08 julho 2009

gil t. sousa / tenho pássaros nos olhos



6/


tenho pássaros nos olhos. como se ainda fosse muito cedo.





gil t. sousa
falso lugar
2004



07 julho 2009

robert creeley / segundo lorca







(Para M. Marti)




A igreja é um negócio e os ricos
são os homens de negócios.
Quando tocam os sinos, os
pobres entram e amontoam-se e quando um pobre morre, tem uma
cruz
de madeira, e apressam-se na cerimónia.

Mas quando um rico morre,
retiram o Sacramento
e uma Cruz dourada e vão doucement, doucement
para o cemitério.

E os pobres adoram
e acham fantástico.








robert creeley
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de josé alberto oliveira
assírio & alvim
2001.







06 julho 2009

saul dias / café









Quando,
à hora do Jazz,
a minha cabeça rola
pelo tecto pintado do café,
a parede em frente é uma visão de escola
onde um menino de bibe e gola
sonha com aquilo que não é.

E até os criados
têm ares purificados
como ascetas dum branco ritual.
E os mármores das mesas,
com desenhos obscenos,
surdinam vagas rezas...

E as garrafas dos álcoois e absintos,
em garbos áticos,
oferendam viáticos...

E há toalhas brancas e há velas acesas!

E ela vem sempre
(só a cabeça dela,
que o corpo
perdeu-o, porventura,
nalgum escuro quarto de aluguer).
Ela vem sempre,
como naquele dia,
serena e amavia,
única e excepcional.

O pianista
comeu os dentes do piano
e canta, de pernas para o ar,
uma canção azul.
O violinista adormeceu em pé numa cadeira
e o violino dá som sem ninguém lhe tocar.

E ela vem sempre
como naquela hora
estranha, delicada
e debruada a encanto.
Pura como a água, suave como um manto.

O dia é Dia Santo...








saul dias
poezz
almedina
2004




30 junho 2009

francesc parcerisas / juventude insolente









Agora podes ver como saem das aulas,
olhos cintilantes e gritos de euforia,
suados eles, elas com descarados seios como limões,
e páras a olhá-los, maravilhadamente confuso,
pensando no que afinal te atrai, ainda,
nessa ostentação, louca e insolente, de juventude.
Bem o sabes, seguirás o teu caminho
e eles passarão bruscamente, sem te ver,
rajada de lábios carnudos e corpos morenos,
para sempre irrecuperáveis, sorridentes e exultantes,
deixando-te apenas o teu desejo, a sempre inútil inveja.
É a luxúria da mente que acaricia
a dos corpos, o saber que ainda esperam,
a doce-amarga revelação da experiência?
Ou é, precisamente, compreender que não há nada
que possa evitar também eles caírem, lentamente,
na velha ratoeira de se irem resignando ao bem e ao mal
enquanto acreditam, enganados, que se começam a conhecer?









francesc parcerisas
quinze poetas catalães
tradução de egito gonçalves
ed. limiar
porto
1994







27 junho 2009

leopoldo maría panero / ars magna






O que é a magia, perguntas
numa casa às escuras.
O que é o nada, perguntas,
saindo de casa.
E o que é um homem saindo do nada
e regressando sozinho a casa.






leopoldo maría panero
poesia 1970-1985
visor
madrid
1986





25 junho 2009

antónio josé forte / memorial






As tuas mãos que a tua mãe cortou
para exemplo de uma cidade inteira
o teu nome que os teus irmãos gastaram
dia a dia e que por fim morreu
atravessado na tua própria garganta
as tuas pernas os teus cabelos percorridos
rato após rato tantos anos
durante tanta alegria que não era tua
os teus olhos mortos eles também
na primeira ocasião do teu amante
assim como as palavras ainda fumegando docemente
sobre as pedras de silêncio que lhes atiraram para cima
o teu sexo os teus ombros
tudo finalmente soterrado
para descanso de todos
- mesmo dos que estavam ausentes






antónio josé forte
edoi lelia doura
antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa
organizada por herberto helder
assírio & alvim
1985







23 junho 2009

william carlos williams / as árvores botticellianas









O alfabeto das
árvores

esvai-se na
canção das folhas

as hastes interceptadas
das finas

letras que enunciavam
o inverno

e o frio
iluminaram-se

de verde vivo
com

a chuva e o sol -
Os rigorosos e simples

princípios dos
ramos rectos

vão sendo alterados
por íntimos

retoques de cor, cláusulas
devotas

os sorrisos do amor -
.......


até que as frases
nuas

se movem como o corpo de
uma mulher debaixo do vestido

e louvam com sigilo e
desejo

a supremacia do amor
no verão -

No verão a canção
canta-se por si

sobre a surdina das palavras -









william carlos williams
antologia breve
tradução josé agostinho baptista
assírio & alvim
1993







22 junho 2009

carlos eurico da costa / [de sete poemas da solenidade e um requiem]






7


Neste dia meu amor
os meus dedos são o candelabro que te ilumina
o único existente.

E o homem
sua esfera perdida em mãos alheias
é o objecto de malabarismo
o insecto
voltejando cega a luz que lhe irradiam
o límpido cristal corrompido
o defunto.

E este patíbulo onde o próprio carrasco se enforcará
eu o digo
será erguido como símbolo de todos os homens.

Aqui a hora vai sendo longínqua meu amor e solene.
O caminho é grande o tempo tão pouco
tenhamos muita esperança e muito ódio
e vítreas flores a ornar o teu cabelo
porque serei o homem para as transportar
e tu a última mulher que as aceitará.

E enquanto assim for
erguer-se-á a nuvem de múltiplas estrelas
a nebulosa
que dizem estar a milhões de anos-luz
mas não acreditemos bem o sabes
porque a verdade a temos em nossas próprias mãos
oculta para a contemplarmos agora.







carlos eurico da costa
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998







21 junho 2009

gil t. sousa / nenhum deserto



5/


nenhum deserto me incendeia o olhar. nenhuma raiz me amarra o coração. quem recolheu o que em lugares assim deixei?





gil t. sousa
falso lugar
2004

19 junho 2009

paul éluard / teus olhos sempre puros






Dias de lentidão, dias de chuva,
Dias de espelhos quebrados e de agulhas perdidas,
Dias de pálpebras cerradas ao horizonte dos mares
De horas sempre iguais, dias de cativeiro.

