21 novembro 2024

antónio franco alexandre / corto viaggio sentimentale, capriccio italiano

 
 
 
5
 
segredava-te, do tempo o vão aspecto;
existias de noite como a letra
de todo o movimento, e das estrelas
o céu pintado ao fundo;
e distraído, às vezes, confessava
amar a tua pele como quem
quer dizer-te: não morras nunca mais.
 
 
 
antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999
 




20 novembro 2024

pedro tamen / poema para todos os dias

 




 

 
I dia
 
 
                                        Un trozo azul tiene mayor
                                        Intensidad que todo el cielo.
 
                                        Alfonso Cortés

 
 
 
Fresco era o dia, plantado na chuva,
jovens os relógios tocando Mozart...
Os carros corriam, os passos passavam
e os velhos sentados dormiam no tempo
regressos perdidos de todas as sombras.
Pássaro poisado na alma da tarde,
era todo o sol natural inverno...
O mar estava perto nos olhos da gente,
um barco chegava em cada minuto
e o segredo bailava nas mãos da criança.
 
Recordo uma paz sob as gabardinas,
recordo humidade nas rodas dos carros...
(Tão solta no ar corria a memória
que as folhas tão verdes marcavam os anos.)
A chuva nascia da terra para o ar
e ria na cara da gente perpétua
– cada riso dela era a rua inteira
e era o cão vadio cheirando esta terra
gerada no vento pelo grande gesto.
Rua colocada por amor das formigas,
pequeno brinquedo achado no bosque,
eras mão aberta para todos os sons,
para cada assobio de vapor de água,
para a bela frescura da brisa salgada.
Ligeiros, os céus brincavam escondidos
com a tarde criança presente no ar,
jogavam às pedras ao pé dos passeios
e corriam juntos fugindo ao vento...
Passavam pessoas de faces vermelhas,
de um sonho pequeno agora acordadas,
seus passos miúdos de nada sabiam
– nada estava feito e tinham dez anos.
A branca neblina sentada no sol
sorria de perto a tudo o que era
e tudo saltava na sua presença.
 
Escorregavam horas do berço dos ramos
ficando caladas, respirando fumo...
E, leves, cheirosas, perpassavam as mãos,
tão estreitas e fortes do primeiro mundo.
 
Algo se esperava, algo estava perto,
algo era preciso, faltava a resposta,
o rio que fosse a cama da chuva,
a sombra final para o sol se deitar,
a torre perfeita com todos os olhos,
a mão que apertasse as coisas dispersas...
E eis que o rio vem, a sombra e a torre,
e se estendem dedos com a tua chegada.
 
Saltaram coelhos de todas as tocas
e a fonte da serra sorriu-se no musgo.
Manaram os beijos no ar respirado
e as malas abertas mostraram o fundo.
Fugiram cavalos de pernas de espuma
levando no pêlo notícias em branco.
E o vento corria em busca da lua
e a tarde e os céus calavam os gritos…
Silêncio se fez, e a erva cresceu
mais verde e mais fresca, segura certeza.
Espreitaram os sinos, riram-se as escadas
tudo estava pronto e de novo erguido.
 
Tão bela que vinhas como que de infância,
tão pura e tão simples, tão gesto benigno,
tão nova palavra rasgada no mar...
Menina dos anos, dos anos perdidos,
sombra de outras noites, noiva de outros dias,
perfeita miragem, pele das próprias mãos,
eis que então chegavas e eis que eu te via,
e as horas sorriam, felizes, completas.
 
Teu rosto era a concha dos quatro oceanos,
teu corpo era a praia de areia molhada,
teus olhos erguiam o toldo do céu
e enchiam os mastros de verdes bandeiras.
Tu eras o vento, tu eras a força,
dançavam secretas tuas mãos de aragem...
 
Nasceste presença na tarde de bronze
e agora já nada seria indeciso.
Agora tu eras a essência dos nomes,
os galos cantavam, era bom respirar.
Os prados distantes ficavam tranquilos,
esperando os teus pés, berlindes pequenos.
A chuva e a brisa, a jovem frescura,
guardavam certeza, seguras estavam
– morena lembrança, segundo natal.
 
Nunca mais a noite mordida no escuro,
nunca mais o dia manchado de cuspo,
nunca mais o véu tapando-me tudo,
nunca mais os dedos procurando flores...
A estátua plantada na nudez do largo
devolvia a calma aos olhos fechados
e enchia de sombra as pedras queimadas.
Agora eu sabia que em cada manhã
nasceria o sol atrás dos teus ombros.
 
