21 abril 2010

rui miguel ribeiro / berlin (seestrasse 118)










Subimos até ao quarto que dá
para o pátio interior desta cidade
distante e estrangeira.

Partilhámos a meias a solidão
sob um nome que não pronunciamos
como os nossos, próprios.

Trocamos iniciais e algumas verdades
tão mentirosas como qualquer confissão.
Libertámo-nos do pudor como
o assassino que limpa a sua arma.


Trinta e cinco anos.
O mais eficaz dos calibres.








rui miguel ribeiro
telhados de vidro nr. 13
novembro de 2009
averno






19 abril 2010

miguel torga / comunicado





(Coimbra, 18 de Abril de 1961)




Na frente ocidental nada de novo.
O povo
Continua a resistir.
Sem ninguém que lhe valha,
Geme e trabalha
Até cair.







miguel torga
diário ix
diários 2º vol
dom quixote
1999







15 abril 2010

josé ángel cilleruelo / pintura







Como um ir dando cor às coisas,
Assim deveria ter acontecido, como pintar
Uma fotografia a preto e branco,
Retocando com um pincel muito fino,
Imperceptível, todos os objectos
Com inúmeras camadas de anilina,
Cada uma mais leve que a anterior.
Assim, é certo, deveria ter acontecido.
Mas senti-o como um despejar
Com baldes a cor sobre aquela tela
Citrina que era a minha vida de então.
E de agora, ia já escrever,
Mas não seria exacto, ainda que não esteja,
Comigo fica amanhecido o mundo.







josé ángel cilleruelo
trípticos espanhóis 2º
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000





12 abril 2010

mário cesariny / pastelaria








Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante!

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao
     precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é por ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria e, lá fora - ah, lá fora! - rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra.







mário cesariny
nobilíssima visão
assírio & alvim
1991






09 abril 2010

joão almeida / em tempo de miséria









desço por um jardim transparente
entre lodo e hortelã

andam assistentes sociais pelo bosque
à procura de pobres
agitam contas e berlindes

acaba aqui a rédea solta, há que escolher as armas

troco à sombra do derradeiro cipreste
dois versos e um dedo
por uma noite de sono e um detonador








joão almeida
resumo
a poesia em 2009

assírio & alvim
2010






07 abril 2010

gil t. sousa / na asa negra






16/


na asa negra
do pássaro da noite
todos os meus rios
recitam o seu correr










gil t. sousa
falso lugar
2004







05 abril 2010

luís muñoz / somente






Somente alguns objectos da tua casa
dividem entre si o sal da tua memória.
O resto está à espera de alimento
ou de servir para alguma coisa.


Ora uns ora outros de ti exigem
o veneno que irrompe nas viagens.








luís muñoz
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004







01 abril 2010

carlos saraiva pinto / as coisas complexas








as coisas complexas
são inimigas de Deus

torna-me pois simples
como os bois e os cavalos
que no abandono da névoa
das montanhas são almas
que cumprem
dolorosas promessas a santuários
que estão para além do mundo.









carlos saraiva pinto
escrever foi um engano
o correio dos navios
2001







30 março 2010

dionne brand / noutro lugar, não aqui










Noutro lugar, não aqui, uma mulher poderia trocar
algo entre o belo e lugar nenhum, de regresso ali
e aqui, poderia fazer progressos na sua
agitada vida, mas eu tentei imaginar um mar que não
sangrasse, um olhar de rapariga cheio como um verso, uma mulher
a envelhecer e sem chorar nunca ao som de um rádio a sibilar
o homicídio de um rapaz negro. Tentei que a minha garganta
gorjeasse como a de uma ave. Escutei o duro
bisbilhotar de raça que habita esta estrada. Mesmo nisto
tentei murmurar lama e plumas e sentar-me tranquilamente
nesta folhagem de ossos e chuva. Mastiguei algumas
folhas votivas aqui, o seu sabor já a desencantar
as minhas mães. Tentei escrever isto calmamente
mesmo quando as linhas ardem até ao fim. Acabei por aprender
algo simples. Cada frase imaginada ou
sonhada salta como uma pulsação com história e toma
partido. O que eu digo em qualquer língua é dito com perfeito
conhecimento da pele, em embriaguez e pranto,
dito como uma mulher sem fósforos e mecha, não em
palavras e em palavras e em palavras decoradas,
contadas em segredo e sem ser em segredo, e escuta, não
se extingue nem desaparece e é abundante e impiedoso e ama.







dionne brand
pullll lllllll
poesia contemporânea do canadá
trad. john havelda, isabel patim & manuel portela
antígona
2010








29 março 2010

david teles pereira / bem-vindo ao ano zero







Deram-me a riqueza,
mas não me disseram o que fazer com ela.


Iegueni Ievtuchenko








Com a minha idade, o meu pai já era um homem honrado,
o meu avô trabalhava na marinha mercante,
disparava ocasionalmente um ou dois foguetes
em direcção a terra seca, em homenagem ao amor de uma mulher
que conheceu antes da minha avó e que me teria dado
olhos azuis e muito menos problemas.

Aos dezoito anos os meus pais participaram na Revolução.
O meu avô também. Tinha quarenta e cinco.
Depois os meus pais casaram, desculparam-se com o ciclo da vida,
o país parecia estar no bom caminho, a casa ainda não.
Quis ser actor o meu avô, depois de ter passado
cinco dias e quatro noites a traduzir uma peça de Brecht
num quarto da pensão Rosa com vista para o rio Sado.

Então nasceu o meu irmão com os olhos que – toda a gente
confirmava – eram iguaizinhos aos da minha mãe.
Depois nasci eu e depois a minha irmã, com olhos de Varsóvia,
não tão honrados quanto belos.
Eu ainda nasci em Portugal, a minha irmã já não, nasceu na CEE,
que entretanto tinha ensinado a minha mãe e o meu pai a serem
ainda mais perfeccionistas nisso de serem honrados.
O meu avô continuava a traduzir Brecht e desconfiava
da PAC e de tudo aquilo que pudesse ser formulado
apenas em três letras.
Para ele, no mínimo, eram necessárias quatro.

Foderam-me a vida, o meu pai e a minha mãe,
e o pior é que o fizeram para que eu pudesse chegar
aos vinte e três anos e dizer que já sou um homem honrado,
tal como o meu pai tem sido, ao contrário do meu avô,
que prefere Brecht à linear organização comercial
do novíssimo amor português.