Meu espírito que brilhava ainda sobre as folhas
E as flores, meu espírito está nu como o amor,
A aurora que ele esquece fá-lo baixar a cabeça
E contemplar seu corpo obediente e vão.

No entanto, eu vi os mais belos olhos do mundo,
Deuses de prata que traziam em suas mãos safiras,
Deuses verdadeiros, pássaros na terra
E na água, eu os vi.

Suas asas são as minhas, nada existe
Salvo o seu voo que sacode a minha miséria,
O seu voo de estrelas e de luz,
Rio, planície, rocha, o seu voo,
As ondas claras das suas asas,

O meu pensamento sustentado pela vida e pela morte.








paul éluard
algumas palavras (antologia)
tradução antónio ramos rosa e luiza neto jorge
dom quixote
1977









17 junho 2009

ievgueni ievtuchenko / entre a cidade sim e a cidade não







Sou um comboio rápido
que há muitos anos vai e vem
entre a cidade Sim
e a cidade Não.
Os meus nervos estão tensos
como cabos
entre a cidade Não
e a cidade Sim.

Tudo está morto e assustado na cidade Não.
É como um embrulho feito de tristeza.
Dentro dela todas as coisas franzem a testa.
Há medo nos olhos de todos os retratos.
De manhã enceram com bílis o soalho.
Os sofás são de falsidade, as paredes de miséria.
Nunca te darão nessa cidade um bom conselho,
nem um ramo de flores, nem um simples aceno.
As máquinas de escrever batem, com cópia,
a resposta:
"Não-não-não... não-não-não... não-não-não..."
E quando enfim se apagam as luzes
os fantasmas iniciam o seu lúgubre bailado.
Nunca, ainda que rebentes, arranjarás bilhete
para fugir da negra cidade. Não.

Ah, mas a vida na cidade Sim é um canto de ave.
Não tem paredes a cidade, é como um ninho.
As estrelas dizem que as acolhas nos teus braços.
E sem vergonha seus lábios pedem teus lábios,
num brando murmúrio: "São tudo tolices..."
A flor provocante implora que a cortes,
os rebanhos oferecem o leite com seus mugidos,
ninguém tem ponta de medo.
E aonde queiras ir te levam num instante comboios,
barcos, aviões,
e com um rumor antigo vai a água murmurando:
"Sim-sim-sim... sim-sim-sim... sim-sim-sim..."
Mas às vezes é certo que aborrece
ser-me dado, afinal, tudo sem esforço
nesta cidade Sim, deslumbrante de cor.

É melhor ir e vir até ao fim da minha vida
entre a cidade Sim
e a cidade Não!
É melhor ter os nervos tensos como cabos
entre a cidade Não
e a cidade Sim!










ievgueni ievtuchenko
in ievtuchenko em lisboa (1967)
dom quixote
1968










16 junho 2009

jorge luís borges / james joyce






Num dia do homem estão os dias
do tempo, desde aquele inconcebível
dia inicial do tempo, em que um terrível
Deus prefixou os dias e agonias,
até esse outro em que o ubíquo rio
do tempo terreal retorne à fonte
do Eterno, e que se apague no presente,
o ontem, o futuro, o que ora é meu.
Entre a alba e a noite se situa a história
universal. Assim, de noite vejo
a meus pés os caminhos do hebreu,
Cartago aniquilada, Inferno e Glória.
Dá-me, Senhor, a coragem e alegria
para escalar o pico deste dia.



Cambridge, 1968






jorge luís borges
nova antologia pessoal
trad. maria da piedade m. ferreira
difel
1983




15 junho 2009

jorge reis-sá / vou para casa






Vou para casa. Esqueço a cidade. Tenho quarenta
e cinco anos e já esqueci as estradas de alcatrão.


Quero novamente a bouça em frente ao quarto,
algum ouriço-cacheiro a esconder o corpo
da noite que se avizinha.






jorge reis-sá
vou para casa
quasi
2008



14 junho 2009

al berto / ofício de viajante









procurei dentro de ti o repercutido som do mar
a voz exacta das plantas e um naufrágio
o deslizar das aves, o amor obsessivo pelos espelhos
o rumor latejante dos sonhos, as cores dum astro explodindo
o cume nevado de cada montanha
difíceis rios, os dias

vivi talvez em Roma
no tempo em que ali chegavam os trigos da Sicília e os vinhos raros das
ilhas
a fama remota dos ladrões de Nuoro

todo o meu corpo estremeceu ao mudar de voz
cresci com o rapaz, embora nunca tivéssemos sido irmãos
e quando ficámos adultos para sempre
alguém lhe ofereceu o oficio de viajante

eu morri perto de Veneza
e quando atirava pedras aos pássaros sempre me ia lembrando de ti









al berto
o medo
assírio & alvim
1997







06 junho 2009

marosa di giorgio / os papéis selvagens





6

Pus um ovo, branco, puro, brilhante; parecia uma estrela ovalada. Mas anos atrás, já tinha posto outro, celeste, e outro cor de rosa; mas este era puro, branco, brilhante e o mais bonito. Coloquei-o numa taça com a mão por cima, para que não perdesse o brilho; mimei-o com descrição, com certa indiferença fingida. As mulheres ficaram invejosas, insidiosas, criticavam-me; ostensivamente cobriam os ombros e alongaram os vestidos.

Prossegui, inflexível.

Não posso dizer o que saiu do ovo porque não sei; mas, seja o que for, ainda me segue; a sua sombra filial e terna, abate-se sobre mim.








marosa di giorgio
os papéis selvagens
tradução de rosa alice branco
encontros de talábriga







04 junho 2009

pere gimferrer / vigília








E nunca nunca mais poder
falar a taça, o casco, a coisa
que partiu o vidro, inútil
peso das imagens de ontem.

