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10 dezembro 2021

josé ángel cilleruelo / a casa

 
 
Verão livros amontoados e sem ordem.
Muitos lidos, os romances de Joaquín Belda
assustarão alguém. Não vão achar diário
nem sublimes escritos com intimidades.
Não há quadros no quarto. Não há outra esperança
além de uma esferográfica que ainda escreva,
um envelope, um selo. E quando procurarem cartas
apenas verão velhos recortes de jornal.
Os cadernos que me ofereceram em Málaga.
Péssimas fotografias de família. Onze
versos casuais de um soneto inexistente.
E um feixe de razões para o esquecimento.
Quando abandonar a casa o último dia
pouca vida mais nela encontrarão.
 
 
 
josé ángel cilleruelo
o dom impuro
antologia
trad. joaquim manuel magalhães
averno
2004




20 novembro 2020

josé ángel cilleruelo / aqui

 
 
                                                                          Eu estou sempre aqui.
                                                                                          Ruy Cinatti
 

Gostava da chuva mansa
dos dias do norte.
adorava a humidade sobre o rosto:
pouso no chão o telefone
sobre o tapete cinzento
e ajusto a luz nas persianas;
ria-se por nada às sextas-feiras
quando ao entardecer
enlouquece de súbito a cidade:
fecho a varanda
em pleno agosto para impedir
que se espalhe a campainha;
não perdia uma única
das manhãs de feira,
as rifas, as lojas com sardinhas:
abro um livro para fechá-lo,
não me sobressalte a meio de um verso
o som do telefone;
atava à esquerda
o cachecol sobre a gabardina
desproporcionalmente clara:
ponho um disco, embora baixo,
e olho com prazer o aparelho
mudo sobre o tapete;
gostava de passar a noite em comboios,
apanhar aviões, camionetas
para qualquer lado:
no meu caderno anoto uma data mais,
outro dia, outro mês, outro ano,
eu estou sempre aqui.
 
 
 
josé ángel cilleruelo
o dom impuro
antologia
trad. joaquim manuel magalhães
averno

2004




08 janeiro 2019

josé ángel cilleruelo / cão de morto




Contarei as sílabas, depois os versos
Até catorze, a ninguém direi que morreu;
Serei parco em imagens, procurarei
A intensidade da canção primitiva.
A ninguém direi que dentro de mim morreu;
Fingirei que existe ainda algo
Belo por escrever. Inventarei frases
Com a memória dos que sentem ainda.
Um pouco de interesse me resta, vida
Também, ainda que não a solicite muito;
Quase não leio e já suporto só
Alguns romancistas americanos.
Contarei sílabas, acentos, histórias,
Mas a ninguém revelarei o meu embuste.



josé ángel cilleruelo
trípticos espanhóis 2º
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000







24 julho 2018

josé ángel cilleruelo / o segredo




Entraste na noite
pelo lado da solidão.
A ela contas que sais com eles,
a eles que sais com ela.
Encaminhas o velho Renault 4
pelo certo lugar desabitado
da cidade.
Fizeste entrar um corpo,
acenderam um cigarro enquanto
procuras um retiro pelas sombras.
Silencias a sua voz quando quer falar-te,
com um gesto decides
forma de desejo.
Entraste num corpo
pelo lado da solidão.
Por um instante sentiste-te bem
mas não o dizes,
embora não consigas reprimir
uma carícia no vidro embaciado.
Atrás da porta que fechou deixa-te
um rasto de perfume ignóbil
que aspiras com deleite:
como símbolo o queres
para quando queimar a claridade
da manhã.



josé ángel cilleruelo
o dom impuro
antologia
trad. joaquim manuel magalhães
averno
2004






09 maio 2018

josé ángel cilleruelo / bairro alto




2
Uma revista rasgada na armação
da cama vazia. Além o colchão
no piso de mármore, junto de restos
de pequena fogueira. Nas paredes,
mensagens de amor reles e obsceno.
Beatas, lixo, plásticos, migalhas
por todo o lado. Um preservativo
recente junta um sinal ao abandono.

Não sei se neste quarto estive só,
numa tarde de chuva, masturbando-me
devagar. Ou neste quarto será onde
desabotoou a saia e disse
deita-te! e o fio me beijou
os olhos. Ou talvez que na janela
de um quarto como o que descrevo agora,
numa manhã de setembro aziaga,
tremi ao ver que corria pela avenida.