E pior ainda é que tenho vinte e três anos
e corro o risco de já ser um homem honrado.









david teles pereira
resumo
a poesia em 2009

assírio & alvim
2010



25 março 2010

robert schindel / venero fausto, é certo







(a partir de Wladimir Wyssotzkij)




Venero Fausto, e admiro Dorian Gray
Mas a minha alma nunca o diabo a terá
Também a despropósito a ciganas dei
A ler o dia da morte nas borras do café.
E tu, demónio, vê lá, não me assinales
A data no teu negro diário!
Se já o fizeste, ah, peço-te que a esqueças
Antes que expire o prazo nesse calendário,
Não quero ficar à espera, a ver lá fora
Corvos palrar com anjos num último festim
Não quero que riam e cochichem agora
Apaga já a data do meu fim,
Minh´ alma afunda-se sob a neve no campo
Em medo e dúvida, imersa no tempo,
… Quero lá saber da imortalidade! Nada
Peço, só quero uma estrada larga e macia
Um amigo e um cavalo para a última jornada.
Humilde, baixarei a cabeça, para que nesse dia
Me deixem ir. Sem lágrimas, sem melancolia.








robert schindel
telhados de vidro nr. 11
tradução de joão barrento
averno
2008







22 março 2010

manuel de castro / poema







para lá da cortina além da porta errada
silencioso e só está sentado
e lê num livro velho
a sua própria história








manuel de castro
edoi lelia doura
antologia das vozes comunicantes
da poesia moderna portuguesa
assírio & alvim
1985










18 março 2010

antonio orihuela / em vista do teu currículo




A condição política da classe operária está ligada à sua
condição económica; e sendo a sua condição económica a
de escravos do capital e dos poderes, a sua condição polí-
tica tem de ser também a de escravos.


Juan Cordobés, 1885







Em vista do teu currículo
decidimos
ficar contigo.

Entrarás por quinze dias renováveis,
e se fores bom, por três meses
prorrogáveis.


Ao princípio constarás na relação como auxiliar administrativo,
embora te devam ter dito que o que se reforma
é o contabilista.


Vamos contratar-te por quatro horas,
mas não te preocupes, trabalharás oito.
Dada a situação da empresa
pagar-te-emos essas à parte.
No total: 62.700 ptas. por mês,
embora os teus colegas, para completar,
façam três horas mais todas as tardes,
e vêm aos sábados meio dia.
Entre umas e outras coisas
passas das cem mil.


Bom, se não estiveres metido em política,
não queremos confusões com os sindicatos
nem trabalhadores conflituosos.
Ouviste o que Aznar disse
que faz falta para levantar este país, não?
Trabalho, Sacrifício e Tolerância.

Belo, não é?






antonio orihuela
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000



16 março 2010

marosa di giorgio / os papéis selvagens





8

Vamos pela parede.

A mamã tem asas castanhas sedosas; eu, asas cor de violeta; ao abri-las vêem várias camadas de gaze. Prosseguimos pelo muro; com antenas finíssimas tocando nos galhos, nos ramos, de bálsamo, de salsa e de outras coisas.

Parece que estamos livres dos semelhantes que são como azougue.

A cada minuto, a lua é mais branca e escura.

E resplandece por todo o prado, aqui e ali, a Virgem dos Insectos.

Com asa e diadema e muitíssimos pés.










marosa di giorgio
os papéis selvagens
tradução de rosa alice branco
encontros de talábriga







12 março 2010

marguerite yourcenar / essas mãos







Poderias mergulhar como um só bloco no nada para onde vão os mortos: consolar-me-ia se me legasses as tuas mãos. Apenas as tuas mãos subsistiriam, separadas de ti, inexplicáveis como as dos deuses de mármore que se tornam pó e cal dos seus próprios túmulos. Elas sobreviveriam aos teus actos, aos miseráveis corpos que acariciaram. Entre as coisas e ti, elas já não seriam intermediários: seriam elas próprias, transformadas em coisas. Voltando a ser inocentes, pois tu já lá não estarias para fazer delas tuas cúmplices, tristes como galgos sem dono, desconcertadas como arcanjos a quem já nenhum deus dá ordens, as tuas mãos vãs repousariam sobre os joelhos das trevas. As tuas mãos abertas, incapazes de dar ou de agarrar qualquer alegria, ter-me-iam deixado cair como uma boneca quebrada. Beijo ao nível do pulso essas mãos indiferentes que a tua vontade já não afasta das minhas; acaricio a artéria azul, a coluna de sangue que outrora, incessante como o jacto de uma fonte, surgia do solo do teu coração. Com pequenos soluços satisfeitos, encosto a cabeça como uma criança, entre as palmas cheias de estrelas, de cruzes, de precipícios daquilo que foi o meu destino.







marguerite yourcenar
fogos
trad. maria da graça morais sarmento
difel
1995







10 março 2010

gil t. sousa / tarde antiga






15/


oratórias de Bach
e uma fileira de árvores nuas

o vento é um calendário antigo
arrumado na gaveta mais funda

as jarras, os cinzeiros,
todos os vidros com
aquela pose de diamante

que durante tanto tempo
me encheram os olhos

numa caixa sobre a mesa
estão amarradas as últimas palavras

escritas em papel surdo
numa caligrafia mortal










gil t. sousa
falso lugar
2004







08 março 2010

isabel meyrelles / tu és o meu relógio de vento






Tu já me arrumaste no armário dos restos
eu já te guardei na gaveta dos corpos perdidos
e das nossas memórias começamos a varrer
as pequenas gotas de felicidade
que já fomos.
Mas no tempo subjectivo
tu és ainda o meu relógio de vento
a minha máquina aceleradora de sangue
e por quanto tempo ainda
as minhas mãos serão para ti
o nocturno passeio do gato no telhado?







isabel meyrelles
o rosto deserto
1966






04 março 2010

al berto /engate








é uma ameaça encontrar-te à esquina das ruas
rente aos grandes cinemas do mar
como se fosses o espelho côncavo de feira
onde posso mergulhar e renegar-me

sim
se olhares o céu lúgubre deste fim de século
se fizeres um movimento de farol com o cigarro
eu - que vou a passar - tudo verei
mas nada será meu
porque não se pode falar com o espectro mudo
do engate - nem o desejo se levantará
para seduzir o corpo daquele que se ausentou

mesmo assim conheço
todas as esquinas da imunda cidade que amo
mesmo assim sofro de insónias - imito o noitibó
o bêbado louco
gesticulo como aquele que já não sou e
outro não serei

mantenho-me de pé e fumo
dentro deste túmulo de incertezas onde
nos encostámos de mãos enlaçadas à espera
que uma qualquer cesura nos agonie e sejamos
obrigados a vender o corpo já usado
aos insuspeitos violadores de poemas








al berto
horto de incêndio
assírio & alvim
1997






01 março 2010

manuel antónio pina / esplanada








Naquele tempo falavas muito de perfeição,
da prosa dos versos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares.
Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,

agora lês saramago & coisas assim
eu já não fico a ouvir-te como antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro dentro de mim.

