22 março 2007

requiem

(ao menino morto, eu próprio)




A tarde declina com uma luz ténue.
Estou grave e calmo.
E não preciso de ninguém
Nem a luz da tarde me comove: entendo-a.
Até as imagens me são inúteis porque contemplo tudo.


Os ventos rodam, rodam, gemem e cantam
E voltam. São os mesmos:
Como os conheço desde a infância!
E a terra húmida das tapadas da quinta…
O estrume da égua morta quando eu tinha seis anos
Gira transparente nesta brisa fria…
(Na noite gotas de orvalho sumiam-se sob as folhas de erva…)


Oh, não há solidão nas neblinas de Inverno
Pela erma planície…


E foi engano julgar-te morto e tão só nas tapadas em silêncio…
Agora sei que vives mais
Porque começo a sentir a tua presença, grande como o silêncio…
Já me não vem a vaga tristeza do teu chamamento longínquo,
Já me confundo contigo.







cristovam pavia
revista árvore, nº. 1
Outono de 1951





21 março 2007

antónio josé forte (1931-1988)




azuliante




Este poema
começa com um homem de tronco nu
à sua mesa de trabalho e hiante
a esta hora em que de oriente a ocidente
se acendem lâmpadas trémulas e bárbaras e ferozes
e o mar é o teu nome a esta hora pétala a pétala
em que subirei de avião para ir beijar-te os olhos
e ver no meio do deserto o único
o magnífico devorador de rosas a comer um pão
enquanto do Oceano resta apenas
o silêncio de uma lágrima caindo nos joelhos de uma criança
Espera-me onde um nome há no Ar escrito com saliva azul
com raiva azul
como a urina violenta dos amantes
com a sua flor azul à superfície onde crepita a morte


Choverá muito eu sei choverá muito
e não porei uma pedra branca sobre o assunto digo
sobre o tremor de terra em que tu danças
na tua roda de cigarros cada vez mais depressa cada vez mais depressa
e lento o peixe de plumas de águia letra a letra
dá a volta ao mundo dos teus olhos
enquanto a dentadura cintilante pronuncia o grande uivo
de oriente a ocidente



Certas palavras muito duras quando a noite cai
não devem ter outra origem sabem tão bem quanto eu
porque agora a lava das lágrimas ao crepúsculo
são as rosas com que o poeta fala
à multidão em volta do crocodilo o animal repugnante
de costas para a luz contra o grande uivo:
de oriente a ocidente a mesma flor podre o estado
os segredos de estado as razões de estado a segurança do estado
o terrorismo de estado os crimes contra o estado
e o equilíbrio do terror
de oriente a ocidente meu amor de oriente a ocidente


Digo não Eu digo não
digo o teu nome que diz não


No entanto às portas da cidade e ao pé de cada árvore
à espera que tu chegues ou passes simplesmente
estão os grandes do império com o chapéu na mão para cumprimentar-te
Então passas tu com a lua no peito
dividindo distribuindo os alimentos
passas tu devagar atirando as moedas
que os dias não aceitam e gastamos depressa
noite mil e uma noites de quem espera
Meu amor países pátrias têm todos um nome
de letras imundas que não é para escrever
Se ainda podes ouvir o búzio da infância
ouvirás com certeza o sinal de partir


No comboio multicor sobre carris ferozes e azuis
que há mil anos dá a volta ao mundo
sou eu o homem que viaja nu porque eu sou
o arco-íris e a rosa no trapézio
e tu toda a paisagem que atravesso
como se fosse de bicicleta
como se fosse sílaba a sílaba
a primeira frase da terra
tu com as tuas luvas de amianto ao lado do vulcão
com a tua máscara de olhar a aurora boreal
de me olhares para sempre nua eu a tempestade
de coração a coração


Roda sórdida da razão cínica e canto de galos
depenados vivos que cantam nos intervalos da morte
no meu livro de horas deste século
está escrito que o homem livre fará o seu aparecimento
sob a forma de um cometa de cauda fascinante
que arrastará os amorosos até ao centro do mundo
donde partirão na rosa-dos-ventos e este será o sinal










antónio josé forte
uma faca nos dentes
parceria a. m . pereira
lisboa 2003






20 março 2007

a árvore





Chegaste
com a tua tesoura de jardineiro
e começaste a cortar:
umas folhas aqui e ali
uns ramos
que não doeram...
Eu estava desprevenida
quando arrancaste a raiz.