Nenhuma destruição de linho
poderá dizer a cor da rosa
que esmaga na pupila fechada
o triunfo da luz de um clarim.

Nunca mais isto poder dizer,
não poder dizer pelo avesso
a ternura da pele clara,

os lábios, os sulcos, o beijo, o ventre,
os corpos ao assalto; e depois
não poder nunca repetir!







pere gimferrer
quinze poetas catalães
trad. egito gonçalves
ed. limiar
1994.






03 junho 2009

stig dagerman /o que vem a ser o meu talento?









(...)

Decido encher todas as minhas páginas em branco
com as mais belas combinações de palavras
que seja capaz de engendrar.
E depois, porque quero assegurar-me
que a vida não é absurda
e não me encontro só sobre a terra,
reúno-as todas num livro
e ofereço-o ao mundo.
Este, retribui-me com a riqueza,
a glória e o silêncio.
Mas não sei que fazer com este dinheiro,
nem que prazer tirar
de contribuir para o progresso da literatura,
pois só desejo o que jamais obterei
- a certeza de que as minhas palavras
tocaram o coração do mundo.

É então que me pergunto
o que vem a ser o meu talento,
e descubro que não passa de uma forma
de me consolar da solidão.

Risível consolo - que apenas me torna
cinco vezes mais pesada
a solidão.






stig dagerman
a nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer
versão de paula castro e josé daniel ribeiro
fenda edições
1989







02 junho 2009

agustina bessa-luís / europeus





Possivelmente, todos nós, nas terras da Europa, nos parecemos. Temos uma sensibilidade comum perante a vida e as suas mudanças. O que mais nos agrada é inventariar as coisas do progresso para não nos iludirmos com ele. Mas, acima de tudo, amamos tudo aquilo que afinal não está na agenda da celebridade. Amamos os quatro favores da pobreza, que são: o humor, o vínculo ao quotidiano, o respeito pela morte e por tudo o que a pode atrasar ou activar. E amamos os caminhos da terra que percorremos sem descanso, mesmo quando somos obrigados a um ofício sedentário.






agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008





31 maio 2009

gastão cruz / final







As palavras despedem-se dos dias
em que falar é o melhor serviço
Caem mortas e vivas da linguagem
vitimada

Mas quando regressarem
a sua fúria grande prenderá
nos humanos céus húmidos a arte
esquecida e excessiva da poesia.






gastão cruz
poemas reunidos
dom quixote
1999







25 maio 2009

pedro gil-pedro / para que ninguém sobreviva ao perdão






O modo exemplar
da lapidação – irrepreensível
a executar

a infligir por cima
e por baixo as alvenarias

e a conformidade do sangue.

exímio e constante
nos pormenores do fogo

anterior aos incidentes
da predição e às funções
do alabastro.





















pedro gil-pedro
para que ninguém sobreviva ao perdão
cosmorama
2008






22 maio 2009

josé alberto oliveira / elogio da solidão








Uma casa para estrear e descobrir
em quantas salas se acomoda a solidão.
Cozinhou o jantar e come atentamente
como todos quantos dividem a comida em silêncio:
o náufrago, o mendigo, o oleiro na lancheira.

Coze o seu barro, um jeito de partir o pão
que deve ao tempo uma lentidão coalhada.
O ruído do vizinho não o incomoda.
Nenhuma fala ou resíduo humano leveda
uma página ao acaso. Pode decidir beber mais vinho
ou inaugurar a leitura de outro livro.
Mesmo sair para beber café e mastigar o frio.

No pasto, a chuva rega a placidez do boi;
abana a cabeça, fumegam as narinas,
desenha-se num fundo de pinhal que o vento
castiga; na caruma molhada pressente-se
o rumor de um cão absorto na ilusão
do que procura. Coisas mínimas, irrisórias,
vão salvar o resto da noite de presumir felicidade.

Lá fora a cidade está cercada na convicção
das suas vidas perdoáveis, mercando
um alimento longamente dispensável
- a respiração em vitualhas e sarcasmos,
a pobreza irresignável e irresolúvel,
o cansaço de não estar só e não querer estar.









josé alberto de oliveira
por alguns dias
assírio & alvim
1992







19 maio 2009

andre breton e paul éluard / tentativa de simulação do delírio de interpretação





Quando se acabou este amor, encontrava-me como a ave no ramo. Já não servia para nada. No entanto observava que as manchas de petróleo na água me devolviam a minha imagem e apercebi-me de que a Pont-au-Change, junto da qual se encontra o mercado das aves, se curvava cada vez mais.

Foi assim que um belo dia passei para sempre para o outro lado do arco-íris à força de ver as aves furta-cores. Agora nada mais tenho a fazer na terra. Assim como as outras aves digo que já não tenho que cumprir na terra, de dar testemunho de presença alada sobre a terra. Recuso-me a repetir convosco a canção primaveril: «Morremos pelos passari-i-nhos, façam bem aos passari-i-inhos!»

A variedade de cores da chuvada fala papagaio. Choca o vento que sai do ovo com grãos nos olhos. A dupla pálpebra do Sol levanta-se e baixa-se sobre a vida. As patas das aves sobre o vidro do céu são o que eu recentemente chamava as estrelas. A própria Terra de que tão mal se explica a marcha, enquanto se vive sob a abóbada, a terra espalmada pelos seus desertos está submetida às leis da migração.

O verão de pena não acabou. Abriram-se os alçapões e ali se enfiaram searas de penugem. O tempo tem a sua muda.

O galo do campanário adorna o fumo dos tiros enquanto a viúva de peito alaranjado volta ao cemitério cujas cruzes são o ponteado minúsculo dos diamantes do Senegal e que o homem continua a imaginar-se na terra como o melro no dorso do búfalo, sobre o mar como a gaivota na crista das vagas, o melro sólido e a gaivota líquida.

Horo, de dedo na boca, é a avalanche. Eu não tinha visto estes passarinheiros que procuram homens no céu e se apanham no ninho com as pedras que atiram para o ar.