O café agora é um banco, tu professora do liceu:
Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.
Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,
e não caminhos de andar como dantes,
chamando do fundo do meu coração.







manuel antónio pina
poemas
encontros de talábriga
1999




25 fevereiro 2010

andre breton e paul éluard / nada existe de incompreensível





Que atracção reuniu assim no fundo deste abismo, a mil metros abaixo do nível do mar, alguns dos maiores criminosos do nosso tempo? O local é fresco, mas mais claro que espinhoso. Nenhuma inquietação pelo futuro, nenhuma luz escondida, ali chama por aqueles que procuram através das paisagens as grandes confidências vivas. Uma pequena vivenda de arrabalde fura entre os maciços de coral e os cantos de esferas o seu pára-raios e o seu pombal junto da suave epiderme da alga vermelha. Os que habitualmente vêm a este sítio falam com mais gosto de ódio que de amor. O acaso, este ano, conduziu para esta clareira famosos artistas.
Troppmann, a Brinvilliers, Vacher, Soleilland, Haarmann… Que festa de caridade poderia gabar-se de reunir tão grandes artistas no mesmo cartaz? Contudo, lá estão sem nada terem combinado, por repouso, por estudo também, preparando na paz desta depressão os programas misteriosos de que não nasceram os executores esplêndidos.
Na serenidade das noites a Brinvillers ressuscita os seus venenos perdidos com aquela graça reflectida que lhe permite uma interpretação justa e verdadeira do pensamento arsenical. Vacher evoca a beleza das prostitutas apaixonadas, Haarmann come, Soleilland joga, Troppmann ri, todo um terreno vago nos olhos.
Na volta de alguns carreiros, roçando pelos mastros de barcos submersos, palavras sem canções misturam-se com esta atmosfera de piratas e talvez nunca o seu poder se tenha exercido com mais liberdade. A atracção que agiu nestes criminosos não deve ser mais do que esta pureza, este silêncio do abismo, que permite à linguagem assassina reencontrar, de certo modo, a sua juventude, o ponto de força e de acção onde é absolutamente ela própria, sem que nada a estorve ou a corrompa.
Nunca esqueceremos o dia em que, pela primeira vez, vimos Soleilland entrar no mar. O silêncio estabelecera-se pouco a pouco no quarto quando este homem alto e jovem se aproximou do leito e se sentou. Olhou a cabe leira clara pela qual passara a mão, recolheu-se e era como se tivesse querido passar um pouco da sua emoção e da sua sagacidade para os adoráveis anéis do seu cabelo. Nenhuma afectação neste recolhimento. Sentíamo-lo só e verdadeiramente naquele instante todos nós existíamos mais ou menos através dele. O fenómeno que liga tão estranhamente um homem àquilo que ama não existe aliás fora da autoridade, da exigência: é tanto um abuso da força como uma força e pertence à distracção dos demónios.
Quando a vozearia pública esmoreceu, quando ficou à altura do mar, quando deixou de ser o mais forte, Soleilland apenas descobriu os olhos da criança. Nascidos na surpresa eles afirmavam de súbito a vida num resumo violento e magnífico. Era qualquer coisa que nunca tínhamos encontrado: a obra encontrava neles a sua grandeza, a sua verdade, certas. Ela é longa: de uma ponta à outra a impressão é acrescida de um tal vaticínio que não era possível duvidar de ter assistido à consumação dos séculos.
Tudo se passava, dissemo-lo, sob o mar. Nós não fazíamos mais do que estar sobre a jangada com os nossos contemporâneos, logo bem pouco suspeitos de romantismo. Foi então que se admirou o génio de Soleilland o bem denominado. Compreendeu-se que ele se manifestava para além mesmo da inteligência, por um daqueles dons que fazem crer em qualquer coisa mais do que as habituais possibilidades humanas.
Quando dissemos a Soleilland o que pensávamos dele, respondeu-nos com uma voz juvenil:
— Porque me dizem isso?
— Porque o pensamos.
— Acredito em vós sem dificuldade.
Sorria, maravilhado por o poderem considerar como um dos maiores directores de consciência vivos.
— Mas que fiz eu? acrescentava ele. Sobrecarregava-nos de perguntas para nos ouvir justificar o nosso juízo; e, não tardou, como fosse a nossa vez de o interrogar, que nos contasse a sua infância ao sol, entre os princípios de seu pai e os pressentimentos de sua mãe que, muito jovem, o tinha iniciado nos grandes arcanos e não duvidava de que um dia teria de se tornar um «sol».
Trabalhava com alegria, e já era senhor da sua indiferença e senhor dos seus desejos, quando grandes perturbações sacudiram as suas mãos. Arrancou da parede a gravura que a adornava e representava um homem batendo numa mulher com um violoncelo e todas as suas forças, com o título: «Violoncelo que resiste». Tanto bastou, iria confessá-lo, para que os seus estudos terminassem, para que se tornasse naquilo que escutávamos naquela tarde, um jovem célebre nas profundidades da vida, e que conhecia a glória por não ter conhecido o coração dos outros.
Aquele que cumpre este destino magnífico só pensa em si mesmo: habita um mundo sem vítimas e não está surpreendido com a sua aventura, aqui em baixo, quando se fala com ele.