 
 
pedro tamen
poema para todos os dias (1956)
tábua da matérias
poesia 1956/1991
círculo de leitores
1995
 




19 novembro 2024

ruy belo / regresso

 
 
 
Não não mereço esta hora
eu que todo o dia fui habitado por tantas vozes
que exerci o comércio num mercado de palavras
Não mereço este frio este cheiro tudo isto
tão antigo como os meus olhos
talvez mesmo mais antigo que os meus olhos
 
 
ruy belo
todos os poemas I
tempo
assírio & alvim
2004




18 novembro 2024

carlos de oliveira / porta

 
 
 
A porta que se fecha
inesperadamente na distância
e assusta o romancista
que descreve o seu quarto de criança
(é difícil dizer
se os velhos arquitectos
que punham tanto amor
na construção do quarto
teriam ponderado com rigor
a escala deste som
e o espaço coagulado
ao fundo do corredor)
a porta que se fecha no passado
sobressaltando a escrita e o escritor.
 
 
 
carlos de oliveira
sobre o lado esquerdo
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1982




17 novembro 2024

álvaro de campos / poema de canção sobre a esperança

 
 
 
               I
  
Dá-me lírios, lírios,
E rosas também.
Mas se não tens lírios
Nem rosas a dar-me,
Tem vontade ao menos
De me dar os lírios
E também as rosas.
Basta-me a vontade,
Que tens, se a tiveres,
De me dar os lírios
E as rosas também,
E terei os lírios —
Os melhores lírios —
E as melhores rosas
Sem receber nada.
A não ser a prenda
Da tua vontade
De me dares lírios
E rosas também.
 
 
                II
 
Usas um vestido
Que é uma lembrança
Para o meu coração.
Usou-o outrora
Alguém que me ficou
Lembrada sem vista.
Tudo na vida
Se faz por recordações.
Ama-se por memória.
Certa mulher faz-nos ternura
Por um gesto que lembra a nossa mãe.
Certa rapariga faz-nos alegria
Por falar como a nossa irmã.
Certa criança arranca-nos da desatenção
Porque amámos uma mulher parecida com ela
Quando éramos jovens e não lhe falávamos.
Tudo é assim, mais ou menos,
O coração anda aos trambulhões.
Viver é desencontrar-se consigo mesmo.
No fim de tudo, se tiver sono, dormirei.
Mas gostava de te encontrar e que falássemos.
Estou certo que simpatizaríamos um com o outro.
Mas se não nos encontrarmos, guardarei o momento
Em que pensei que nos poderíamos encontrar.
Guardo tudo,
(Guardo as cartas que me escrevem,
Guardo até as cartas que não me escrevem —
Santo Deus, a gente guarda tudo mesmo que não queira,
E o teu vestido azulinho, meu Deus, se eu te pudesse atrair
Através dele até mim!
Enfim, tudo pode ser...
És tão nova — tão jovem, como diria o Ricardo Reis —
E a minha visão de ti explode literariamente,
E deito-me para trás na praia e rio como um elemental inferior,
Arre, sentir cansa, e a vida é quente quando o sol está alto.
Boa noite na Austrália!
 
17-6-1929
 
 
álvaro de campos
livro de versos,
fernando pessoa
estampa
1993





16 novembro 2024

ricardo reis / uma após uma as ondas apressadas

 
 
 
Uma após uma as ondas apressadas
Enrolam o seu verde movimento
E chiam a alva espuma
No moreno das praias.
Uma após uma as nuvens vagarosas
Rasgam o seu redondo movimento
E o sol aquece o espaço
Do ar entre as nuvens escassas.
Indiferente a mim e eu a ela,
A natureza deste dia calmo
Furta pouco ao meu senso
De se esvair o tempo.
Só uma vaga pena inconsequente
Pára um momento à porta da minha alma
E após fitar-me um pouco
Passa, a sorrir de nada.
 
23-11-1918
 
 
 
fernando pessoa
odes de ricardo reis
ática
1946




15 novembro 2024

zbigniew herbert / o seixo




 

 
o seixo é um ser
perfeito
 
igual a si mesmo
zela pelas suas fronteiras
 
inteiramente cheio
do sentido de ser pedra
 
tem um cheiro que nada lembra
não afugenta não desperta desejo
 
o seu entusiasmo e frieza
são justos e cheios de dignidade
 
sinto grande censura
quando o seguro na mão
e o seu corpo nobre
absorve um falso calor
 
                – Os seixos não se deixam domesticar
                hão-de observar-nos até ao fim
                com um olhar tranquilo e muito claro
 
 
 
zbigniew herbert 
poesia quase toda
tradução de teresa fernandes swiatkiewicz
cavalo de ferro
2024
 



 

14 novembro 2024

josé carlos ary dos santos / nona sinfonia

 
 
É por dentro de um homem que se ouve
o som mais alto que tiver a vida
a glória de cantar que tudo move
a força de viver enraivecida.
 
