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31 março 2015

lawrence durrell / je est un autre



Ele é o homem que toma notas,
O observador de chapéu alto preto,
De rosto oculto pela aba:
Em três cidades europeias
Tem-me visto a mim a olhá-lo.

À esquina de uma rua em Buda e depois
Junto aos correios, um vislumbre
Das abas do casaco sumindo-se
Deu esclarecimento igual e, examinado,
O aperto na garganta.

Outra vez, num encontro ao pé do Sena,
Com as águas um chão de estrelas a mexer,
Quando eu cheguei à porta já se fora,
Mas no pavimento, e ainda aceso,
Lá estava um dos seus habituais charutos pretos.

O encontro na escura escadaria
Onde a maré corria escorreita como um tear:
O atraiçoá-la, os beijos dela,
A tudo ele assistiu: quantas vezes
O ouço rir no quarto ao lado.

Observa-me agora trabalhando até tarde
A dar vida a um poema; os olhos
Reflectem a doença de Nerval:
Inútil é nesta velha casa interrogar
Espelhos, a sua máscara impenetrável.



lawrence durrell
leituras
poemas do inglês
trad. joão ferreira duarte
relógio d´água
1993



26 agosto 2010

konstandinos kavafis / a cidade

Dizes: vou partir
Para outras terras, para outros mares
Para uma cidade tão bela
Como esta nunca foi nem pode ser
Esta cidade onde a cada passo se aperta
O nó corredio: coração sepultado na tumba de um corpo,
Coração inútil, gasto, quanto tempo ainda
Será preciso ficar confinado entre as paredes
Das ruelas de um espírito banal?
Para onde quer que olhe
Só vejo as sombras ruínas da minha vida.
Tantos anos vividos, desperdiçados
Tantos anos perdidos.


....................................................................................................



Não existe outra terra, meu amigo, nem outro mar,
Porque a cidade irá atrás de ti; as mesmas ruas
Cruzam sem fim as mesmas ruas; os mesmos
Subúrbios do espírito passam da juventude à velhice,
E tu perderás os teus dentes e os teus cabelos
Dentro da mesma casa. A cidade é uma armadilha.
Só este porto te espera,
E nenhum navio te levará onde não podes.
Ah! então não vês que te desgraçaste neste lugar miserável
E que a tua vida já não vale nada,
Nem que vás procurá-la nos confins da terra?






konstandinos kavafis
justine, lawrence durrell
tradução daniel gonçalves
ulisseia
2007







03 setembro 2008

konstandinos kavafis / deus abandona antónio

Quando bruscamente, nas trevas da noite,
Ouvires passar o tropel invisível das vozes puras,
O coro celeste das sublimes harmonias,
Abandonado definitivamente pela fortuna,
Desfeitas em pó as últimas esperanças,
Esvaída em fumo uma vida de desejo.
Ah! não sucumbas lastimando um passado
Que te traiu, mas como um homem
Que se prepara há muito tempo,
Despede-te corajosa mente
De Alexandria que te abandona.
Não te deixes iludir e não digas
Que foi sonho ou um logro dos teus sentidos,
Deixa as súplicas e os lamentos para os poltrões,
Abandona vãs esperanças.
E como um homem que se prepara há muito tempo,
Resignado, altivo, como te compete
E a uma cidade como esta,
Abre a janela e olha para a rua
E bebe a taça inteira da amargura
E a derradeira embriaguez da multidão mística
E despede-te de Alexandria que te abandona.







konstandinos kavafis
justine, lawrence durrell
tradução daniel gonçalves
ulisseia
2007






06 outubro 2007

da indiferença de Deus





“Durante anos esforçamo-nos por aceitar a ideia de que as outras pessoas não se importam absolutamente nada connosco; depois, certo dia, com um pavor crescente, descobrimos que é o próprio Deus que se não interessa por nós: e, o que é pior, descobrimos que lhe é totalmente indiferente que sejamos uma coisa ou outra: bons ou maus.”












lawrence durrell

justine

(o quarteto de alexandria)

trad. daniel gonçalves

ulisseia

1992