andre breton e paul éluard
as mediações
a imaculada concepção

tradução franco de sousa
estúdios cor
1972


22 fevereiro 2010

samuel beckett / sou esta areia que se esvai






sou esta areia que se esvai
entre o cascalho e a duna
a chuva de Verão chove-me na vida
sobre mim a vida que me foge persegue-me
e vai acabar no dia do começo


caro instante vejo-te
nesta névoa que se levanta
quando não tiver de pisar estas longas soleiras movediças
e viver o espaço de uma porta
que se abre e que se fecha

1948







samuel beckett
relâmpago nr.13
trad. manuel portela
10/2003






18 fevereiro 2010

sofia leal / os becos sem saída









4. Os becos sem saída
conheço-os tão bem
erguem-se na visão
parando os rios
como barragens malditas
dentro de poços
não vamos para lugar algum
nenhuma cidade
nenhum começo de frase
nos espera
agora as queimaduras do frio
sentem-se no interior
refugiado do corpo
deixou de haver ervas
para acolher os gritos
os nós das sebes
apertam as asas
resta esperar
sem nunca saber
se é possível passar










sofia leal
di versos 15
poesia e tradução
junho de 2009
edições sempre em pé
2009








16 fevereiro 2010

gil t. sousa / automatic winter






14/


quem se importa se não vens pela estrada, ou se o teu nome é muito longe como a sombra? hoje abri as mãos enquanto o sul me fugia em pássaros sob a lua. há árvores tão lentas neste Inverno e passos mudos, água nos caminhos do espelho.

e tu não estás, não estás lentamente, nem sobre os telhados vermelhos, nem ao longe como o forte querer que a neve caia e tudo apague como se apagava o mundo quando docemente um beijo nos explodia no meio da solidão.










gil t. sousa
falso lugar
2004







09 fevereiro 2010

mário-henrique leiria /claridade dada pelo tempo







I

Deixa-me sentar numa nuvem
a mais alta
e dar pontapés na Lua
que era como eu devia ter vivido
a vida toda
dar pontapés
até sentir um tal cansaço nas pernas
que elas pudessem voar
mas não é possível
que tenho tonturas e quando
olho para baixo
vejo sempre planícies muito brancas
intermináveis
povoadas por uma enorme quantidade
de sombras
dá-me um cão ou uma bola
ou qualquer coisa que eu possa olhar
dá-me os teus braços exaustivamente
longos
dá-me o sono que me pediste uma vez
e que transformaste apenas para
teu prazer
nos nossos encontros e nos nossos
dias perdidos e achados logo em
seguida
depois de terem passado
por uma ponte feita por nós dois
em qualquer sítio me serve
encontrar o teu cabelo
em qualquer lugar me bastam
os teus olhos
porque
sentado numa nuvem
na lua
ou em qualquer precipício
eu sei
que as minhas pernas
feitas pássaros
voam para ti
e as tonturas que a planície me dá
são feitas por nós
de propósito
para irritar aqueles que não sabem
subir e descer as montanhas geladas
são feitas por nós
para nunca nos esquecermos
da beleza dum corpo
cintilando fulgurantemente
para nunca nos esquecermos
do abraço que nos foi dado
por um braço desconhecido
nós sabemos
tu e eu
que depois de tudo
apenas existem os nossos corpos
rutilantes
até se perderem no
limite do olhar
dá-me um cigarro
mesmo que seja só um
já me basta
desde que seja dado por ti
mas não me leves
não me tires
as tonturas que eu teria
que eu terei
sempre que penso cá de cima
duma altura vertiginosa
onde a própria águia
nada mais é que um minúsculo
objecto perdido
onde a nuvem
mais alta de todas
se agasalha como um cão de caça
leva-me a recordação
apenas a recordação
da vida martelada
que em mim tem ficado
como herança dada há mil e
duzentos anos

deixa que eu fique
muito afastado
silencioso
e único
no alto daquela nuvem
que escolhi
ainda antes de existir











mário-henrique leiria
o surrealismo na poesia portuguesa
antologia organizada por natália correia
frenesi
2002







07 fevereiro 2010

isidore ducasse / que dizem um ao outro...




(…)

Que dizem um ao outro dois corações que se amam? Nada. Mas os nossos olhos exprimiam tudo. Digo-lhe que cinja o capote ao corpo, e ele fez-me notar que o meu cavalo se está a afastar demasiadamente do seu: cada um de nós interessa-se tanto pela vida do outro como pela sua própria; não rimos. Ele tenta sorrir-me; mas percebo que o seu rosto está marcado pelo peso das terríveis impressões nele gravadas pela meditação, constantemente debruçada sobre as esfinges que confundem, com um olhar oblíquo, as grandes angústias da inteligência dos mortais. Vendo como são inúteis as suas diligências, ele desvia os olhos, morde o seu freio terrestre com a baba da raiva, e contempla o horizonte que foge quando nos aproximamos. Tento por meu lado recordar-lhe a sua doirada juventude, que só pede entrada nos palácios dos prazeres, como uma rainha; mas ele nota que as palavras me saem dificilmente da boca emagrecida, e que também os anos da minha primavera já passaram, tristes e glaciais, como um sonho implacável que, nas mesas dos banquetes e nos leitos de cetim em que dormita a pálida sacerdotisa do amor, paga com as cintilações do ouro, passeia as amargas volúpias do desencanto, as rugas pestilentas da velhice, os sustos da solidão e os farrapos da dor.

(…)







isidore ducasse
conde de lautréamont
cantos de maldoror
canto terceiro
trad. pedro tamen
fenda
1988




03 fevereiro 2010

marin sorescu / xadrez









Eu movo um dia branco,
Ele move um dia preto.
Eu avanço com um sonho,
Ele manda-o para a guerra.
Ele ataca os meus pulmões
Eu fico um ano no hospital a pensar,
Faço uma combinação brilhante
E ganho-lhe um dia preto.
Ele move uma desgraça
E ameaça-me com o cancro
(Que por agora avança em forma de cruz),
Mas ponho à sua frente um livro
E obrigo-o a recuar.
Ganho mais algumas peças,
Mas, reparem, metade da minha vida
Já está fora de jogo.
— Vou dar-te cheque e perdes o optimismo
Diz ele.
— Não faz mal, gracejo eu,
Faço roque dos sentimentos.

Atrás de mim a minha mulher, os meus filhos,
O sol, a lua e os outros mirones
Tremem por cada jogada minha.