Num palácio de sons erguem-se as traves
que seguram o tecto da alegria
pedras que são ao mesmo tempo as aves
mais livres que voaram na poesia.
 
Para o alto se voltam as volutas
hieráticas     sagradas     impolutas
dos sons que surgem     rangem e se somem.
 
Mas de baixo é que irrompem absolutas
as humanas palavras resolutas.
Por deus não basta. É mais preciso o Homem.
 
 
 
ary dos santos
sonetos de amor e luta (1997)
ary, obra poética
edições avante!
2017
 



13 novembro 2024

nuno júdice / epigrama

 
 
 
A loucura é a grandeza dos simples:
assim são eles mais do que eles,
colhendo flores brancas e reles.
 
Os doidos, de olhos arregalados,
crescem devagar como as árvores:
só não dão folhas nem frutos.
 
Amo as suas frases sem sentido:
dobram nelas os sinos abstractos
de um campanário sem janelas.
 
Dai-me, ó loucos, a vossa razão
– esses remos de subir o tempo
até à fonte de um deus obsceno e nu.
 
 
 
nuno júdice
50 anos de poesia
antologia pessoal (1972-2022)
dom quixote
2024
 



12 novembro 2024

gastão cruz / outono do amor

 
 
 
                                        A voz e a vida a dor me está tirando
 
                                        Camões

 
 

Outono do amor que folhas moves
na direcção dos corpos separados
e molhas desses prantos     ignorados
de quem da primavera conheceu o
 
movimento das aves
e desses movimentos estas esperas
agora só conhece já e ouve
a própria voz descida com as folhas
 
a voz própria cansada
quando a vida
e a voz lhas está a dor tirando
 
Outono do amor outono de aves
e das vozes caladas e de folhas
molhadas de temor e surdo pranto
 
 
 
gastão cruz
as aves
os poemas (1960-2006)
assírio & alvim
2009




11 novembro 2024

eugénio lisboa / soneto do último ano

 
 
Quando se chega à idade que tenho,
o aniversário que se assinala
pode bem ser o último que venho
a fruir, antes de fechar a mala.
 
Fazer algo pela última vez
é uma experiência estranha:
mesmo que se trate só de talvez,
a coisa é estranha e não se entranha.
 
Beijar ou amar pela última vez,
não permitir dizer «mais uma vez»,
oferecer ao nada um ar cortês
 
é, digam o que disserem Vocês,
seja-se escocês ou mirandês,
fibra de guerreiro cartaginês!
 
25.05.2022
 
 
 
eugénio lisboa
poemas em tempo de guerra suja
guerra & paz
2022




10 novembro 2024

luís quintais / a imagem quase apagada

 
 
 
Dir-me-ás as certezas que não tenho
agora que o Inverno começou
 
e os dias, desamparados, celebram a luz
em perda, o mar que na sombra própria
 
se eclipsa, a noite, tela espessa
onde prometi escrever este poema.
 
A imaginação é meio caminho,
a realidade devora a metade restante.
 
Eu lembro-me de ti, és uma imagem
quase apagada no delicado álbum
 
dos dias felizes, o passado
deste futuro. As árvores – acácias –
 
são sopradas, o vento é imparável,
contradiz o afiado gume cm que retomo
 
a imagem quase apagada.
 
 
 
luís quintais
nocturama
assírio & alvim
2024




09 novembro 2024

nuno guimarães / arte que se desdobra sobre a mesa

 
 
 
Arte que se desdobra sobre a mesa
ao longo da toalha. Rigorosa
nas formas da madeira. No esforço
do linho semeado sobre a mesa.
 
Arte também do trigo que repousa
enérgico no pão sobre a toalha.
Negado à boca fria. E ao palato
sem poder de motor e já sem água.
 
Dobadoira que lavras a secura
do corpo de erosão. Que sem palavras
emigra a sua morte sobre a cama.
 
Dobadoira do pão e da pobreza
articulada à boca como um fruto
aberto e apodrecido sobre a mesa.
 
 
 
nuno guimarães
a carne
entre sílabas e lavas
poesia completa
assírio & alvim
2024
 



08 novembro 2024

josé emílio pacheco / a ilha




 

 
Chegámos à ilha. O Outono
abria caminho pelo ar, e no lago
as folhas encarnadas e amarelas flutuavam
como peixes mortos.
 
