinter
várias vozes
tradução jorge silva melo e francisco frazão
quasi
2006
 




04 março 2021

harold pinter / no palácio do imperador ao amanhecer

 
 
 
      O médico do século XVIII
Cobre de sanguessugas as narinas quebradas,
O louco e o alquimista ambos invocam
O grito do céu
O índigo favorece o olhar.
Agora tímidas marionetas
Desatam-se como caracóis.
Um outro Parténon desfaz-se em areia.
Mas, o caracol do amor ainda
Ilumina os conveses.
Na Quadragésima, em Março
As bolhas prendem as rãs
Em sacos transparentes.
Em Novembro, no São Martinho, uma doninha
Num pesadelo morde as coxas de um amante.
Os olhos corroem o manto da faia.
 
      Pedra muda – o tempo uma miragem,
Enterrado o mundo
Na fundida aldeia japonesa,
O gongue de madeira do templo ressoa
Onde o arroz se desagrega.
Rebentando as contas, as mangas,
Que ao início irradiavam.
E agora ouvimos a aflição do silêncio.
 
                                                                                                                                                                     1949
 

harold pinter
várias vozes
tradução jorge silva melo e francisco frazão
quasi
2006

 



05 novembro 2020

harold pinter / poema

 
 
beijavam-se voltei-me abriram bem abertos
os olhos voltados cegamente para mim
vi que aqui onde nos juntávamos
a luz que caía sobre nós queimava
tão vivamente as trevas que partilhávamos
enquanto eles com olhos cegos voltados para mim se voltavam
e eu o seu beijo cego formei
 

                                                                                    1971
 

harold pinter
várias vozes
tradução jorge silva melo e francisco frazão
quasi
2006

 





30 março 2020

harold pinter / previsão do tempo



O dia vai nascer nublado.
Vai estar bastante frio
Mas à medida que o dia avançar
O sol abrirá
E a tarde será seca e quente.

À noite a lua brilhará
E será bastante luminosa.
Haverá, é verdade,
Um vento cortante
Mas que abrandará pela meia-noite.
Nada mais acontecerá.

Esta é a última previsão.

Março 2003



harold pinter
guerra
trad. pedro marques, jorge silva melo e francisco frazão
quasi
2003





02 janeiro 2020

harold pinter / ano novo nas midlands



E lá volta ela, a soprar, a hospedeira dos rapazes
Amontoados pelo chão
E canta «Ó Luz Celestial» fazendo
Oscilar a perna de pau
como um esquadro sobre a corrente.
Eis o brilho, o pó e o sangue e eu estou aqui,
Instável, exilado sempre numa cidade onde se bebe Whitbread Ale,
Ou coisa assim.
Foi onde fomos ao bar amarelo, entalado num beco de lixo,
A um passo do mercado,
E aí foi que vimos o magro e efeminado Luke, cujos pálidos
Incisivos olhos, gabardine, victoriano,
Enfraquecem a resposta na mão.
Os apertos, maneirismos, gaguejar e cerveja
Desta noite de Ano Novo; o salmo parodiado;
As mulherzinhas caranguejos negros com longos
Olhos, ceceio e garras, numa lata repleta.
Estou amarrotado no calor dos passos: os rapazes marinheiros
Cambaleantes cedo embalados até adormecerem cujo figo furão
Acalma a moeda da febre de um dia.
Ora, nesta trepidação de um bar em festa, provoco e perturbo
A abatida senhora do bar
Que faz beicinho com o cigarro que se desponta eriçado –
Polvilhados e cortados aos cubos a estas luzes das Midlands
Estão Freda alcoviteira gemente e vítrea, e o vosso atabalhoado guia,
Abençoados com erva-ambrósia – Vede
Como mãos radiosas
Soltam os genitais da cidade –
Rapazes e velhos
Com olhos de escaravelho,
As putas atrevidas com papada, o rapaz
De camisa vermelha percorrendo, em fúria, com pesados passos, a sua
      jaula.
 
                                                                                                   1950



harold pinter
várias vozes
tradução jorge silva melo e francisco frazão
quasi
2006








02 janeiro 2018

harold pinter / requiem por 1945




Era como eles sempre disseram,
Os cegos, os mudos, os abandonados como mortos,
Os que sempre acreditaram na noite,
Os avós que procuravam a luz
Mas só davam com os postigos dos quartos
Esmagados por um mar que lhes rosnava
E submergia e lhes roubava o ar
Para os castigar pelo seu desejo.