yvette centeno
a oriente
edit. presença
1998




19 março 2007

ponto da situação





Um céu tão sujo,
desde há dias sem milagres, só barulho
nas ruas, automóveis imponentes,
em quem hei-de acreditar senão
no meu dentista, um ser
humano tem de ler os jornais,
dou uma dentada e pasmo, há anos
já o vento rugia a pedir clemência
e as chaminés tremem
ainda e sempre de felicidade.







hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em Mateus
quetzal editores
1994








16 março 2007

silêncios





fala-me da ausência do mundo, do enorme silêncio
que me separa do rumor do tempo.

sim, digo-lhe,
semeei dunas brancas ao longo do que existi,
realizei um por um os horizontes
e caminhei.


nos passos,
levei a sabedoria de anoitecer e de madrugar.

exerci-a
na altitude dos que me perguntaram o nome.
naqueles que me questionaram o olhar
ou a palavra
nos que, suspensos da fronteira de sombras,
esperaram para me ouvir
ou para me falar.

e usei a voz como um pássaro usa as sementes.

digo-lhe:
não, não apaguei o mundo da minha vontade
apenas o areei de solidão
e fiz dele um deserto
onde alguém se perdesse.







gil t. sousa
poemas
2001




silenzi di forme



luca gilli
Prato Spilla, Parco Regionale dei Cento Laghi (PR)
[Silenzi di forme]
2002




samuel beckett / sobressaltos




Numa noite estava ele sentado à mesa dele
com a cabeça entre as mãos
quando se viu a si mesmo a levantar-se e a ir-se.
Uma noite ou um dia.
Pois quando se apagou a luz dele
não ficou na escuridão.
Na altura vinha uma espécie de luz
da única janela alta.
Debaixo dela ainda o banco por onde ele subia
para ver o céu até mais não poder
ou não querer.
Se não se esticava para ver
o que havia lá por baixo
era talvez porque a janela não era feita para abrir
ou porque ele não a podia ou não queria abrir.


Talvez ele soubesse até bem de mais
o que havia lá por baixo
e nunca mais o quisesse ver.
E assim mais não fazia
que pôr-se ali de pé bem alto acima da terra
a olhar através do vidro nublado para o céu sem nuvens.
A luz fraca e fixa do céu
como nenhuma outra luz de que ele se lembrasse
dos dias e das noites
em que dia dava em noite
e noite dava em dia.

Então esta luz exterior
quando a luz que ele tinha se apagou
tornou-se na única luz que tinha
até que por sua vez se apagou
e deixou-o na escuridão.
Até que por sua vez se apagou.
(...)







samuel beckett
sobressaltos
trad. miguel esteves cardoso
o independente
05-01-1990

15 março 2007

muro branco





como um muro branco
sobre o deserto
da noite


a morte
escrita na solar pureza
das palavras


a íntima loucura
da dor


o imperativo silêncio
do que brilhava


não sei se volto

perdi o fio das madrugadas
a linha
que dos teus lábios
me descia céus
no olhar






gil t. sousa
poemas
2001




14 março 2007

as riquíssimas horas do Duque de Berry





março

Começam os primeiros trabalhos agrícolas no campo. Por volta de 21 de março, o Sol cruza o equador celestial rumo ao norte; é o equinócio de março, começo da primavera no Hemisfério Norte e do outono no Hemisfério Sul. Ao fundo, o castelo de Lusignan, um dos castelos preferidos do Duque.



13 março 2007

uma fila de árvores caminha pela minha rua...



34.


Uma fila de árvores caminha pela minha rua em direcção ao
Norte.


As árvores caminham lentamente, com o rosto
levantado, arrogantes ou tristes, com essa lentidão do
equilibrista sobre um campo de minas.


Pudessem ser amigos que fugiram da morte,
pois a morte tem apego ao Sul.


Pudessem ser uma fila de homens sem casa nem
família com a convicção do soldado que
avança para a derrota.


Mas são apenas árvores, altas, de folha perene, cujos passos
impassíveis nunca perdem o ritmo,
uma fila que o vento não dissolve nem extingue.


Eu não quero saber que dor as sujeita, nem que
mão imprudente as animou a crescer.


Apenas as observo passar, dia após dia, passar desde
a infância, desde o primeiro amor.