Só o crepúsculo me seguiu até à praia.
Águas cor de mar, pedras como ondas.
Por toda a parte
infinitas folhas caídas.
Eu e a ilha éramos
folhas também, e nunca o soubemos.
 
 
 
josé emílio pacheco
islas a la deriva (1973-1975)
a árvore tocada pelo raio
antologia poética
trad. miguel filipe mochila
maldoror
2024
 



 

07 novembro 2024

roger wolfe / noites de página em branco

 
 
 
Tu contra o mundo
e o mundo contra ti.
E nesta guerra só uma coisa
é certa:
vai haver
um morto.
 
 
 
roger wolfe
fazer o trabalho sujo
tradução de luís pedroso
língua morta
2020




 

06 novembro 2024

julio cortázar / instruções-exemplos sobre a maneira de ter medo

 
 
Numa aldeia da Escócia vendem-se livros com uma página em branco, página perdida num lugar qualquer do volume. Se o leitor der com essa página às três da tarde, morre.
 
Na Praça do Quirinal, em Roma, existe um ponto conhecido dos iniciados até ao séc. XIX e do qual, em noites d elua cheia, lentamente se vê mexer estátuas de Dióscuros que lutam com os seus cavalos encabritados.
 
Em Amalfi, ao findar a zona costeira, há um molho que entra pelo mar e pela noite. Ouve-se um cão a ladrar para lá do último candeeiro.
 
Um homem está a pôr pasta na escova dos dentes. De repente vê uma diminuta imagem de mulher deitada de costas, feita de coral ou talvez de miolo de pão colorido.
 
Ao abrir o armário para tirar uma camisa, um velho almanaque cai, que se desfaz, desfolha, que cobre a roupa branca com milhares de sujas borboletas de papel.
 
E um caixeiro-viajante a quem o pulso esquerdo começou a doer, mesmo debaixo do relógio. Ao tirá-lo, o sangue jorrou: a ferida revelava a marca de uns dentes muito finos. O médico acaba de nos examinar, ficamos descansados. A sua voz grave e cordial antecede os medicamentos cuja receita vai escrevendo, sentado à secretária. De vez em quando levanta a cabeça e sorri para nos animar. Não é nada de grave, numa semana já estaremos bons. Felizes recostamo-nos na poltrona, olhamos à volta, distraidamente. De repente, debaixo da secretária, na penumbra, vemos as pernas do médico. Tem as calças pelo joelho e usa meias de mulher.
 
 
 
júlio cortázar
histórias de cronópios e de famas
manual de instruções
tradução de alfacinha da silva
editorial estampa
1973




05 novembro 2024

fiama hasse pais brandão / barcas novas

 




 
                                        En Lixboa, sobre lo mar
                                        barcas novas mandei lavrar.
                                        Ai, mia senhor velida!
 
                                        En Lixboa, sobre lo ler
                                        barcas novas mandei fazer.
                                        Ai, mia senhor velida!
 
                                        Barcas novas mandei lavrar
                                        e no mar as mandei deitar.
                                        Ai, mia senhor velida!
 
                                        Barcas novas mandei fazer
                                        e no mar as mandei meter.
                                        Ai, mia senhor velida!
 
                                                               Joan Zorro

 
 
 
Lisboa tem barcas
agora lavradas de armas
 
Lisboa tem barcas novas
agora lavradas de homens
 
Barcas novas levam guerra
As armas não lavram terra
 
São de guerra as barcas novas
ao mar mandadas com homens
 
Barcas novas são mandadas
sobre o mar
 
Não lavram terra com armas
os homens
 
Nelas mandaram meter
os homens com a sua guerra
 
Ao mar mandaram as barcas
novas lavradas de armas
 
Em Lisboa sobre o mar
armas novas são mandadas
 
 
 
fiama hasse pais brandão
barcas novas (1967)
obra breve, poesia reunida
assírio & alvim
2017



04 novembro 2024

marcos foz / enublado dizes



 

[…]
 
«é sempre numa casa que estamos
sós» lembra-nos de raspão
rosto mal conhecido, desenhado
a linhas de carvão dos que não
se deixam conhecer; e o cultivo
do nosso dia, «modesto ameaçado
ajardinado» é mister dos que
caminham alheios a tudo, hagiografia
minada de gentis corruptelas – suaves
raparigas indomáveis rapazes,
degrau a degrau, entre síncopes e
bailaricos, enverdecido mergulho, actuando
nas formas que tombam para o lado
da noite, sagrada conspiração lusófona,
louvadas sejam as linha do que a mim
se encosta e respira, estafetas do recomeço
apontando a saída de emergência ao
longo do inominável, meus terraços a meia
altura, astrolábios necessários pajens
amantes do acaso, remendos
acrescentos, faúlhas que despertam o ouvido
deste vosso ridículo príncipe das nuvens
coroado a carências e sinais de faroleiro
 