Eu acendo um cigarro
E retomo a partida.







marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997






02 fevereiro 2010

sarah kane / 4:48 psicose








"Estou triste
Sinto que não há esperança no futuro e que as coisas não podem melhorar
Estou farta e insatisfeita com tudo
Sou um fracasso completo como pessoa
Sou culpada, estou a ser castigada
Gostava de me matar
Sabia chorar mas agora estou para além das lágrimas
Perdi o interesse nas outras pessoas
Não consigo tomar decisões
Não consigo comer
Não consigo dormir
Não consigo pensar
Não consigo ultrapassar a minha solidão, o meu medo, o meu desgosto
Sou gorda
Não consigo escrever
Não consigo amar
O meu irmão a morrer, o meu amante a morrer, estou a matá-los aos dois
Invisto na direcção da minha morte
Estou aterrorizada com a medicação
Não consigo fazer amor
Não consigo foder
Não consigo estar sozinha
Não consigo estar com os outros
As minhas ancas são grandes de mais
Não gosto dos meus órgãos genitais
Às 4:48
quando o desespero me visitar
enforco-me
ao som da respiração do meu amante."








sarah kane
teatro completo
trad. pedro marques
campo das letras
2001







01 fevereiro 2010

maria gabriela llansol / saber esperar alguém







34



Não há mais sublime sedução do que saber esperar alguém.
Compor o corpo, os objectos em sua função, sejam eles
A boca, os olhos, ou os lábios. Treinar-se a respirar
Florescentemente. Sorrir pelo ângulo da malícia.
Aspergir de solução libidinal os corredores e a porta.
Velar as janelas com um suspiro próprio. Conceder
Às cortinas o dom de sombrear. Pegar então num
Objecto contundente e amaciá-lo com a cor. Rasgar
Num livro uma página estrategicamente aberta.
Entregar-se a espaços vacilantes. Ficar na dureza
Firme. Conter. Arrancar ao meu sexo de ler a palavra
Que te quer. Soprá-la para dentro de ti -------------------
----------------------------- até que a dor alegre recomece.






maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003








30 janeiro 2010

narcís comadira / falcoaria









Agora sou um falcão e sobre a mão
do meu dono me firmo. O ar puro da manhã
respiro e o cheiro do veludo e das martas, o suor dos cavalos,
o feno pisado, os vapores
que sobem da terra.
Ervas e florinhas, tapete axadrezado que verei
das alturas quando em círculos, magnificente
observe os meus domínios, a pradaria, os arbustos,
o regato, a fugidia lebre.
E os cavalos, os cães, o dono
com os seus cavaleiros e o falcoeiro-mor,
pagens e servidores, todos iguais de tão pequenos,
espalhados pelo prado...
Agora o dono disse-me: quero uma grande lebre,
cheirosa de lentisco (o meu dono é poeta),
enquanto me acariciava a plumagem com o dedo.
Sinto-me imperador, na mão do meu dono, firme,
com o meu capuz de couro todo enfeitado.
Há movimento, alvoroço, relinchos, escarvar
e os moços dos canis que libertam e incitam os cães.
Aproxima-se o momento, o dono afaga-me,
quer uma grande lebre, cheirosa de lentisco
(eu também sou poeta). O coração pulsa com violência
e nestes momentos, agora, eu sou o dono e senhor
do mundo e da gente. Todos dentro do meu círculo,
de mim pendentes, esperando como me perco e regresso,
como o meu voo se vai cingindo, calculando
ao ver a lebre temerosa.
Os olhos são como setas, as garras agudizam-se
e uma dulcíssima vertigem me possui.
São um só céu e terra, árvores e nuvens, a erva e a pele
arisca da lebre. Nada vejo. Uma força
me arrasta para o fundo, para o poço do nada,
desço como um relâmpago. Por qual
vontade me pauto?
Qual a força obscura que me arrasta, que fios
movem as minhas asas, que fogo
poderá aquecer tanto
o sangue do meu corpo?

Agora tenho já
nas garras a lebre morta,
cheirosa de terra e de lentisco.
Tudo terminou, já se afundou o império.
O falcoeiro-mor
deixará que eu destroce um pedaço do cálido fígado...
Depois o dono rirá com os seus amigos
e eu me sentirei ridículo
com o meu capuz cheio de fitas.

Dura sempre tão pouco
aquilo que nos permite o esquecimento!







narcís comadira
quinze poetas catalães
trad. egito gonçalves
ed. limiar
1994











28 janeiro 2010

gil t. sousa / ternamente poderosos






13/


nunca sobrava uma sílaba. ternamente poderosos, revíamos o mundo
do mais alto lugar.

nas manhãs frias de sábado,
a noite ainda na pele.









gil t. sousa
falso lugar
2004







26 janeiro 2010

ernesto sampaio / geografia








A oriente
o horizonte escarlate
da dor humana
a ocidente
o crepúsculo
no fim do percurso
a norte
o Senhor da Morte
a sul
o vento do deserto
em cima
o olho do mundo
em baixo
o sonho indestrutível








ernesto sampaio
feriados nacionais
fenda
1999









23 janeiro 2010

paulo jorge fidalgo / gostos








Gosto da chuva em dias cinzentos
das ruas transpiradas e das mulheres
abrigadas sob as pálpebras da noite.
Gosto de uvas e de tremoços
e dos trémulos moços que namoram.
miúdas constipadas - choro com eles
suas mágoas.
Gosto das luzes e das fachadas iluminadas
dos palácios com árvores e dos pássaros
nas árvores gosto da fidelidade dos cães
e do cheiro dos animais em casa
gosto do Inverno se estou triste e de ir
anoitecer ao cinema, bebo vinho e rio
sozinho no meu quarto enquanto espero
que tu venhas tardia e fria ao meu colo,
chamo-te nomes que amei e tu sabes
que eu amei e não te importas que te ame
assim tipo filme de renúncias e façanhas,
gosto de homens taciturnos e amigos
dos jornais de ontem e de um quadro
de Giotto numa história sem sentido,
leio prosa dispersa a preço razoável
e sou maldoso se vejo coisa doutro
que não preste, gosto de viagens curtas
e de mijar ao vento contra as giestas,
gosto de falar do passado e ser diferente
por dentro de mim que se não vê,
modesto não digo porque minto mas gosto
do azul limpo ou quase verde, uso tinta
durmo mal e pago imposto.
E prefiro um gosto ao resto.








paulo jorge fidalgo
hablar/falar de poesia nr. 4
2001








20 janeiro 2010

josé tolentino mendonça / side of the road







Ateei o fogo
quebrei as portas de bronze
desfiz sinais nas pedras lisas
enlouqueci os adivinhos

minha língua tornou-se tão
estranha
que não se pode entender

as multidões vitoriosas
levantam em teu nome grinaldas
tamboris e danças
despojos de várias
cores

tomo o caminho por onde vieste
tropeçando como os que não
têm olhos






josé tolentino mendonça
a estrada branca
assírio & alvim
2005







18 janeiro 2010

egito gonçalves / imagens de um inverno indocumentado












A vida tem lágrimas pesadas como árvores…
A sombra avança no atalho como um formigueiro.
Tuas pernas estão vermelhas de frio na paragem do eléctrico.

