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18 setembro 2011

robert musil / relações




(…)
O que estava a pensar significava uma despedida da maior parte das relações da sua vida; quanto a isso não tinha ilusões. Na verdade, as nossas vidas estão divididas, e partes delas cruzam-se com as de outras pessoas; o que sonhamos depende do acto de sonhar, mas também dos sonhos que todos os outros têm; o que fazemos tem a sua razão de ser em si, mas mais ainda com o que outras pessoas fazem; e as nossas convicções ligam-se a outras que só numa ínfima parte podemos ver como nossas. Conclusão: pretender agir a partir de uma realidade plena que seja só nossa é, por isso, uma exigência absolutamente irrealista. E precisamente ele acreditara sempre que é preciso partilhar as nossas convicções, ter a coragem de viver no meio de contradições morais, porque é esse o preço das grandes realizações. Estaria ele pelo menos convencido do que pensava a propósito da possibilidade e do significado de uma forma de vida diferente? De modo nenhum! E apesar disso não podia evitar que o seu sentimento fosse atraído por isso como se tivesse diante de si os sinais inconfundíveis de uma realidade pela qual esperara anos a fio.
(…)







robert musil
o homem sem qualidades II
trad. joão barrento
dom quixote
2008






10 abril 2009

robert musil /sistemas de ilusão







(…) Com uma arte grandiosa e diversa, geramos uma ilusão que nos ajuda a viver paredes meias com as coisas mais monstruosas sem perder a tranquilidade, porque reconhecemos nesses esgares petrificados do universo uma mesa ou uma cadeira, um grito ou um braço estendido, uma velocidade ou um frango assado. Entre um abismo celeste aberto sobre as nossas cabeças e um abismo celeste camuflado sob os nossos pés, somos capazes de nos sentir tão tranquilos à superfície da Terra como num quarto fechado. Sabemos que a vida se perde tanto nas desumanas vastidões do espaço como na desumana estreiteza do mundo dos átomos, mas entre as duas coisas tratamos uma série de configurações como coisas do mundo, sem nos deixarmos minimamente perturbar pela evidência de que isso significa tão-somente uma preferência pelas impressões que captamos a partir de uma certa distância média. Tal comportamento está bastante abaixo das possibilidades do nosso entendimento, mas prova precisamente que os sentimentos desempenham aí um papel decisivo. E com efeito, os mais importantes dispositivos intelectuais da humanidade servem a experiência de um estado de espírito estável, e todos os sentimentos, todas as paixões do mundo são nada frente ao esforço enorme, mas totalmente inconsciente, que a humanidade faz para manter essa sua serena tranquilidade! Quase não vale a pena falar disso, de tal modo o seu funcionamento é impecável. Mas, se virmos mais de perto, é extremamente artificial o estado de consciência que confere ao homem o porte íntegro no meio do sistema dos astros e lhe permite, face ao quase infinito desconhecimento do mundo, meter dignamente a mão entre o segundo e o terceiro botão do casaco. E, para conseguir isso, todo o ser humano, o sábio tal como o idiota, não recorre apenas aos seus artifícios; estes sistemas pessoais de artifícios são também engenhosamente inseridos nos dispositivos de equilíbrio morais e intelectuais da sociedade e da totalidade que, a uma escala maior, servem os mesmos fins. (…)










robert musil
o homem sem qualidades vol. I
tradução de joão barrento
dom quixote
2008

09 fevereiro 2009

robert musil / o pensar



















(…)

Infelizmente, não há nada mais difícil em literatura do que descrever um homem a pensar. Um grande inventor respondeu um dia a quem lhe perguntava como fazia para ter tantas ideias novas: «pensando ininterruptamente nelas». E de facto bem pode dizer-se que as ideias inesperadas nos vêm porque estávamos à espera delas. São, em grande parte, o resultado conseguido de um carácter, de certas inclinações constantes, de uma ambição tenaz, de uma incessante ocupação com elas. Que tédio, uma perseverança assim! Mas, vista de outro ângulo, a solução de um problema intelectual não acontece de modo muito diferente, como um cão que traz um pau na boca e quer passar por uma porta estreita; vira a cabeça para a esquerda e para a direita tantas vezes até que consegue passar com o pau; o mesmo acontece connosco, apenas com a diferença de que não fazemos tantas tentativas ao acaso, mas sabemos já, por experiência, mais ou menos como fazer as coisas. E se uma cabeça inteligente, como é óbvio, revela muito mais habilidade e experiência nas voltas que dá do que uma cabeça estúpida, o momento em que consegue passar não é para ela menos surpreendente; de repente estamos do outro lado, e sentimos claramente um ligeiro desconcerto em nós pelo facto de as ideias terem vindo por sua iniciativa, em vez de esperarem pelo autor. A essa sensação desconcertante chamamos nós hoje em dia intuição, depois de, antes, outros lhe terem chamado inspiração, e julgamos ver nisso algo de suprapessoal; mas trata-se antes de qualquer coisa de impessoal, concretamente da afinidade e da coerência das próprias coisas que se encontram na nossa cabeça.

Quanto melhor a cabeça, tanto menos se dará por ela. É por isso que o pensamento, enquanto estiver em movimento, é um estado deplorável, semelhante a uma cólica de todas as circunvoluções do cérebro; e quando chega ao fim já não tem a forma do processo de pensamento tal como o experienciamos, mas a da coisa já pensada, que, infelizmente, é uma forma impessoal, porque então o pensamento se volta para fora e está preparado para comunicar com o mundo. Quando uma pessoa pensa, torna-se por assim dizer impossível captar o momento entre o pessoal e o impessoal, e é certamente por isso que o pensar é um embaraço tão grande para os escritores que eles preferem evitá-lo.

(…)









robert musil
o homem sem qualidades vol. I
tradução de joão barrento
dom quixote
2008