[…]
 
 
 
marcos foz
enublado dizes
edição do autor
2024
 




 

03 novembro 2024

daniel faria / trago os instrumentos do fogo

 
 
 
Trago os instrumentos do fogo
Ponho-os na boca
Ponho-os no coração
 
Trago os instrumentos da respiração
– Uma montanha, uma árvores que lhe dá abrigo –
E suspendo-os nos ramos como pinhas que dão sombra
Um lugar fresco para os deportados de Sião nas margens
 
Trouxe também os instrumentos dos mineiros
Uma luz na cabeça voltada para o pensamento
Um olhar profundo
O modo prisioneiro de virem livremente para fora
 
E trago todos os instrumentos na circulação do sangue e na ocupação
                                                                                                     [permanente
Das mãos
Para o instrumento difícil
Do silêncio
 
 
 
daniel faria
poesia
homens que são como lugares mal situados
quasi
2003
 



02 novembro 2024

paul claudel / cem frases para leques

 
 
 
1
 
Tu
chamas-me Rosa
diz a Rosa
mas se tu soubesses
o meu verdadeiro nome
logo eu
me desfolharia
 
 
paul claudel
cent frases pour éventails (1927)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003
 



01 novembro 2024

edgar lee masters / cassius hueffer

 
 
 
Esculpiram na minha lápide as seguintes palavras:
«Foi gentil a sua vida, e de tal modo se combinaram nele os
     elementos
que poderia a natureza levantar-se e dizer ao mundo
este foi um homem.»
quem me conheceu sorri
ao ler esta retórica vazia.
 
O meu epitáfio devia ter sido:
«Não foi gentil com ele a vida,
e de tal modo se combinaram nele os elementos
que à vida moveu guerra
e nessa guerra foi assassinado.»
Toda a minha vida odiei a calúnia:
e agora que estou morto tenho que suportar um epitáfio
gravado por um asno!
 
 
 
edgar lee masters
spoon river
tradução josé miguel silva
relógio d´água
2003



31 outubro 2024

rui diniz / o moribundo consigo

 
 
 
Quero ainda contemplar a tarde e acreditar
nela. Quero ainda estar vazio de coragem
alguma. Vazio como sempre estive.
Agora que o sol no olhar me arde
desejo crer nele até vê-lo apagado
em mim.
Oh o murmúrio desta certeza que me enche
de ser inteiro como o mistério e claro
como qualquer reflexo do rio. Tudo pára
para ser contemplado por mim.
A minha dor já quase me não pertence.
Já quase me não reconheço falando de mim.
E a minha vida não se torna presente
na minha memória que o tempo esgotou.
Quero ainda contemplar o que não farei
de novo, medir o cansaço dos meus olhos
e do meu verso. Quero deixar que chegue a noite
e a luz que lhe é própria, que chegue
e outra tarde, que eu possa contemplá-la…
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022





30 outubro 2024

rui costa / breve ensaio sobre a potência

 
 
 
4
as plantas treinam a paciência
dobrando mais os braços. doem
por cima das pedras, caminham
vagamente como animais sem
asas. as plantas respiram imitando
os peixes. mais tarde ancoram-se
à terra e voam rasurando a luz.
 
 
 
rui costa
breve ensaio sobre a potência
(texto-ensaio composto por 31 fragmentos)
mike tyson para principiantes
antologia poética
assírio & alvim
2017




 

29 outubro 2024

egito gonçalves / inventário

 
 
 
O cidadão pacífico toma café e rói as unhas
enquanto os dias passam – o Sol, os cometas,
as searas, os Deuses, os fabricantes de calendários…
 
depois dos cafés o cidadão possui ainda os cinemas
e os namorados podem concorrer aos jardins miniatura
onde além da clássica relva e as 24 árvores
há ainda dois urinóis e três velhos próximos da noite.
 
Dos quinze em diante oferece-se uma mulher em decúbito dorsal
que alguns não aproveitam.
 
Depois morre-se e colocam-nos em cima
algumas plantas consideradas tristes.
 
 
 
egito gonçalves
o esperado fim do mundo já partiu
uma antologia
língua morta
2020
 



28 outubro 2024

emanuel jorge botelho / quase aforismo

 
 
 
percebi cedo que o mundo doía.
o medo ainda não tinha nome,
quando lhe paguei, com lágrimas,
o primeiro dízimo.
 
depois, foi só crescer.
 