As fénix vêm trazer-me o meu alimento de vermes brilhantes e as suas asas que incessantemente se reanimam no ouro da terra são o mar e o céu que só se vêem esbraseados nos dias de tempestade, e que escondam as suas cristas de raios nas penas no momento em que adormecem sobre o único pé do ar.

Os moinhos dos relâmpagos quebraram-lhes a concha e escapam em voo rápido, a aragem come as dunas, o horizonte tenta evitar as nuvens.

Reconhecereis que os vossos leitos-gaiolas, e as vossas grades torcidas, e os vossos sobrados picados, e os vossos e as vossas moscadas e os vossos espantalhos à última moda, e os vossos fios telegráficos, e as vossas viagens em compartimentos de pombo, e o soco de cordeiros das vossas estátuas de rapina, e as vossas corridas de sebes feitas ao crepúsculo de pintarroxos que levantam voo, e as horas, e os minutos, e os segundos nas vossas cabeças de pica-paus, e as vossas gloriosas conquistas, contudo, as vossas gloriosas conquistas de cucos! Todas armadilhas de graça nunca ali estiveram senão para me fazerem passar as barreiras do perigo, as barreiras que separam o medo da coragem. Não contem mais comigo para vos fazer esquecer que os vossos fantasmas têm a forma das aves-do-paraíso.

No começo era o canto. Toda a gente às janelas! De uma margem à outra já não se vê senão Leda. As minhas asas redemoinhantes são as portas pelas quais ela entra no pescoço do cisne, na grande praça deserta que é o coração da ave da noite.









andre breton e paul éluard
as possessões
a imaculada concepção
tradução franco de sousa
estúdios cor
1972

07 maio 2009

feliu formosa / baterás duas vezes








Baterás duas vezes e eu abrirei
e não quererei acreditar que sejas tu.
Entrarás num andar que desconheces
e que é feito apenas para sobreviver.
E aí me encontrarás, quem sabe
porque estranho desígnio. Entrando
na sala de jantar poderás ver o teu retrato
e os nossos livros. Soará o Nocturno.
Folhearás, quem sabe, Virginia Woolf.
Virei atrás de ti com o desejo
de sentir no meu rosto os teus cabelos.
Sentar-te-ei com infinita ternura
num dos velhos sofás compartilhados
(onde estudavas nos últimos tempos
um longo monólogo de mulher
solitária — o que nunca foste). Espiarei
os teus olhos, o triste sorriso
dos teus lábios amáveis, entreabertos,
e tudo acabará com um abraço
que será o primeiro. Deixará de haver
passado ou futuro. Tudo será lógico.

E este poema nunca terá existido.








feliu formosa
quinze poetas catalães
trad. egito gonçalves
ed. limiar, porto
1994








03 maio 2009

josé miguel silva / os melhores anos da minha vida






Os melhores anos da minha vida
passaram comigo ausente, passaram
numa corrente subterrânea.
Não me apercebi de nada, distraído
com a queda das folhas,
a densa mistura de pão e desordem.

Estava tudo em aberto, mas eu não sabia
senão de pequenas querelas,
e tímidos passos à toa, sempre à espera
de não ter futuro. Sentado, como um pobre,
sobre o poço de petróleo,
eu media com tesouras as semanas,
misturava-me com livros, ansiava
pelo dia em que deixasse de sangrar.

Os melhores anos da minha vida troquei-os
por isto.






josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d'água
2003.






28 abril 2009

ingeborg bachmann / uma espécie de perda









Usámos a dois: estações do ano, livros e uma música.
As chaves, as taças de chá, o cesto do pão, lençóis de linho e uma
cama.
Um enxoval de palavras, de gestos, trazidos, utilizados,
gastos.
Cumprimos o regulamento de um prédio. Dissemos. Fizemos.
E estendemos sempre a mão.

Apaixonei-me por Invernos, por um septeto vienense e por
Verões.
Por mapas, por um ninho de montanha, uma praia e uma
cama.
Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis,
idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada,

(- o jornal dobrado, a cinza fria, o papel com um aponta-
mento)
sem temores religiosos, pois a igreja era esta cama.

De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável.
Da varanda podia saudar os povos, meus vizinhos.
Ao fogo da lareira, em segurança, o meu cabelo tinha a sua cor
mais intensa.
A campainha da porta era o alarme da minha alegria.

Não te perdi a ti,
perdi o mundo.








ingeborg bachmann
o tempo aprazado
(últimos poemas 1957-1967)
trad. judite berkemeier e joão barrento
assírio & alvim
1992




24 abril 2009

celso emílio ferreiro / o profeta







pouco antes de morrer
disse ele ao povo:
deus te dê ira,
que paciência tens de mais.







celso emilio ferreiro
galiza, 1914-1979






22 abril 2009

gil t. sousa / a tempestade, giorgione




4/


não é o mesmo sem a sombra do teu ombro, nem o vaporetto lá fora me há-de transportar aos mesmos lugares. esperam-me luzes, silêncios e trovões. decifrei-o, enfim. nunca farás parte desse mistério nem da sua revelação.





gil t. sousa
falso lugar
2004


20 abril 2009

samuel beckett / queria que o meu amor morresse







queria que o meu amor morresse
e a chuva chovesse sobre o cemitério
e sobre mim pelas ruas onde eu andar
chorando aquela que julgou amar-me









samuel beckett
trad. miguel esteves cardoso
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990







18 abril 2009

sylvia plath / espelho








Sou prata e exacta. Não tenho ideias preconcebidas.
Tudo o que vejo aceito sem reservas
Tal como é, inturvado por aversão ou amor.
Não sou cruel, apenas verdadeira -
O olho de um pequeno deus, de quatro cantos.
A maior parte do tempo medito sobre a parede oposta.
É cor-de-rosa com manchas. Tenho-a olhado tanto
Que julgo ser parte do meu coração. Mas vacila.
Rostos e trevas separam-nos vezes sem conta.

