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19 abril 2018

luis muñoz / camisolas




Trocaram entre si a roupa
nos primeiros dias.

A T-shirt negra com os deuses astecas,
lembrança de um museu,
pelo pulôver fino e em bico
de listas amarelas com nervuras azuis.

O pólo anil gasto de há já cinco anos
pelo branco de seda, alado, com transparências,
de colarinho mole e grande.

Era como um abraço
apertado e ligeiro.
Acostumar a tua pele ao tacto da sua,
impô-lo ao sair, como uma carícia.

Ao descobrirem-se sós em encontros agridoces
com antigos amantes,
a doçura do outro soprava no tecido.
Ao descobrirem-se longe qual uma sombra débil
à beira das sombras,
o outro aparecia qual uma fortaleza.

Era a afirmação que sempre lhes faltava,
o toque permanente de alerta nos seus afectos.

E, isso sim, não escutaram
que ninguém lhes dissesse:
os fios da tarde tecem-se sem a tarde.


luis muñoz
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000







21 março 2017

luis muñoz / a moral ordinária



Não foi somente provar, mas provar-se.
Foi um cheiro e um tacto,
uma penugem,
pegar com as palavras as carícias,
consentir-se na forma de um corpo semelhante,
nadar nesse espelho de prata temperada,
saber que estava nele, no seu destino.

Se se deitou na sua cama ao meio-dia,
Depois de mergulhar no prazer de outro,
se transportou um calor a outro calor
e se passou na rua pela moral ordinária,
a tenaz de gelo de volta do trabalho,
soube que não voltava a retroceder no seu caminho,
soube que para sempre
atravessava um cerco.


luis muñoz
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000






18 junho 2014

luis muñoz / traduzido na noite


              (Giuseppe Ungaretti)


Doce decai o sol.
Do dia se separa
um céu demasiado luminoso
cheio de solidão.

Como se a muita distância
umas vozes se movem.
Ofendida se adular
tem esta hora uma arte estranha.

Não é a aparição primeira
do outono já sozinho?
E sem outro mistério
aqui corre a dourar-se
e o tempo belo rouba
a mercê da loucura.

Contudo gritaria, contudo:
tu, veloz juventude dos sentidos,
que me tens às escuras de mim mesmo,
e à imortalidade consentes as imagens,

não me deixes, espera, sofrimento.



luís muñoz
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004




16 abril 2014

luis muñoz / esta



Esta é a noite
com seu dorso de iguana.
Não penso ter medo dela
nem pelo que conjura
nem pelo que ilumina.

Teu medo não acaba sem o meu
quando são uma força.



luís muñoz
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004



12 setembro 2013

luis muñoz / atracção dos iguais



Assim é como te vejo:
não alheio a tentações,
não gelado aos sentidos.

Nem puro nem entregue
nem fiel nem virtuoso.
Nem devedor de um abismo
nem calado às vozes.
Carnal, inquieto, impuro,
permeável, alerta.



luís muñoz
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004



07 julho 2013

luis muñoz / plano de fuga



Fechar algumas portas de saída.
À rua de seda, ao pátio concentrado em si,
à sombra generosa que fareja nos jasmins,
à facilidade, à dificuldade,
à neve enlameada que dorme no teu desejo.



luís muñoz
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004



04 junho 2013

luis muñoz / roupa de lã



─  Não, quero estar acordado ─ diz,
embrulhado nas mantas espumosas
que os poemas tecem em redor do mundo,
quando lhe ofereço um copo.

Envergonha-me querer dormir agora,
e já não ter sede, e pressentir um frio.


luís muñoz
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004



08 outubro 2012

luis muñoz / fixações





Telefona-me à meia-noite.
Escuto o lamber do vento
através do telefone, como um cachorro ansioso,
e a sua voz transparente na cabina.

Há em frente ─  diz-me ─
um armazém de chapa
com forma de garrafa,
um terreno com escombros
branqueados de gesso,
umas casas cúbicas como dados sem uso
e três ou quatro pinheiros calcinados
da cor do remorso.

Estas poucas imagens
fixam-me à sua ausência
como devem fixá-lo ao facto de estar só.

No meu quarto de livros clareados
pela luz de moeda da lua,
provoca uma pontada:
─  Estou atrás de ti ─  diz-me ─
e em redor de tudo isto.




luis muñoz
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000



04 novembro 2011

luís muñoz / termómetro




Por então mediam-na as noites de estio,
a queda de luzes nas bocas do mar.
A minha resistência à tristeza, digo,
a pequena estrutura de uma emoção recente,
de um encontro intrépido,
de umas poucas palavras embebidas em doce,
do esvoaçar oculto numa carta,
de um sopro que torna alegres os dragões do tempo.

Outras vezes, porém, não existia nada,
ou o que existia tornava-me fraco.





luís muñoz
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004





05 abril 2010

luís muñoz / somente






Somente alguns objectos da tua casa
dividem entre si o sal da tua memória.
O resto está à espera de alimento
ou de servir para alguma coisa.


Ora uns ora outros de ti exigem
o veneno que irrompe nas viagens.








luís muñoz
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004