 
 
emanuel jorge botelho
o livro das coisas ardidas
averno
2023
 




27 outubro 2024

andrea cohen / ilha deserta

 
 
 
Se tiver de ir
para lá, gostaria
 
de uma lista
telefónica sobre
 
a qual me possa sentar
numa cadeira –
 
gostaria
de acreditar
 
que sou uma criança
pela qual alguém
 
regressa.
 
 
 
andrea cohen
serenamente sobre as lanternas
trad. francisco josé craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2024




26 outubro 2024

francisco urondo / carlos gardel

 
 
 
Estrangeiro do silêncio
num mundo arrasado; vertente da extrema melancolia
e da coragem e da velocidade do amor e do medo.
 
Dono da cidade, da sua branda memória
e da madrugada faminta e sem sentimento
e do supremo juízo dos vadios.
 
Cúmplice dos encontros,
Do bagaço que nos fez falar,
Louco da noite, despreocupado amigo da alba, senhor dos
                                                                          tristes.
 
 
 
francisco urondo
por alguma razão
antologia de poesia argentina
selecção e tradução de hugo miguel santos
contracapa
2024




25 outubro 2024

john updike / ferramentas

 
 
 
Dizei-me, como têm lucro os fabricantes de ferramentas?
Uso o mesmo martelo há quarenta anos. A chave de fendas
turva de ferrugem passou há muito tempo para a minha mão
jovem, o seu novo proprietário. Esquecidas, as ferramentas
esperam para serem usadas; o alicate, boca muita aberta,
dentes como um tubarão de banda desenhada; a chave inglesa,
mandíbulas num parafuso; a plaina ainda afiada para morder,
ondulante e cheirosa; o berbequim ainda bom para mastigar
o pinho, como um pensamento paciente; a fita métrica,
polegadas inalteradas apesar de eu ter escolhido; o esquadro
de carpinteiro, ainda inteiro e recto, embora eu me tivesse
desviado; o nível de madeira da escassa colecção
do meu pai. As suas formas persistentes impregnam a cava,
em parcimónia que envergonha a nossa vida perdulária.
 
 
 
john updike
ponto último e outros poemas
trad. ana luísa amaral
civilização editora
2009




24 outubro 2024

natércia freire / canção do verdadeiro abandono

 
 
 
Podem todos rir de mim,
Podem correr-me à pedrada
Podem espreitar-me à janela
E ter a porta fechada.
 
Com palavras de ilusão
Não me convence ninguém.
Tudo o que guardo na mão
Não tem vislumbres de além.
 
Não sou irmã das estrelas,
Nem das pombas, nem dos astros.
Tenho uma dor consciente
De bicho que sofre as pedras
E se desloca de rastros.
 
 
 
natércia freire
rio infindável (1947)
antologia poética
assírio & alvim
2001
 




23 outubro 2024

pablo neruda / esquecido no outono

 
 
Eram sete e meia
do Outono
e eu esperava
não interessa quem.
O tempo
cansado de estar ali comigo
a pouco e pouco desandou
e deixou-me ali sozinho.
Fiquei então com a areia
do dia, com a água,
sedimentos
duma semana triste, assassinada.
 
– Que foi? – perguntaram-me
as folhas de Paris. – Quem é que esperas?
 
E assim fui várias vezes humilhado
primeiro pela luz que se apagava
depois por cães, por gatos e gendarmes.
 
Fiquei só
como um cavalo só
quando no pasto não há noite nem dia,
apenas sal do Inverno.
Fiquei
tão sem ninguém, tão vazio
que choravam as folhas,
as últimas, e depois
caíam como lágrimas.
 
Nunca antes
nem depois
fiquei tão de repente só.
E foi à espera de quem,
não me recordo,
foi tolamente,
passageiramente,
mas aquilo
foi a instantânea solidão,
a mesma
que se tinha perdido no caminho
e num instante como a própria sombra
desenrolou o seu infinito estandarte.
 
Então saí daquela
esquina louca
com os passos mais rápidos que tive,
foi como se fugisse
da noite
ou duma pedra escura e roladora.
Não é isto que eu conto
mas passou-se quando estava à espera
de não sei quem um dia.
 
 
 
pablo neruda
antologia breve
tradução de fernando assis pacheco
dom quixote
1971




22 outubro 2024

julio martínez mesanza / a torre no descampado

 
 
Só à ordem aspiro, e à beleza
que em mulher não cabe. Só aspiro
à vida que não duvida, que cumpre
sem sombras os desígnios, sem intriga.
Eu quero a claridade das espadas,
a claridade de potentes formas.
No descampado a torre me deslumbra,
para a torre vou. Mesmo que me aguarde
a desdentada boca do escárnio,
a fraude da palavra do sofista,
a machadada dupla que o traidor ergue
um corpo de mulher ou só um corpo,
da torre avistarei a ignomínia.
 