Agora sou um lago. Uma mulher curva-se sobre mim,
Sondando o meu âmbito em busca do que ela é realmente.
Vira-se depois para as velas ou a lua, esses mentirosos.
Vejo-lhe as costas e reflicto-as fielmente.
Ela recompensa-me com lágrimas e um agitar de mãos.
Sou importante para ela. Ela vai e vem.
Todas as manhãs é o seu rosto que substitui as trevas.
Em mim ela afogou uma jovem e em mim uma velha
Ergue-se para ela dia após dia como um terrível peixe.







sylvia plath
leituras poemas do inglês
trad. joão ferreira duarte
relógio d´água
1993






14 abril 2009

álvaro de campos / nunca conheci quem tivesse levado porrada






Nunca conheci quem tivesse levado porrada
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irresponsavelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infama da vileza.






álvaro de campos
poemas
“sê plural como o universo…”
fernando pessoa , antologia

ambar
2008







10 abril 2009

robert musil /sistemas de ilusão







(…) Com uma arte grandiosa e diversa, geramos uma ilusão que nos ajuda a viver paredes meias com as coisas mais monstruosas sem perder a tranquilidade, porque reconhecemos nesses esgares petrificados do universo uma mesa ou uma cadeira, um grito ou um braço estendido, uma velocidade ou um frango assado. Entre um abismo celeste aberto sobre as nossas cabeças e um abismo celeste camuflado sob os nossos pés, somos capazes de nos sentir tão tranquilos à superfície da Terra como num quarto fechado. Sabemos que a vida se perde tanto nas desumanas vastidões do espaço como na desumana estreiteza do mundo dos átomos, mas entre as duas coisas tratamos uma série de configurações como coisas do mundo, sem nos deixarmos minimamente perturbar pela evidência de que isso significa tão-somente uma preferência pelas impressões que captamos a partir de uma certa distância média. Tal comportamento está bastante abaixo das possibilidades do nosso entendimento, mas prova precisamente que os sentimentos desempenham aí um papel decisivo. E com efeito, os mais importantes dispositivos intelectuais da humanidade servem a experiência de um estado de espírito estável, e todos os sentimentos, todas as paixões do mundo são nada frente ao esforço enorme, mas totalmente inconsciente, que a humanidade faz para manter essa sua serena tranquilidade! Quase não vale a pena falar disso, de tal modo o seu funcionamento é impecável. Mas, se virmos mais de perto, é extremamente artificial o estado de consciência que confere ao homem o porte íntegro no meio do sistema dos astros e lhe permite, face ao quase infinito desconhecimento do mundo, meter dignamente a mão entre o segundo e o terceiro botão do casaco. E, para conseguir isso, todo o ser humano, o sábio tal como o idiota, não recorre apenas aos seus artifícios; estes sistemas pessoais de artifícios são também engenhosamente inseridos nos dispositivos de equilíbrio morais e intelectuais da sociedade e da totalidade que, a uma escala maior, servem os mesmos fins. (…)










robert musil
o homem sem qualidades vol. I
tradução de joão barrento
dom quixote
2008

06 abril 2009

maria gabriela llansol / o começo de um livro é precioso






294

Eu estava habituada a vir para casa com um velho amigo
Que me punha a mão nos ombros. Eu raramente tropeçava
Porque dele irradiava o calor das macieiras e a paz das
Tílias. Era a árvore dos meus passos. E, regressando a casa,
Regressava à Paisagem que humana me fazia.






maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003





01 abril 2009

wystan hugh auden / o cidadão desconhecido




(A JS/07/M/378 o Estado ergueu este Monumento de Mármore)




Segundo apurou o Instituto de Estatística,
Contra ele nunca existiu qualquer queixa oficial,
E todos os relatórios sobre a sua conduta confirmaram:
No moderno sentido de uma palavra velha, ele era um santo,
Pois em tudo o que fez serviu a Grande Comunidade.
Com excepção da Guerra e até ao dia da reforma,
Trabalhou numa fábrica e nunca foi despedido;sempre satisfez os seus patrões, Máquinas Fraude, Ltda.
Mas não era fura-greves nem tinha opiniões estranhas,
Pois o Sindicato informa que sempre pagou as quotas
(E o seu Sindicato tem a nossa confiança),
E o nosso pessoal de Psicologia Social descobriu
Que ele era popular entre os colegas e gostava de um copo.
A Imprensa não duvida de que comprava um jornal por dia
E que as reacções à publicidade eram cem por cento normais.
Apólices tiradas em seu nome provam que tinha todos os seguros,
Eo Boletim de Saúde mostra que esteve uma vez no hospital e saiu curado.
Tanto o Gabinete de Estudos dos Produtores como o da Qualidade de Vida declaram
Que estava plenamente sensibilizado para as vantagens da Compra a Prestações
E tinha tudo o que é preciso ao Homem Moderno:
Um gira-discos, um rádio, um carro e um frigorífico.
Os nossos inquiridores da Opinião Pública alegraram-se
Por ter as opiniões certas para a época do ano;
Quando havia paz, era pela paz, quando havia guerra, ele ia,
Era casado e aumentou com cinco filhos a população,
O que, diz o nosso Eugenista, era o número certo para um pai da sua geração,
E os nossos professores informam que nunca interferiu com a sua educação.
Era livre? Era feliz? A pergunta é absurda:
Se algo estivesse errado, com certeza teríamos sabido.






wystan hugh auden
leituras, poemas do inglês
tradução de joão ferreira duarte
relógio d´água
1993




24 março 2009

luís miguel nava / os olhos






Sempre que sobre mim poisava os olhos, o olhar dele era o de quem os volta para dentro de si próprio, como se nesse espaço me quisesse aprisionar ou dele, sem que eu sequer o suspeitasse, há muito me tivesse feito residente. Raro era, porém, surgirem sob as pálpebras, no rosto, onde seria de esperar vermo-los, esses olhos. Não o faziam senão quando, como depois veio a ser sabido, até aí com ímpeto os alçava o seu mar interior nas suas cristas.






luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
rebentação
publicações dom quixote
2002




22 março 2009

gil t. sousa / tudo se pode esconder nos olhos...