1999



harold pinter
várias vozes
tradução miguel castro caldas
quasi
2006




17 fevereiro 2017

harold pinter / naquele tempo



Bom, não havia problema.
Todas as democracias
(todas as democracias)

estavam connosco.

Por isso tínhamos de matar umas pessoas.
E então?
Os das esquerdas às vezes são mortos.

Era o que costumávamos dizer
Lá naquele tempo:

A tua filha é das esquerdas

Vou meter-lhe este aríete
Por ali acima acima acima
Mesmo por dentro e até lá acima
Mesmo por dentro do seu imundo corpo das esquerdas.

E isso parou os das esquerdas.

Pode ter sido naquele tempo
Mas  digo-te que esse é que foi um bom tempo.

De qualquer forma todas as democracias
(todas as democracias)
Estavam connosco.

Diziam: só não
(só não)
Digam a ninguém que estamos convosco.

Só isso.
Só não digam a ninguém
(só não)
só não digam a ninguém
Que estamos convosco.

Matem-nos só.

Bem, a minha mulher queria paz.
E os meus filhos pequenos também.
Por isso matámos todos os das esquerdas.
Para darmos paz aos nossos filhos pequenos.

De qualquer forma não havia problema.
De qualquer forma estão todos mortos de qualquer forma.

1996


harold pinter
várias vozes
tradução miguel castro caldas
quasi
2006




25 maio 2016

harold pinter / tu à noite



Tu à noite havias de escutar
A trovoada e o ar ambulante.
Tu nessa margem hás-de virar
Para onde estão as intempéries dominantes.

Toda essa honrada esperança
Ruirá na ardósia,
E destroçará o inverno
Que vocifera a teus pés.

Se bem que ardam os altares apaixonantes,
E que o sol deliberado
Faça ladrar a águia,
Tu avançarás na corda bamba.

c. 1952


harold pinter
várias vozes
tradução miguel castro caldas
quasi
2006


29 dezembro 2015

harold pinter /paris


A cortina branca às pregas
Ela dá dois passos e volta-se,
A cortina imóvel, a luz
Vacila nos seus olhos.

Os candeeiros são dourados.
A tarde inclina-se, em silêncio.
Ela dança na minha vida.
O dia branco arde.

1975


harold pinter
várias vozes
tradução miguel castro caldas
quasi
2006




23 janeiro 2015

harold pinter /encontro



Nas horas mortas da noite

Os que há muito estão mortos olham para
Os novos mortos
Que avançam até eles

Há um leve bater do coração
Quando os mortos abraçam
Os que há muito estão mortos
E os que entre os novos mortos
Para eles avançam

Choram e beijam-se
Quando voltam a encontrar-se
Pela primeira e última vez

Agosto 2002



harold pinter
guerra
trad. pedro marques, jorge silva melo e francisco frazão
quasi
2003




27 março 2013

harold pinter / o drama em abril




E assim se tornou Março num museu,
E se abriram as cortinas de Abril.
Percorro a galeria vazia
Até ao último lugar.
Naquele cenário primaveril
Os actores armam tendas,
E num mínimo de luz
Começam a sua representação.

Os gritos deles no escuro pulverulento
Adensam-se com pesar vindos
Dos bastidores do Ambassadors.
Os objectos e os adereços à chuva
São a cinza da casa
E as pedras tumulares sem número
No meio do verde.

Anseio pelo intervalo,
Farto deste reportório.

1952



harold pinter
várias vozes
tradução miguel castro caldas
quasi
2006


01 março 2013

harold pinter / tudo isso




Tudo isso fiz
E, ao fazer, menti.
E tudo isso que escondi
Fingi estar morto.

Mas tudo isso que escondi
Foi sempre dito,
Mas, escondido, espiava
O bem de outrem.

E tudo isso levei
À certa para a cama
E, na cama, disse
Aquilo que fiz

A tudo isso que chorava
Por trás da minha cabeça
E, ao chorar, morria
E não morreu.

1970



harold pinter
várias vozes
tradução miguel castro caldas
quasi
2006



01 novembro 2012

harold pinter / a mesa





Janto demoradamente
Todo este tempo

Aos meus pés ouço-os
Cair na gordura

Em queijo e ovos
Em ossos de fim de semana

O ruído da luz
Deixou o meu nariz.