Quereria perguntar-lhes os nomes, mas calo-me.

Quereria que a noite chegasse e as cobrisse:

Que inclinassem apenas a cabeça ao morrer.







jesus urceloy
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000



12 março 2007

malas sem atenção





Malas sem atenção: assim parecem
ser a maioria dos poemas.
Malas abandonadas num aeroporto
que ninguém busca ou reclama.
Malas que não se podiam deixar
e por isso mesmo se deixam,
quando nos avisam pelo altifalante:
"... por motivos de segurança
não deixem abandonada qualquer mala
nem se aproximem se virem uma".


Isto é, por sua vez, a leitura de um poema:
o encontro inesperado de um mundo
metido e comprimido num pequeno
concentrado de tempo - coisas de vestir,
vários objectos de companhia,
outros de primeira necessidade,
roupa interior muita, até demais,
e tudo, em geral desordenado, revolvido
contra não sabemos quê ou quem,
mas formando uma estranha unidade -,
o envolvimento e as entranhas de um corpo
desconhecido, uma segunda pele
que gostamos de usar de vez em quando,
- mudados, revestidos com outros olhos -,
ou então nós mesmos mais que nunca
- finalmente despidos do que sobra
e na nossa nudez reencontrados.








àlex susanna
poemas
tradução de egito gonçalves







09 março 2007

sob a pluma do poeta





sob a pluma do poeta
ensimesmado
corre a linha
desliza a linha da palavra

que agarra outra linha
outra palavra
e como no tear ancestral
tece a renda do texto
borda as cores
dos inaudíveis sonhares
abismais

entrelaça o pensar
deslumbrado
entontecido de desmaios
singelezas outonais
nos campos
das cegueiras múltiplas

desengonça as infiltrações
escondidas sob as
peles esburacadas
de bailarinas células
constroi e
desconstroi
o universo finito
das imitações criativas
faz-se sombra de deus
seu objectivo final

por vezes








m.f.s.






08 março 2007

sei






Sei
ao chegar a casa
qual de nós
voltou primeiro do emprego


Tu
se o ar é fresco


eu
se deixo de respirar
subitamente







antónio reis
novos poemas quotidianos
edição do autor
1959









07 março 2007

quando fomos para a cama





Os resíduos de estrela que ficaram entre os seus
cabelos
crocitavam como cascas de amendoins
a estrela cuja luz tu descobriste
há um milhão de anos já
no mesmo instante em que era dado à luz
um diminuto menino chinês.


«Os chinas são os únicos que não temem
os fantasmas
que nos saem da pele todas as noites.»


Lástima é que a estrela
não tivesse sabido fecundar teu seio
e que o pássaro da lamparina de azeite
a bicasse como casca de amendoim
o teu e o meu olhar
deixaram-te no ventre
um signo futuro de luminosa multiplicação.









luis buñuel
poemas
trad. de mário cesariny
arcadia
1977








06 março 2007

isto é uma carta de amor





Mas não sei dizer-te que espécie de amor.
As flores brotam do campo de golfe.
Estou no carro a ouvir não sei
O quê; o que é? Oiço . Aleluias, fortíssimo,
Pianoforte, um forte de conhecimento, reconhecimento,
Piano, leve, pianos em queda,
Inofensivos. Como pude sentar-me
à mesa contigo, se já saciada?
Talvez quisesse só sentir a comida nos dentes.
A soprano vira a página.
A trompa. Escuta: Amen, amen.
A Academia de Saint Martin in The Fields,
O que está no campo, bolas de golfe?
Sir Neville Mariner dirige,
Dirigindo, Rua Mariner abaixo.
Quando é que se abre a porta aberta?
Há quanto tempo te conheço nesta vida de cão?
Dirijo-me para sul; as luzes acompanham o ritmo.
Há um bálsamo
Há uma história que te quis contar
Em Gilead o telhado está a arder
Não haverá um bálsamo nos meus lábios
A cor é de cena
As luzes mudam
Há um bálsamo
Agarro-me de olhos fechados a uma ideia de ti
Numa rede e o rádio sempre a tocar
Há um bálsamo
O retrato da Virgem Mãe de pé
Aos pés da cruz, Rossini,
Perto, escuta, existe, há um bálsamo há
de pé uma virgem.







elizabeth burns
poesia do mundo

tradução de graça capinha
afrontamento
1995








05 março 2007

perfil do idiota



O IDIOTA é geralmente competente, moralmente irrepreensível e socialmente necessário. Faz o que tem a fazer sem dúvidas ou hesitações, respeita as hierarquias, toma sempre o partido do bem e acredita religiosamente nas grandes ficções sociais.