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3/

tudo se pode esconder nos olhos mais nus. esta descoberta transforma-te e transforma o mundo em que te moves.







gil t. sousa
falso lugar
2004
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20 março 2009

hans-ulrich treichel / esforço







O suor corre
em bica como se eu
cortasse troncos de árvore
e afinal eu só escrevo
um pequeno poema
muito frio







hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994




19 março 2009

leopoldo maria panero / conversação




Morrerei em Paris com aguaceiro
são testemunhas os meus ossos umerais
e as minhas omoplatas
” César Vallejo








Caíam e caíam a meus pés generais
e ricos e plebeus
que não quiseram arriscar-se à vida
e todos choravam pela boneca triste
e voltava todos os dias a chorar tremendo
a minha casa
filho do medo, a chorar
pela minha boneca triste.







leopoldo maria panero
conversação
tradução pedro serra
livros cotovia
2001





18 março 2009

gil t. sousa / não há grandes poetas

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2/

não há grandes poetas nem grandes poemas; há palavras que nos agarram no momento certo. só isso.








gil t. sousa
falso lugar
2004






16 março 2009

andre breton e paul éluard / tentativa de simulação da paralisia geral





Minha grande adorada bela como tudo na terra e nas mais belas estrelas da terra que eu adoro minha grande mulher adorada por todos os poderes das estrelas bela com a beleza dos biliões de rainhas que adornam a terra a adoração que tenho pela tua beleza põe-me de joelhos para te suplicar que penses cm mim ponho-me aos teus joelhos adoro a tua beleza pensa em mim tu minha beleza adorável minha grande beleza que adoro faço rolar os diamantes no musgo mais alto que as florestas de que os teus cabelos mais altos pensam em mim — não me esqueças minha mulherzinha nos meus joelhos na altura ao canto da. lareira sobre a areia em esmeralda — olho para ti na minha mão que me serve para me firmar em tudo no mundo para que tu me reconheças por aquilo que sou minha mulher morena-loura minha bela e minha tola pensa em mim nos paraísos com a cabeça nas minhas mãos.
Eu não estava cansado dos cento e cinquenta castelos onde nos íamos amar irão construir-me amanhã outros cem mil cacei das florestas de baobás de teus olhos os pavões as panteras e as aves-liras eu os encerrarei nos meus castelos fortes e iremos passear ambos nas florestas da Ásia da Europa da África da América que rodeiam os nossos castelos nas florestas admiráveis dos teus olhos que estão habituados ao meu esplendor.
Não tens de esperar pela surpresa que te quero fazer pelo teu aniversário que é hoje no mesmo dia que o meu — vou fazer-ta imediatamente pois esperei quinze vezes o ano mil antes de te fazer surpresa de te pedir para pensares em mim às escondidas — quero que penses em mim rindo minha jovem mulher eterna. Contei antes de adormecer nuvens e nuvens de carros cheios de beterrabas para o sol e quero levar-te à noite à praia de astracã que estão prestes a construir com dois horizontes para os teus olhos de petróleo para fazer a guerra eu te levarei por caminhos de diamantes pavimentados de primaveras de esmeraldas e o manto de arminho com que quero cobrir-te é urna ave de rapina os diamantes que teus pés pisarão mandei-os lapidar em forma de borboleta. Pensa em mim que não sonho senão com o teu clarão onde adormece o luxo alegre de uma terra e de todos os astros que conquistei para ti adoro-te e adoro os teus olhos e abri os teus olhos abertos a todos aqueles que viram e darei a todos os seres que os teus olhos viram vestidos de ouro e de cristal vestidos que deverão tirar quando os teus olhos os tiverem embaciado com o seu desprezo. Sangro no meu coração apenas com as iniciais do teu nome num estandarte com iniciais do teu nome que são todas as letras de que o z é a primeira no infinito dos alfabetos e das civilizações onde te amarei ainda pois queres ser minha mulher e pensar em mim nos países onde já não existe termo médio. O meu coração sangra na tua boca e volta a fechar-se na tua boca em todos os castanheiros-rosas da avenida da tua boca onde vamos na poeira deslumbrante deitarmo-nos entre os meteoros da tua beleza que eu adoro minha grande criatura tão bela que eu estou feliz por embelezar os meus tesouros com a tua presença teu pensamento e teu nome que multiplica as facetas do êxtase dos meus tesouros com o teu nome que eu adoro porque encontra um eco em todos os espelhos de beleza do meu esplendor minha mulher original meu andaime de pau-rosa tu és a minha culpa da minha culpa da minha muito grande culpa como Jesus Cristo é a mulher da minha cruz — doze vezes doze mil cento e quarenta e nove vezes te amei com paixão no caminho e estou crucificado ao norte a este a oeste e ao norte pelo teu beijo de rádio e quero-te e és no meu espelho de pérolas o hálito do homem que não te trará à superfície e que te ama na adoração minha mulher deitada de pé quando estás sentada a pentear-te.
Tu virás tu pensas em mim tu virás tu correrás nas tuas treze pernas cheias e em todas as tuas pernas vazias que batem o ar com o baloiçar dos teus braços urna multidão de braços que querem enlaçar-me a mim de joelhos entre as tuas pernas e os teus braços para te enlaçar sem receio de que as minhas locomotivas te impeçam de vir até mim e sigo-te e estou diante de ti para te deter para te dar todas as estrelas do céu num beijo nos olhos todos os beijos do mundo numa estrela sobre a boca.



Bem teu em archote.