Felizmente existe a noite e a tua chegada.
O anjo estático não é mais que um boneco de pedra.
O calor da tua boca reinventa o estio.







egito gonçalves
o amor desagua em delta
editorial inova
1971


16 janeiro 2010

antónio franco alexandre / corto viaggio sentimentale, capriccio italiano







6



quero dizer-te: não morras.
Nem me digas quem és, quem foste, como sabes
a língua que se fala sobre a terra.
Ao lume lanço
toda a vontade de viver, ser vivo,
a cautela do ar, ardendo em torno.
Passarei, terás passado em mim, só quero
dizer-te: não morras nunca, agora, nunca mais.






antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999








14 janeiro 2010

daniel faria / ando um pouco acima do chão









Ando um pouco acima do chão
Nesse lugar onde costumam ser atingidos
Os pássaros
Um pouco acima dos pássaros
No lugar onde costumam inclinar-se
Para o voo

Tenho medo do peso morto
Porque é um ninho desfeito

Estou ligeiramente acima do que morre
Nessa encosta onde a palavra é como pão
Um pouco na palma da mão que divide
E não separo como o silêncio em meio do que escrevo

Ando ligeiro acima do que digo
E verto o sangue para dentro das palavras
Ando um pouco acima da transfusão do poema

Ando humildemente nos arredores do verbo
Passageiro num degrau invisível sobre a terra
Nesse lugar das árvores com fruto e das árvores
No meio dos incêndios
Estou um pouco no interior do que arde
Apagando-me devagar e tendo sede
Porque ando acima da força a saciar quem vive
E esmago o coração para o que desce sobre mim
E bebe









daniel faria
poesia
explicação das árvores e de outros animais

quasi
2003





12 janeiro 2010

antónio gancho / música







A música vinha duma mansidão de consciência
era como que uma cadeira sentada sem
um não falar de coisa alguma com a palavra por baixo
nada faria prever que o vento fosse de azul para cima
e que a pose uma nostalgia de movimento deambulante
era-se como se tudo por cima duma vontade de fazer uma asa
nós não movimentamos o espaço mas a vida erege a cifra
constrói por dentro um vocábulo sem se saber
como o que será
era um sinal que vinha duma atmosfera simplificante
silêncio como um pássaro caído a falar do comprimento.







antónio gancho
o ar da manhã
assírio & alvim
1995





10 janeiro 2010

laurie anderson / lírio branco







Em que filme do Fassbinder é que é? Um homem sem um braço
Entra numa florista e diz:
Qual é a flor que exprime
A passagem dos dias
Os dias que se sucedem sem fim
Puxando-nos
Para o futuro?
A infinita
Passagem dos dias
Puxando-nos infinitamente
Para o futuro.
E a florista diz:
O lírio branco.








laurie anderson
anéis de fumo
poemas
tradução de joão lisboa
assírio & alvim
1997








06 janeiro 2010

maria do rosário pedreira / não voltei a esse corpo








Não voltei a esse corpo; e não sei
se aqueles que o vestiam antes e depois
de mim souberam nele o verdadeiro calor
e lhe conheceram os perigos, os labirintos,
as pequenas feridas escondidas. Não voltarei
provavelmente a sentir a respiração
palpitante desse corpo, desse lugar onde as ondas
rebentavam sempre crespas junto do peito, do meu peito
também, às vezes.


Uma noite outro corpo virá lembrar essa maresia,
o cheiro do alecrim bruscamente arrancado à falésia.
E eu ficarei de vigília para ter a certeza de quem me
recolheu,
porque os cheiros tornam os lugares parecidos, confundíveis.

Quando a manhã me deixar de novo sozinha no meu quarto
trocarei os lençóis da cama por outros, mais limpos.






maria do rosário pedreira
a casa e o cheiro dos livros
gótica
2002



04 janeiro 2010

herberto helder / última ciência








Ninguém sabe se o vento arrasta a lua ou se a lua
arranca um vento às escuras.
As salas contemplam a noite com uma atenção extasiada.
Fazemos álgebra, música, astronomia,
um mapa
intuitivo do mundo. O sobressalto,
a agonia, às vezes um monstruoso júbilo,
desencadeiam
abruptamente o ritmo.
- Um dedo toca nas têmporas, mergulha tão fundo
que todo o sangue do corpo vem à boca
numa palavra.
E o vento dessa palavra é uma expansão da terra.





herberto helder
ofício cantante
poesia completa
assírio & alvim
2009








03 janeiro 2010

gil t. sousa / será esse o teu inverno






12/


nada te levará tão longe, como os dias cegos de outrora. janelas que se perdiam na bruma, olhos que pousavam no impossível do tempo, movimento perpétuo dos lábios com marés de palavras esculpidas no coração.

foi tudo nesse horizonte afogado. a mesa vazia, o piano calado, o pássaro imóvel. virás por muitos anos, como a espuma dos sonhos perdidos. e a raiva será cantada no paredão da memória até ficarem macias as pedras do caminho.

e será esse o teu Inverno.








gil t. sousa
falso lugar
2004






02 janeiro 2010

sophia de mello breyner andresen / um pálido inverno







Um pálido inverno escorria nos quartos
Brancos de silêncio como a névoa
Um frio azul brilhava no vidro das janelas
As coisas povoavam os meus dias
Secretas graves nomeadas






sophia de mello bryner andresen
dual
caminho
2004







30 dezembro 2009

wallace stevens / seis paisagens significativas








III


Meço-me
Contra uma árvore alta.
Acho que sou muito mais alto,
Pois chego mesmo até ao sol,
Com os meus olhos;
E chego à praia do mar
Com os meus ouvidos.
Todavia não gosto
Do modo como as formigas rastejam
Para dentro e para fora da minha sombra.