 
 
julio martínez mesanza
poesia espanhola de agora I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997
 



21 outubro 2024

rui caeiro / apanhar as palavras mesmo do chão

 
 
 
Apanhar as palavras mesmo do chão
já pobres esvaídas maltratadas
 
e reuni-las no poema para que entre si
façam calor e companhia como os velhos
 
aqueles da casa de repouso de Camarate
em volta da mesa a beber a laranjada
 
aos golinhos – e a morte e a morte
 
 
 
rui caeiro
sobre a nossa morte bem muito obrigado
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019





20 outubro 2024

josé gomes ferreira / nos muros adolescentes

 
 
XV
 
Nos muros adolescentes
apareciam na cal
iniciações sagradas,
riscos, traços, curvas,
sóis estreitos de Vénus
– toda a geometria suja
dos alfabetos obscenos.
 
Sinais que nos guiavam
de muro em muro
para os lençóis de lama secreta
nas catacumbas.
 
 
 
josé gomes ferreira
poesia V
memória-I 1957-1958
portugália
1973



19 outubro 2024

al berto / doze moradas de silêncio

 
 
5
 
hortelã bravia esmagada contra o rosto
seiva morna sobre o ventre emaranhado nas trepadeiras
secas latas de conserva detritos de comida
um fio de azeite escorre da boca
 
louras flores murchas girassóis ladeando a estrada
jasmins de leite germinando no estrume
animais irreconhecíveis atravessam as veredas da noite
com um estrondo de lume que estilhaça
 
talvez seja uma hora da manhã em todos os relógios
longe daqui… preparam-se fogueiras pelas praias
silhuetas de corpos separam-se das chamas
caminham à procura doutros fogos segredados
 
alvéolos de sémen ardem… os sexos
em combustão no seio molhado de nocturnas conchas
rostos incendiados flutuam na frágil espessura da alba
regressam lentos à outra margem diluída na bruma
inacessível
 
 
 
al berto
doze moradas de silêncio 1978/1979
o medo
assírio & alvim
1997




 

18 outubro 2024

josé carlos barros / vilar de perdizes

  
 
Vinhas do outro lado da fronteira com a navalha de cortar o pão de centeio atada a uma corrente de prata, um lenço de algodão com cheiro a raparigas
 
e urzes,
  
meia-onça de tabaco, uma guitarra, dois embrulhos com rebuçados para quatro namoradas, um livro de poemas com as folhas por abrir, apenas
  
contrabando de luz e de mundo, como dizias.
 
 
 
josé carlos barros
estação
on y va
2020



17 outubro 2024

joaquim cardoso dias / a casa






 

 

nesses dias
havia tanta roupa branca
a secar às janelas
que a criança saía nua
de casa e ia sentar-se
no muro alto
e grosso do quintal
 
contente por estar alta
fazendo bolas de sabão
 
e ria ria alto
porque a sua alegria
era maior do que a dos próprios
dentes
entre o cheiro
da roupa branca
a secar nas janelas
 
 
 
joaquim cardoso dias
o preço das casas
de uma porta à outra
gótica
2002
 


 

16 outubro 2024

victor oliveira mateus / viagem

  
 
acolho a primeira palavra
as primeiras frases
os verbos irregulares
 
desperto-te para as traições
para as esperanças
tantas vezes misturadas
 
ouço-te as dúvidas os recomeços
dou-te instrumentos
para o resto do caminho
 
e invoco por fim
o tudo que m’envolve
ó sopro ordenador do mundo
– energia que sempre permaneces –
podes levar-me quando quiseres
estou pronto
 
 
 
victor oliveira mateus
uma casa no outro lado do mundo
labirinto
2021




15 outubro 2024

pedro de queirós tavares / comparsas

 
 
Comparsas, lá teremos de nos conformar a esta dimensão.
Importa que nos lembremos do pacto: também deste lado da
sarjeta não cobiçaremos as cerejeiras. Além de cerejas, muitas dão
granadas. Algumas com a cavilha encravada – nos dirão – mas
todas prontíssimas para nos rebentarem na boca.
 
Aqui, tal como de onde viemos, rebentam-nos com a boca para
que nos doa falar.
 
 
pedro de queirós tavares
se tens fósforos
fresca / poetria
2023





14 outubro 2024

tomás sottomayor / do seio da noite arqueada

 
 
 
Do seio da noite arqueada
Taciturno sorvo o leite negro
De tudo o que se perdeu.
Ajoelho-me sob o peso da tua mão
E aguardo o sinal para que a minha
Se mova sem hesitação
Para arquear um novo céu.
Tenho um desejo insular
Por mundos invisíveis.
 