A incapacidade de relacionar as coisas, as ideias e as sensações transforma-a ele em força, e como lhe escapam as causas e os fins do que lhe mandaram fazer, fá-lo com prontidão e limpeza, sem introspecções inúteis. Do mesmo modo, como vê no destino o único regulador da vida, acha que se uns dão ordens e outros obedecem é porque todos cumprem misteriosas injunções da providência, as quais é não só inútil, mas criminoso sondar.

O idiota só pode ser bom. Para o mal, precisa-se de imaginação, inteligência descriminativa, espírito científico. Corno também não dispõe de virtualidades poéticas e é, portanto, incapaz de se criar a si próprio, idolatra quem o criou: Deus em primeiro de tudo, e depois os pais.

O idiota é um bom cidadão. Sem ele, a sociedade entraria em curto-circuito, incendiada entre os polos do dever heróico e da desobediência revolucionária. Dado ser-lhe vedado apreender o nexo que liga a evolução dos meios de produção à transformação das relações de propriedade acredita de facto que o corolário das novas tecnologias é o reforço da iniciativa privada, da livre empresa e do livre mercado. É o único que acredita nisso e ainda bem. Se ninguém acreditasse, esta sociedade parava. O idiota é todo liberdades.

A idiotia também faz bem às artes, principalmente às audiovisuais. A concentração do idiota numa ideia fixa, torna-o especialmente receptivo às músicas de ritmo simples e batida forte, o que facilita extraordinariamente o comércio discográfico, com todas as vantagens que daí advêm para producers e performers, enfim, para o tecido social. No que diz respeito às artes plásticas, tudo é mais fecundo se não houver interferências entre os olhos e as mãos. As ideias perturbam, turvam o olhar, atrapalham o gesto e, nos casos de ideologite aguda, daltonizam as cores. Sem imagens, uma cabeça vazia endoidece.

Embora para um idiota seja uma desvantagem não saber que o é, normalmente ninguém lho diz:: segundo Brecht, «tornar-se-ia vingativo como todos os idiotas». Aliás, o mesmo Brecht diz que ser idiota não é grave: «É assim que você poderá chegar aos 80 anos. Em matéria de negócios é mesmo uma vantagem. E então na política!»

O idiota puro é o idiota jovem. Com o tempo, torna-se cínico, adquire hábitos esquisitos, sempre à procura do que lhe serve ou lhe rende, em busca de técnicas para obter sucesso e se sentir bem, sereno, de boa saúde e belo aspecto: cristianismo, ioga, dieta macrobiótica, drogas, parapsicologia, psicanálise, etc.

Para o idiota, os sentimento e as emoções são «uma boa», constituindo dados manipuláveis. Em si mesmos, não lhes acha qualquer sentido ou valor, mas de qualquer modo são coisas que lhe podem trazer vantagens ou desvantagens: é preciso, portanto, avaliar-lhes as implicações e consequências. Ao lidar com sentimentos e emoções, os próprios e os alheios, o problema, para o idiota, consiste em controlá-los, guiá-los, desfrutá-los, e isso implica trabalho, cálculos complicados e a aprendizagem de técnicas nem sempre fáceis.

Impossível, realmente, para o idiota, é a espontaneidade criativa. É algo que lhe surge como uma perspectiva insegura e assustadora. À criação, prefere os sucedâneos que se aprendem nos «workshops» e nas escolas. É uma vida dura, a do idiota: de curso em curso, de colóquio em colóquio, de ciclo em ciclo. Se tem dinheiro, o idiota não se priva de ir ao sexologista e ao psicanalista aprender a libertar os apetites e fantasias sexuais e sentimentais. Com o tempo, tudo se torna para ele aprendizagem e contabilidade: do prazer, da espontaneidade, da criatividade. Cautelosa, como a contabilidade do dinheiro. Ao idiota, repugnam os ímpetos passionais, poéticos e místicos: procura prazeres seguros, previsíveis, e afasta tudo o que possa perturbá-lo.