Camiões e gruas e operários
destruirão o velho hotel em poucas
horas. O pó cobrirá a figueira
e os fetos do pátio antigo.
grandes rodas esmagarão a erva
onde me deitei um dia com um livro
nas mãos. Levantei os olhos
e estava junto da piscina,
prestes a rir-se do meu sotaque
de estrangeiro. Este quarto. Estas ruínas.



josé ángel cilleruelo
salobre
antologia
trad. joaquim manuel magalhães
averno
2004







15 setembro 2017

josé ángel cilleruelo / bairro alto



1
Tudo tem aqui o mesmo abandono:
um quarto com janelas
para a rua e um corpo sem desejo
diante da chuva. Uma mulher que passa
– a luz presa debaixo das meias –
e que desaparece, deixa
o eco de um gemido na pupila
e a saliva quente do suor
na memória.
                       Hotel sem graça,
uma jarra com água à cabeceira,
uma revista dentro do armário,
o fio com um menino Jesus
sobre o decote, e a mão – a minha mão –
percorre o náilon.
                                 Agora as páginas
do diário devolvem-me esta noite,
fria noite num quarto frio.

Para que servirá a inteligência?
Um número na porta, um cheiro acre.



josé ángel cilleruelo
salobre
antologia
trad. joaquim manuel magalhães
averno
2004





09 dezembro 2016

josé ángel cilleruelo / a noite



Conhece todas as conversas,
Que vida contará como sendo sua,
Onde terá que rir, onde calar-se.
Não lhe serve, por mais que o pretenda,

Como sonho nenhum rosto belo
Ou jovem. Passou por muitas portas
(entrou em tantos quartos tantos dias)
Para agora o comover alguma.

Sabe que um corpo não é já o paraíso
Mansidão do tempo, puro dom.
Mas de pouco vale a experiência,

De nada a meditação, presságio
Ou incerteza, quando com a noite
O toma a ânsia de animal ferido



josé ángel cilleruelo
trípticos espanhóis 2º
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000




27 maio 2015

josé ángel cilleruelo / auto-retrato com olhos ignóbeis



Os olhos enevoados, em silêncio
A rua, as persianas atiradas
Como capotes sobre os ombros;
Amarga a saliva, engulo-a
Enquanto o homem desaparece
Apagado na humidade da noite.
Deixa como única lembrança
Uma gota gelada de esperma
Na comissura dos meus lábios.



josé ángel cilleruelo
trípticos espanhóis 2º
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000




10 abril 2015

josé ángel cilleruelo / um senhor de azul



e de barba por fazer. Aproveita
a época baixa, o desdém
de algum jovem desiludido
para tentar, uma vez mais, o amor.
Passeia sem ninguém a acompanhá-lo.
Dorme pouco. Não teve nada e agora,
na cidade, basta estender a mão:
os livros estão todos, corpos sempre
aguardam nesse bar conhecido.
Basta passar a porta que o faça feliz.
Por isso ano atrás de ano se veste
de azul, descuida o seu aspecto, fuma,
e regressa na época baixa
ao lugar afastado. Tal como então.




josé ángel cilleruelo
trípticos espanhóis 2º
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000




08 março 2012

josé ángel cilleruelo / peça ligeira




Uma estação sem ninguém nas plataformas,
Um banco na avenida e ninguém perto,
Um armazém abandonado,
O fim de uma via de manobras,
Um autocarro vazio,
Um jardim solitário,
Um comboio sem luzes,
A madrugada,
Um oco.
Eu.






josé ángel cilleruelo
trípticos espanhóis 2º
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000




20 junho 2011

josé ángel cilleruelo / canção triste de cabaré

 
 
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Muitas vezes me viam passear
Junto do rio e olhar a cidade
Com tristeza. Apenas essas águas,
Apenas um ar esverdeado nos dias limpos
Substituía o tremor de uns olhos
Ao cobrirem-se entre as mãos.
Regressava de eléctrico ao escurecer
Alheado por montras que esvaziam
Iluminadas. Descemos
Em silêncio os cinco eternos patamares,
Voltaste-te ao chegar à entrada,
nunca mais esquecerei essas palavras:
Olha, rapaz, eu não acredito
no amor, mas apenas nos corpos.
 




josé ángel cilleruelo
trípticos espanhóis 2º
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000
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15 abril 2010

josé ángel cilleruelo / pintura







Como um ir dando cor às coisas,
Assim deveria ter acontecido, como pintar
Uma fotografia a preto e branco,
Retocando com um pincel muito fino,
Imperceptível, todos os objectos
Com inúmeras camadas de anilina,
Cada uma mais leve que a anterior.
Assim, é certo, deveria ter acontecido.
Mas senti-o como um despejar
Com baldes a cor sobre aquela tela
Citrina que era a minha vida de então.
E de agora, ia já escrever,
Mas não seria exacto, ainda que não esteja,
Comigo fica amanhecido o mundo.







josé ángel cilleruelo
trípticos espanhóis 2º
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000