wallace stevens
ficção suprema
trad. luísa maria lucas queiroz de campos
assírrio & alvim
1991







29 dezembro 2009

miguel esteves cardoso / tempo






Em Portugal tudo o que há para o dia seguinte é feito de véspera. Até o Natal, ao contrário doutros povos, é feito de véspera. Para compreender isto tudo, é preciso olhar para a maneira como os Portugueses observam o tempo. O Natal é um bom exemplo, começando logo pela consoada. Que outra nação tem, por prato representativo, um peixe que vive a milhares de milhas náuticas da costa nacional, que leva meses inteiros a chegar a Portugal e que, quando chega, ainda tem de ficar vinte e quatro horas de molho antes de podermos comê-lo? Por isso é que Portugal continua em águas-de-bacalhau.

Isto deve-se à paixão que têm os Portugueses pelas coisas muito demoradas e o horror correspondente à frieza desumana da pontualidade. Em 1983 (e desde 1383), passámos o ano a dizer duas coisas: «Dá tempo ao tempo» e o novíssimo, portuguesíssimo advérbio atempadamente.

Em Portugal já se deu tanto tempo ao «tempo», com tanta abnegada generosidade, que agora o tempo, já mal habituado a receber tempo sem nada dar em troca, jamais o devolverá. O tempo que se deu ao tempo ao longo destes 800 anos já deverá ir, segundo os nossos cálculos em mais de 5000 anos. Fazendo as contas, isto dá a Portugal um negativo de cerca de 4200 anos. E olhando para o país, é fácil verificar que o número não anda muito longe da verdade. De facto, a própria História de Portugal anda cronicamente desfasada do tempo. Sob muitos pontos de vista, ainda estamos na aurora do Neolítico.

Atempadamente é um advérbio que utilizam os governantes quando lhes fazem a pergunta mais malcriada que há no contexto cultural português, «Quando?». Significa, em termos sumários: «Devagar, e mais ou menos quando nos der na real bolha, depois se verá, talvez, nunca se sabe, seja o que Deus quiser, e já é um grande pau.»

Em Portugal anda tudo atrasado, e isto só quando chega a andar. Os horários de televisão não são cumpridos desde a primeira emissão experimental dos anos de 1950, e os comboios, como toda a gente sabe, circulam segundo um vetusto horário cósmico, perdido nas brumas do tempo e inteiramente ligado aos ritos ligures de transportes dos Mortos, que remontam às primeiras ocupações da Península. Se às vezes correspondem aos horários impressos numa faceta de Jazz Age (que Pascoaes tanto abominava), isso deve-se à lei matemática da coincidência e não pode ser evitado.

Os autocarros, também, em vez de saírem sozinhos com intervalos certos, preferem deambular pela cidade em composições autóctones de três ou quatro unidades iguais (já vimos uma belíssima formação de seis 45 a subir a avenida da Liberdade). Isto deve-se, ao que se julga, a questões de mútua protecção contra os numerosos bandos de «utentes» que vagueiam pelas ruas a tentar saltar-lhes para cima.

A agenda para 1984 da Newsweek, que inclui uma secção sobre os hábitos comerciais da Europa, diz, quando chega a vez de Portugal, que convém «chegar 15 ou 20 minutos depois da hora marcada, para evitar longas esperas». É um conselho útil, porque os Portugueses são muito especiais em questões de pontualidade. Vir em cima da hora, como indica a própria bruta1idade da expressão, é uma actividade mais do que levemente obscena e socialmente desencorajada. Em Portugal, quem cai na asneira de chegar à hora marcada arrisca-se a que digam dele, que «veio logo à ganância, o sacana do estrangeirado».

Basta ver que, em português, um «caso pontual» indica um fenómeno excepcional, imprevisível e insignificante. «A hora marcada» é uma mera referência heurística para situar vagamente um evento de cuja ocorrência só Deus tem a certeza. Tal como dizem as mulheres de vida difícil aos clientes impetuosos («Ó filho, não me marques...»), as horas portuguesas também não gostam de se deixar marcar. E quem as marcar, arrepende-se.

Os Portugueses sabem que estão no meridiano britânico de Greenwich, mas é considerado rudeza denunciar este facto ao mundo. Se têm uma adoração obsessiva pelos cronógrafos de pulso que fazem bip bip, têm luzinhas de Natal e estrelam ovos, é só para se poderem certificar que continuam alegremente atrasados. Se o país tivesse um lema, seria certamente «Não deixes de deixar para amanhã o que já ontem deixaste para hoje».

Noventa e nove por cento da produção literária portuguesa encontra-se, como todos sabemos, «no prelo». Há vários sécu1os que astrólogos e neurólogos de gabarito internacional tentam situar esse obscuro lugar onde se diz vegetarem as obras-primas do futuro, mas pouco se conseguiu apurar, excepto tratar-se, natura1mente, de uma vasta zona sideral, situada na parte anterior esquerda do cérebro (também conhecida por «gaveta») do escritor ou editor, que se manifesta sobretudo à mesa do café e que tem a particularidade mental de não conseguir albergar cromossomaticamente o conceito do «tempo».

O que em Portuga1 não está no «prelo», está «na forja», que fica mesmo ao lado e que é um bocado pior. Os responsáveis dizem sempre, em defesa deles, que «devagar se vai ao longe». A ciência moderna, porém, permite atestar que devagar mais depressa se vai ao ar do que ao longe. Hoje em dia, são poucos os que lá querem ir (ao «longe») e por isso o mais habitual é não se ir. E mesmo assim, porque estamos em Portugal, a maneira como não se vai também é, evidentemente, devagar.