Tatuado por tudo o que
Não podia ver

Murmuro na
Minha orelha mais surda

O meu nome apagado
Já esteve aqui

Ou então um bluff total
Conservou-o cuidadosamente.

A isto encadeado
Apaixonado por isto

Avanço de gatas
Sem dizer palavra

E cheio de homenagens
Açambarco os restos

Sem fôlego,
Por baixo desta enorme mesa.


1963




harold pinter
várias vozes
tradução miguel castro caldas
quasi
2006




16 outubro 2012

harold pinter / instantâneos


  

O político engana o rato,
Cujas dentadas são rançosas
Naquela ferida de aloé.
O sol está no armário.

O sol está no armário.
Aquele criado desfaz o esqueleto,
E talha a mama científica.
Luz através do retrato.

Sombra através do retrato.
O anão da cave, irado
Como o arminho, periscopeia
A relojoaria da lua.

O vigário no seu jogo
Desenrola o fio de pesca,
Espera um charco nivelado.
Sombra através do armário.

1952



harold pinter
várias vozes
tradução miguel castro caldas
quasi
2006



18 setembro 2012

harold pinter /deus




Deus olhou para dentro do seu secreto coração
Em busca de uma palavra
Para abençoar a multidão dos vivos cá em baixo.

Mas por mais que olhasse como pode
E suplicando aos fantasmas para viverem de novo
Mas sem ouvir nenhuma canção naquele quarto
Descobriu com dor ardente
Que não tinha bênçãos para dar.

1993




harold pinter
várias vozes
tradução jorge silva melo e francisco frazão
quasi
2006




11 setembro 2011

12 agosto 2010

harold pinter /poema







Não olhes.
O mundo está prestes a rebentar.

Não olhes.
O mundo está prestes a despejar a sua luz
E a lançar-nos no abismo das suas trevas,
Aquele lugar negro, gordo e sem ar
Onde nós iremos matar ou morrer ou dançar ou chorar
Ou gritar ou gemer ou chiar que nem ratos
A ver se conseguimos de novo um posto de partida.






harold pinter
várias vozes
tradução jorge silva melo e francisco frazão
quasi
2006






16 julho 2007

harold pinter / poema






Parti uma manhã com a minha única mulher,
Para longe das dunas em direcção à feira de Verão,
Ia comprar uma vidraça e um xaile branco,
Para lá dos penedos e do monte banhado pelo sol.
Mas um desconhecido disse-nos que a feira já tinha terminado,
E eu dei meia volta com a minha única mulher.

E eu dei meia volta e conduzi-a a casa.
Ela seguiu-me de perto para longe do Verão,
Para lá dos penedos e do monte banhado pela lua,
Através das dunas ao cair da noite,
E chegou à nossa casa sem vidraça,
E o comprido ano espreguiçou-se vindo de leste.

A minha única mulher sentou-se ao lado de uma vela.
O Inverno lamentava-se à porta.
Uma viúva trouxe-nos um longo xaile preto.
Eu coloquei-o nos ombros da minha fiel mulher.
A viúva foi-se embora através das dunas,
Afastou-se da nossa casa sem vidraça.

O ano transformou-se em alvorada prematura.
Parti uma manhã com a minha única mulher,
Para longe das dunas em direcção à feira de Verão,
Para vender uma vela e um xaile preto.
Separámo-nos no monte banhado pelo sol,
Ela em silêncio, eu para o extremo oeste.

1953










harold pinter
várias vozes
trad. pedro marques
quasi
2006







29 janeiro 2007

harold pinter / mensagem





Jill. O Fred telefonou. Não pode esta noite.
Disse que ligava outra vez logo que desse.
Eu disse (por ti) OK, não há problema.
Disse para eu te dizer que ele estava bem,
Só a merda, disse ele, sabes, fica colada,
A merda que tens de combater.
Às vezes não é mais do que um monte de merda ambulante.

Eu própria estou bem familiarizada com o pivete,
Disse-lhe eu, e aconselhei-lhe calma.
Não deixes que esses cabrões te deitem abaixo,
Descontrai um bocado a pressão,
Vai à cidade, queima uma pessoa até à morte,
Descobre uma outra puta, dá-lhe uma martelada,
Vive a juventude até ela se acabar,
Dá um pontapé nos tomates do primeiro cego que encontrares.

Mas ele vai ligar outra vez.

Eu volto à hora do chá.

A tua mãe que te adora.





harold pinter
várias vozes
trad. vários
quasi
2006