P. S. — Queria um botim para a missa com uma corda de nós para marcar as páginas. Traz-me também um estandarte franco-alemão para eu colocar no terreno vago. E uma libra de chocolate Menier com a menina que cola anúncios (já não me lembro). E depois mais nove dessas meninas com os seus advogados e os seus juízes e tu vem no comboio especial com a velocidade da luz e os bandidos do Far-West que me distrairão um minuto que aqui salta infelizmente como as rolhas de champanhe. E um patim. O meu suspensório esquerdo acaba de se partir eu levantava o mundo como uma pena. Podes fazer-me um favor compra um tank quero ver-te chegar como as fadas.








andre breton e paul éluard
as possessões
a imaculada concepção
tradução franco de sousa
estúdios cor
1972




09 março 2009

vergílio ferreira / há um limite para se ser profundo






124 - Há um limite para se ser profundo. Há um limite para se ser subtil. Há um limite para se ser bom observador. Nós temos de nos mover num mundo de limites para a viabilidade de se ser. O limite da profundeza é a escuridão. O da observação é o do microscópio electrónico. Mas tudo no homem é assim. Para lá de certos limites é a confusão, a gratuidade, a loucura. Assim o grande amor se reconhece na morte ou o excesso da razão na confusão ou sofisma ou absurdo ou impensável ou gratuito. Todo o excessivo no homem é desumano ou degenerescência ou vazio. Mas que há de grande no homem senão o excesso de si? E é decerto aí que mora Deus. Ou mais para lá.








vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001





02 março 2009

josé tolentino mendonça / me and my brother








Percorria os lugares daquela fotografia
a muralha de silvas, a quinta reencontrada
os finais de ano
e aquilo que depois não está
onde antes existiu

Tinha esquecido para que serve
a infância
não é uma terra protectora
ao contrário do que dizem
com os seus céus que vemos cair
os fragmentos selvagens
em que mais tarde pensamos
vezes sem conta
o pudor já então reconhecível
que nos faz trair a vida
um pouco como tudo isto










josé tolentino mendonça
a noite abre meus olhos
(poesia reunida)
assírio & alvim
2006








28 fevereiro 2009

henri michaux / voltar





Hesitei em voltar a casa dos meus pais. Como é que eles fazem quando chove? pensei eu. Depois lembrei-me que havia um tecto no meu quarto. «Não importa!» e, desconfiado, não quis voltar.
É em vão que agora me chamam. Assobiam, assobiam na noite. Mas é em vão que utilizam o silêncio da noite para chegar até mim. É absolutamente em vão.







henri michaux
la nuit remue (1935)
antologia
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
1999



26 fevereiro 2009

ezra pound / cathay















Poema junto à ponte em Ten-shin




Março chegou ao contraforte da ponte,
Sobre mil portões pendem ramos de pêssegos e de alperces,
Pela manhã há flores de cortar o coração,
E o anoitecer leva-as com as águas para leste.
Há pétalas nas águas já passadas e nas que passam,
E no retornar dos redemoinhos,
Mas os homens de hoje não são os homens de outros tempos,
Embora de modo igual se debrucem sobre a ponte.

A cor do mar move-se ao amanhecer
E os príncipes ainda estão em filas, junto ao trono,
E a lua cai sobre os portais de Sei-jõ-yõ,
E pega-se às paredes ao topo do portão.
Com capacetes cintilantes contra a nuvem e o sol
Os nobres saem da corte, para fronteiras distantes,
Montam cavalos que parecem dragões,
Cavalos com cabeçadas de metal amarelo,
E as ruas abrem alas para que passem.
Altiva a sua passagem,
Altivos os seus passos a caminho dos banquetes,
Dos grandes salões com comida esquisita,
Do ar perfumado e raparigas a dançar,
Das flautas límpidas e do cantar límpido;
Da dança dos setenta pares;
Das perseguições loucas pelos jardins.
A noite e o dia são dados ao prazer
Que eles pensam durará por mil Outonos,
Inesgotáveis Outonos.
Para eles os cães amarelos uivam presságios em vão,
E que são eles comparados com a senhora Ryokushu,
Que foi causa de ódio!
Quem entre eles é um homem como Han-Rei
Que partiu sozinho com a amante,
Ela de cabelo solto, e ele o seu próprio barqueiro!


(Rihaku)







ezra pound
cathay
tradução gualter cunha
relógio d´água
1995





22 fevereiro 2009

jürgen theobaldy / poema sobre o amor









Hoje de manhã, ao acordar,
pensei:
hoje, o amor vai assaltar-te
embora não soubesse como ele é
nem o que vale.

Eu acho que as coisas realmente grandes na história
(tanto na história UNIVERSAL
como na história pessoal
mas talvez eu esteja errado)
de modo nenhum são feitas por amor
ou em amor ou qualquer coisa assim;
eu acho que as coisas realmente grandes
se fazem por razões completamente diferentes.
Por exemplo, a SIEMENS não constrói por amor
uma barragem em Cabora Bassa, e também
uma revolução do amor não
levará a nada.
Claro que se pode tentar
mas eu não acredito nisso.

E tentei
explicar isto à mulher-do-meu-amor
(que acordou logo a seguir a mim
talvez eu a tenha acordado
ao erguer-me para olhar para o despertador
passava pouco das onze e era sábado)
e ela disse
que não fazia SENTIDO
eu estar AGORA a explicar-lhe isto
e eu dei-lhe razão
e
ela
deitou a mão à minha piça. Depois
fizemos amor até ao meio-dia-e-meia
sem que daí
resultasse
nada de verdadeiramente grande
digamos: pelo menos com metade da grandeza
dos esforços de Leviné em Munique em 1919.










jürgen theobaldy
(alemanha, n. 1944)
versão de joão barrento
lido aqui









18 fevereiro 2009

m. fernanda silva / essas mulheres









as mulheres que se deitam à noite
nos quartos levemente amarelecidos do fumo
dos cigarros
daqueles homens que as
frequentam
lhes exigem excitações inéditas
lhes gritam
lhes choram nos colos
e soluçam
desamparados
lhes atiram alguns euros
sobre os lençois encardidos
das camas murchas

as mulheres de todos os homens e mais
um
e menos um
que nem sonhos têm
pois morrem todos os dias
e noites
nas gélidas camas

essas mulheres são como sombras
translúcidas

não se recortam em nenhum
horizonte
em paisagem alguma

não desenham corações
nas janelas embaciadas
quando há inverno
não esperam os fulgores
dos ocasos
nos verões intermináveis

e só cheiram as flores dos
anúncios televisivos
dos outdoors convidativos
das revistas cor de rosa que
às vezes espreitam
nos quiosques superlotados
entre notícias
artes banais
economias em desastres
revistas informáticas
vídeos mais baratos
armadilhas de mexericos
de ridículas damas botoxadas
nas maçãs
dos rostos anciãos


as mulheres das noites paralelas
dos dias de sonos agitados
com filhos na berma das cidades
pais velhos em aldeias
quase extintas
elas também
permanentemente
extintas
corpos de almas esvoaçantes
buscam não sabem o quê
porque já nada sabem
excepto que lhes é proibido
ser mulheres









m.f.s.