Isto é tanto assim, que até a voz da menina que responde quando discamos o «15» no telefone pertence a uma artista estrangeira. Muitas candidatas portuguesas quiseram preencher o lugar, mas o melhor que alguma delas conseguiu, segundo os registos da TLP, foi «Lá para o terceiro ou quarto sinal, ou lá como é que isso se chama, serão aí umas nove e picos, mais coisa menos coisa».
Por causa de tudo isto, o país inteiro está atrasado. A vanguarda está à retaguarda, e a retaguarda já não aguarda absolutamente nada. Uns e outros fazem revistas que, tal como as formações de autocarros atrás citadas, saem juntinhas em números triplos e quádruplos, cerca de seis a nove meses depois da temida «data anunciada». A «data anunciada», em Portugal, tem um significado exclusivamente sebastianista. Nessa data, Dom Sebastião aparecerá na barra, numa caravela branca com o segredo da entrada para a CEE, e as revistas e os comboios, as consultas no dentista e os programas de televisão, tudo sairá a tempo, na «data anunciada» de que nos falou Bandarra.

As únicas coisas às quais os Portugueses chegam cedo são, em primeiro lugar, aos desafios de futebol e, em segundo lugar, à conclusão que não vale a pena chegar cedo a seja o que for.

«Mais vale tarde que nunca», diz o povo, mas o ditado esquece-se de elucidar que, para os Portugueses, não há nada, nem cedo, nem a horas, nem a tempo, que va1ha mais do que tarde. Tarde, pela tardinha (que outro povo trata a tarde com tanto afecto diminutivo?), é quando mais bem se não fazem as coisas que há para fazer. A «manhã» não existe. Dê-se a contracção de a e de manhã e ver-se-á que a única coisa que existe em Portugal é «amanhã».






miguel esteves cardoso
explicações de português
assírio & alvim
2001


26 dezembro 2009

heiner müller / anjo sem sorte 2







Entre cidade e cidade
Depois do muro o abismo
Vento nos ombros a mão
Estrangeira na carne solitária
O anjo ainda o ouço
Mas já não tem rosto a não ser
O teu que não conheço





heiner müller
o anjo do desespero
trad. joão barrento
relógio d´ água
1997







23 dezembro 2009

raul brandão / tudo o que me podes dizer






Olhava este momento que ia desaparecer, com saudade – porque nunca mais se repetiria no mundo. Nunca mais outro segundo igual nem na luz, nem na vibração, nem na ternura…
O momento em que me sorriste, baloiçado entre o nada e o nada, nunca mais se voltaria a repetir, idêntico e completo, em todos os séculos a vir! Estava ali a morte… está aqui a vida. Agora pergunto a mim mesmo se te deixo morrer; e a pergunta obsidia-me e exige resposta imediata. Sei tudo, tudo o que me podes dizer – já eu o disse a mim próprio. Até hoje falava a alguma coisa que me ouvia, hoje só interrogo a mudez, só a mim próprio me interrogo.





raul brandão
húmus
(novas máximas)
frenesi
2000








20 dezembro 2009

kenneth koch / a magia dos números








A MAGIA DOS NÚMEROS - 1

Que estranho era ouvir a mobília no andar de cima!
Vinte e seis anos eu, e tu vinte e dois.

A MAGIA DOS NÚMEROS - 2

Perguntaste-me se queria correr; disse-te que não e fui andando.
Tinha eu dezanove e tu sete.

A MAGIA DOS NÚMEROS - 3

Sim, mas gostará X realmente de nós?
Ambos tínhamos vinte e sete anos.

A MAGIA DOS NÚMEROS - 4

Pareces-te com o Jerry Lewis ( 1950 )

A MAGIA DOS NÚMEROS - 5

O avô e a avó querem que vás jantar a casa deles.
Eles tinham sessenta e nove anos e eu dois e meio.

A MAGIA DOS NÚMEROS - 6

Um dia, eu vinte e nove anos, encontrei-te e nada aconteceu.

A MAGIA DOS NÚMEROS - 7

Não, é claro que não fui eu que fui à biblioteca!
Olhos castanhos, faces coradas, cabelo castanho. Eu tinha vinte e nove anos e tu
dezasseis.

A MAGIA DOS NÚMEROS - 8

Uma noite em Rockport, depois de nos amarmos, saí e beijei a estrada,
Tão transportado me sentia. Tinha vinte e três e tu dezanove.

A MAGIA DOS NÚMEROS - 9

Eu tinha vinte e nove e tu também. Foi um tempo muito apaixonado.
Tudo o que lia se convertia numa história sobre tu e eu, tudo o que fiz se converteu num poema.








kenneth koch
a magia dos números e outros poemas
trad. antónio franco alexandre
quetzal
1992







16 dezembro 2009

luís miguel nava / paisagens








São outras as paisagens quando alguém
as vê pelas janelas do seu próprio coração ou quando
com esse coração
a própria estrada está comprometida.






luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
rebentação

publicações dom quixote
2002








13 dezembro 2009

mário cesariny / barricada



Quando já não pudermos mais chorar e as palavras forem pequeninos suplícios e olhando para trás virmos apenas homens desmaiados, então alguém saltará para o passeio, com o rosto já belo, já espontâneo e livre, e uma canção nascida de nós ambos, do mais fundo de nós, a exaltar-nos!

Tu sabes se te quero e se fomos os dois abandonados, abandonados para uma bandeira, para um riso que sangre, para um salto no escuro, abandonados pelos lúgubres deuses, pelo filme que corre e desaparece, pela nota de vinte e um pedais, pela mobília de duas cadeiras e uma cama feita para morrer de nojo. Minha criança a quem já só falta cuspir e enviar corpo e bens para a barricada, meu igual, tu segues-me; tu sabes que o caminho é insuportavelmente puro e nosso, é um duende gritando no telhado as ervas misteriosas, é um rapaz crescendo ao longo dos teus braços, é um lugar para sempre solene, para sempre temido! E o Rossio é uma praça para fazer chorar. Salvé, ó arquitectos! Mas choremos tanto que será um dilúvio. Automóveis-dilúvio. Sobretudos-dilúvio. Soldadinhos-dilúvio. E quando essa água morna inundar tudo, então, ó arquitectos, trabalhai de novo, mas com igual requinte e igual vontade: vinde trazer-nos rosas e arame, homens e arame, rosas e arame.




mário cesariny
pena capital
assírio & alvim
1982




10 dezembro 2009

gil t. sousa / na curva do rio






11/


na curva do rio é que tudo nos espera, é que tudo morre. levam-nos na corrente invisível do tempo, levam-nos no silêncio para nunca mais chegarmos.

ninguém nos há-de esperar no fim da viagem. nunca mais nos havemos de libertar da solidão dos retratos.







gil t. sousa
falso lugar
2004