No plano do consumo e na vida social, o idiota português aprecia as coisas cómodas, os pequenos e grandes privilégios, planeando com minúcia o modo de obtê-los. Sejam quais forem as suas petições de princípio políticas, no fundo é um céptico, despreza o «povinho», vive fechado para os outros. Aos generosos e altruístas, considera-os parvos ou hipócritas. O idiota circula à volta do sucesso como a borboleta em redor da chama, agarrando-se como lapa ou mexilhão a quem o alcança. Espertalhão, agrada-lhe receber, mas dá o menos possível, e arranja sempre qualquer explicação ética para justificar este comportamento. Na realidade, a sua lógica, elementar como as suas poucas ideias e imagens, consiste apenas em receber sempre mais do que dá.

Na actividade económica, não existe em Portugal correspondência entre o surto idiotista e o crescimento empresarial. Em muitos cavaleiros da phinança idiotófila prevalece ainda um conceito patrimonial da riqueza. Uma bela casa no campo é ainda o sinal mais espaventoso de bem-estar e opulência.

Entre os idiotas, também começa a manifestar-se, se bem que de modo caricatural, algo que recorda o hedonismo e o utilitarismo da aristocracia de outrora: o gosto de ser servido, de se distinguir do «vulgar». Como única crítica a filmes, espectáculos, livros, etc., é frequente ouvi-los dizer: «Mas que mau gosto!»

Os idiotas andam sempre juntos: consomem os mesmos produtos, frequentam os mesmos locais, lêem os mesmos livros e jornais, e têm uma habilidade notável para descobrir e evitar quem não é idiota. Graças a Deus! A política, porém, unifica o conjunto da sociedade sob o signo da idiotia: pessoas estimáveis, notáveis até nos diversos domínios do saber e da cultura, quando chegam à política tornam-se idiotas. Triunfam, quer-se dizer. Tornam-se, enfim, públicas.


[Publicado no Diário de Lisboa, de 12/6/87.]






ernesto sampaio
ideias lebres
fenda
1999




04 março 2007

a francisco





suave como o perigo atravessaste um dia
com a tua mão impossível a frágil meia-noite
e a tua mão valia a minha vida, e muitas vidas
e os teus lábios quase mudos diziam aquilo que era o pensamento.


passei uma noite colado a ti como a uma árvore de vida
porque era suave como o perigo,
como o perigo de viver de novo.







leopoldo maria panero
last river together
trad. g.s.
1980



03 março 2007

marguerite duras / textos secretos (2)




Já não te amo como no primeiro dia. Já não te
amo.


No entanto continuam em volta dos teus
olhos, sempre, estas imensidades que rodeiam o
olhar e esta existência que te anima no sono.


Continua também esta exaltação que me vem
por não saber o que fazer disto, deste conheci-
mento que tenho dos teus olhos, das imensidades
que os teus olhos exploram, por não saber o que
escrever sobre isso, o que dizer, e o que mostrar
da sua insignificância original. Disso, sei apenas o
seguinte: que já não posso fazer nada a não ser
suportar esta exaltação a propósito de alguém
que estava ali, de alguém que não sabia que vivia
e de quem eu não sabia que vivia, de alguém que
não sabia viver dizia-te eu, e de mim que o sabia
e que não sabia que fazer disso, desse conhe-
cimento da vida que ele vivia, e que também não
sabia que fazer de mim.


Dizem que o tempo do pleno verão já se anun-
cia, é possível. Não sei. Que as rosas já ali estão,
no fundo do parque. Que às vezes não são vistas
por ninguém durante o tempo da sua vida e que
ficam assim ali no seu perfume esquartejadas
durante alguns dias e que depois se deixam cair.
Nunca vistas por esta mulher solitária que
esquece. Nunca vistas por mim, morrem.


Estou num amor entre viver e morrer. É atra-
vés desta ausência do teu sentimento que reen-
contro a tua qualidade, essa, precisamente, de me
agradares. Penso que apenas me interessa que a
vida não te deixe, outra coisa não, o desenvolvi-
mento da tua vida deixa-me indiferente, não
pode ensinar-me nada sobre ti, só pode tornar-
-me a morte mais próxima, mais admissível, sim,
desejável. É assim que permaneces face a mim, na
doçura, numa provocação constante, inocente,
impenetrável.