 
 
tomás sottomayor
auberge ravoux
língua morta
2021
 



13 outubro 2024

luís filipe parrado / a chuva, os trabalhos, os dias

 
 
 
Foi tudo o que aprendi: límpida e generosa é a chuva.
Molha a delicada cambraia dos senhores e os andrajos do camponês,
inunda os lábios gretados dos amantes,
lava as mãos impunes dos cobardes,
a folha caduca da perene não distingue.
Poupa ao lavrador o trabalho e a despesa de regar os pomares.
Com um pouco de sorte e de espanto
também este ano
abundarão as sacas de laranjas e de romãs
na tua arrecadação.
 
 
 
luís filipe parrado
roma não perdoa a traidores
língua morta
2021
 




12 outubro 2024

klaus merz / a minha aposta

 
 
não coloco as minhas esperanças
no vermelho luminoso
do zarcão.
os pintores
são para mim demasiado buliçosos,
as suas cores demasiado escandalosas.
 
eu confio
nos valores eternos,
ponho as minhas esperanças na ferrugem
que actua subterraneamente,
no seu vermelho terroso e quente,
na sua substância granulada
que certamente
nos sobreviverá.
 
 
 
klaus merz
descida brusca de temperatura
alguma poesia suíça
tradução de luís filipe parrado
contracapa
2021
 
 


11 outubro 2024

louise glück / campainhas-de-inverno

  
 
Sabes o que eu era, como vivia? Conheces
o desespero; então
o Inverno há-de fazer-te sentido.
 
Nunca esperei sobreviver
com a terra a sufocar-me. Não esperei nunca
tornar a acordar, sentir
na terra húmida o meu corpo
capaz de reagir de novo, de se lembrar
depois de tanto tempo como abrir-se
de novo à luz fria
da mais primeira Primavera –
 
com medo, sim, mas de novo entre vós
chorando sim arriscando a alegria
 
ao vento agreste e nu do mundo novo.
 
 
 
louise glück
a íris selvagem
tradução de ana luísa amaral
relógio d´água
2020





10 outubro 2024

eunice de souza / encontro numa festa em londres

 
 
 
Durante um minuto permanecemos desconcertadamente juntos.
Perguntas a ti mesmo em que língua hás-de falar-me,
ofereces, antes, uma cebola avinagrada num palito.
És jovem e talvez te esqueças
de que o Império vive
apenas nos sons puros das vogais que te ofereço
acima do ruído.
 
 
 
eunice de souza
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
trad. cecília rego pinheiro
assírio & alvim
2001





 

09 outubro 2024

antonia pozzi / náufragos

 
 
 
Náufragos sobre os escolhos,
cada um conta
a si mesmo – a história de uma doce casa
perdida,
a si mesmo ouve
falar alto
sobre o deserto pranto
do mar –
 
Triste jardim abandonado, a alma
rodeia-se de selvagens sebes
de amores:
morrer é este
cobrir-se de silvas
nascidas em nós.
 
 
 
antonia pozzi
morte de uma estação
trad. inês dias
averno
2019
 
 



08 outubro 2024

pier paolo pasolini / fim da tempestade

  
 
Tomba a árvore ao vento,
as casas voltaram
aos seus lugares, após longa
viagem, e sonham de olhos abertos.
Mesta a alma se encaminha
para os sonhos; vago fica
o quarto: estou longe.
 
 
 
pier paolo pasolini
a poesia é uma mercadoria inconsumível
poemas e recensões
trad. joão coles
sr teste edições
2022




07 outubro 2024

lawrence ferlinghetti / doce e variegada a cotovia-arbótrea

 
 
 
13
 
               doce e variegada a cotovia-arbórea
                              cantando ao portão que não se pode comprar
          e todavia quantas
                                     feras bravas
                                                   quanta criatura insana
               nas matas civilizadas
 
                                                  Hölderlin
                                                                      na sua torre de pedra
ou na casinha do amável carpinteiro
                                                     em Tübingen
               ou então Rimbaud
                                         com o seu «pesadelo e lógica»
          um sofisma da loucura
     Mas também nós temos exemplos mais recentes
                                      que também pressupuseram fatalmente
existir de facto
                  uma certa ligação directa entre
     linguagem e realidade
                                      palavra e mundo
          o que é hilariante
                                 caso me perguntem
     Também eu já bebi e vi
                                       a aranha
 
 
 
lawrence ferlinghetti
poemas de pictures of the gone world (1955)
uma coney Island da mente
tradução margarida vale de gato
antígona
2024