15 fevereiro 2009

edgar lee masters / hod putt







Aqui jazo eu junto à campa
do velho Bill Piersol,
que enriqueceu no comércio com os índios e que
depois tirou proveito da Lei das Falências
para emergir mais rico que nunca.
Eu, cansado de trabalhos e miséria
ao ver o velho Bill, e outros, cada vez mais ricos,
ataquei certa noite um viajante, junto a Proctor’ Grove,
para o roubar, e matei-o sem querer,
pelo que me condenaram a morrer na forca.
Foi esta a minha maneira de declarar falência.
Nós os dois, que aproveitamos, cada um a seu modo, a lei das
falências,
dormimos agora em paz, lado a lado.









edgar lee masters
spoon river
tradução josé miguel silva
relógio d´água
2003




11 fevereiro 2009

fernando lemos / as novas leis










Atrás de qualquer porta
está sempre o mar alto que me espreita
Ou então a capa em que o vento abate
a dúvida ou a suspeita

Linhas rectas seguem cidades
quebrando fazendo nós
quando um homem lança mão num estrado
de abelhas completamente sós

Criaram-se novas leis
novos modelos de calçado
Fotografias com cores
décors do patriarcado

Mas as facas de cortar fruta
que correm a praia de extremo a extremo
dançam em pontas sobre o pequeno
E as mães que já não sabem
fazer as suas contas
deitam-se ao mar pelo que vêem
e julgam-no sereno

Saem dos astros pés das ondas mãos
a taparem os rostos os medos
As fardas que andam nuas
sobram armas lugares amenos

O mundo não previa tanto
e esgotou-se a lotação
Vão pelos canos correndo pardais cegos
como convém à perseguição

Criaram-se novas leis
há pânico pelas nossas varandas
nascem entretanto árvores nuas
tantas
Mas os dentes ainda são de pedra
apesar da nova lei que os não respeita
Embora a máquina de fazer peças para novas peças
seja o mar alto que atrás da porta me espreita.







fernando lemos
teclado universal
morais
1963







09 fevereiro 2009

robert musil / o pensar



















(…)

Infelizmente, não há nada mais difícil em literatura do que descrever um homem a pensar. Um grande inventor respondeu um dia a quem lhe perguntava como fazia para ter tantas ideias novas: «pensando ininterruptamente nelas». E de facto bem pode dizer-se que as ideias inesperadas nos vêm porque estávamos à espera delas. São, em grande parte, o resultado conseguido de um carácter, de certas inclinações constantes, de uma ambição tenaz, de uma incessante ocupação com elas. Que tédio, uma perseverança assim! Mas, vista de outro ângulo, a solução de um problema intelectual não acontece de modo muito diferente, como um cão que traz um pau na boca e quer passar por uma porta estreita; vira a cabeça para a esquerda e para a direita tantas vezes até que consegue passar com o pau; o mesmo acontece connosco, apenas com a diferença de que não fazemos tantas tentativas ao acaso, mas sabemos já, por experiência, mais ou menos como fazer as coisas. E se uma cabeça inteligente, como é óbvio, revela muito mais habilidade e experiência nas voltas que dá do que uma cabeça estúpida, o momento em que consegue passar não é para ela menos surpreendente; de repente estamos do outro lado, e sentimos claramente um ligeiro desconcerto em nós pelo facto de as ideias terem vindo por sua iniciativa, em vez de esperarem pelo autor. A essa sensação desconcertante chamamos nós hoje em dia intuição, depois de, antes, outros lhe terem chamado inspiração, e julgamos ver nisso algo de suprapessoal; mas trata-se antes de qualquer coisa de impessoal, concretamente da afinidade e da coerência das próprias coisas que se encontram na nossa cabeça.

Quanto melhor a cabeça, tanto menos se dará por ela. É por isso que o pensamento, enquanto estiver em movimento, é um estado deplorável, semelhante a uma cólica de todas as circunvoluções do cérebro; e quando chega ao fim já não tem a forma do processo de pensamento tal como o experienciamos, mas a da coisa já pensada, que, infelizmente, é uma forma impessoal, porque então o pensamento se volta para fora e está preparado para comunicar com o mundo. Quando uma pessoa pensa, torna-se por assim dizer impossível captar o momento entre o pessoal e o impessoal, e é certamente por isso que o pensar é um embaraço tão grande para os escritores que eles preferem evitá-lo.

(…)









robert musil
o homem sem qualidades vol. I
tradução de joão barrento
dom quixote
2008




04 fevereiro 2009

josé gomes ferreira











(Deve ler-se este poema depois de pôr a
tocar um disco dos anos trinta.)










E se o tecto abatesse de repente
e víssemos no céu
as nuvens, a lua e as estrelas?


Tudo sonho…


É impossível existir a lua
e aquele saxofone tocado por um preto
com dentes brancos a açucarar a música.










josé gomes ferreira
poezz
almedina
2004











01 fevereiro 2009

marin sorescu / o caracol







O caracol tapou bem os olhos
Com cera,
Meteu a cabeça no peito
E olha fixamente
Para dentro.

Em cima dele
A casca —
A sua obra perfeita
Que lhe mete nojo —

À volta da casca
O mundo,
O resto do mundo,
Disposto aqui e além
Segundo certas leis
Que lhe mete nojo —

E no centro deste
Nojo universal
Está ele —
O caracol,
De que sente nojo.









marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997