E tu não sabes.








marguerite duras
textos secretos
trad. tereza coelho
quetzal
1999





01 março 2007

isto é o meu corpo




Isto é o meu corpo. Aquí
coincidem a linguagem e o amor.
A soma das linhas
que escrevi desenhou
não o meu rosto, mas qualquer coisa mais humilde:
o meu corpo. Isto que tocas é o meu corpo.
digo-to
de outra maneira. Isto que tocas
não é um livro, é um homem.


Eu acrescento que isto que te toca agora
é um homem.
Sou eu, porque não há
nem uma única sílaba que esteja livre de amor,
não há nem uma só sílaba
que não seja um centímetro
quadrado da minha pele.
No poema sou acariciável
não menos que na noite, quando tenho
o meu sonho paralelo ao sonho que amo.
Não mosaico, nem número, nem soma.


Não é só isso.
Isto é uma entrega. Sou pequeno
e grande entre as tuas mãos.
Esta é a minha salvação. Este sou eu.
Este rumor do mundo é o amor.








gonzález iglesias
esto es mi cuerpo
trad. gs
visor, Madrid
1997





28 fevereiro 2007

as riquíssimas horas do Duque de Berry





fevereiro

O inverno numa aldeia. A neve, o fogo, a vida quotidiana que não pára.



canção de amor





Se estivesses a afogar-te, vinha acudir-te,
embrulhava-te num cobertor e dava-te chá quente.
Se fosse xerife, prendia-te
e fechava-te numa cela com aloquete.

Se fosses uma ave rara, gravava um disco
e ficava a ouvir a noite inteira o teu trilo agudo.
Se fosse o sargento, serias a minha recruta,
e, rapaz, garanto-te, ias adorar a instrução.

Se fosses chinesa, aprendia a língua,
queimava pilhas de incenso, vestia roupas esquisitas.
Se fosses um espelho, invadia as “Senhoras”,
dava-te o meu bâton e punha-te pó-de-arroz no nariz.

Se gostasses de vulcões, seria a lava, em
erupção contínua da minha secreta fonte.
E se fosses a minha mulher, era o teu amante,
porque a Igreja ao divórcio se opõe firmemente.







joseph brodsky
tradução de carlos leite
Cotovia
1995





27 fevereiro 2007

ninguém se lembra





De quem ao coração vai buscar água
ninguém se lembra nem
de quem por tê-lo
pregado à pele mostra os seus pregos ferrugentos.








luís miguel nava

poesia completa (1979-1994)
rebentação
publicações dom quixote
2002





26 fevereiro 2007

as riquíssimas horas do Duque de Berry





janeiro

O mês de Janeiro é o mês dos presentes de Ano Novo. Em certas famílias não se celebrava o Natal, dava-se um presente no início de cada ano, chamado étrennes. Esta palavra remonta a um costume romano segundo o qual o patrão oferecia um subsídio anual aos seus clientes.
(do latim strena, que em português se tornou estreia)


a casa onde às vezes regresso




a casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes, estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos


durmo no mar, durmo ao lado de meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo


tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração.








josé tolentino mendonça
“a que distância deixaste o coração”
assírio & alvim
1998







25 fevereiro 2007

a espuma dos dias


(…)

— De facto não me interessa muito — disse o gato.
— Fazes mal — respondeu a ratinha. — Ainda sou nova e até há pouco bem alimentada.
— Também eu ando bem alimentado — disse o gato — e não sinto nenhuma vontade de me suicidar. Estás pois a ver por que razão acho isso anormal.
— É porque não viste — acrescentou a ratinha.
— O que é que isso tem? — perguntou o gato.
Não tinha grande necessidade de sabê-lo. Havia calor e os seus pêlos revelavam a maior elasticidade.
— Fica à beira da água — disse a ratinha — espera a hora, anda pela prancha e pára ao meio. Vê qualquer coisa.
— Não pode ver grande coisa — respondeu o gato. — Talvez um nenúfar.
— Sim — disse a ratinha, — Espera que ele suba para o matar.
— É idiota. Não tem qualquer interesse.
— Depois de passar a hora — continuou a ratinha — volta à margem e olha para a fotografia.
— Nunca come? — perguntou o gato.
— Nunca — disse a ratinha. — Está a ficar muito fraco e eu não posso suportar uma coisa dessas. Um destes dias vai dar um passo em falso, quando passar por cima daquela grande prancha.
— E que mal isso te faz? perguntou o gato. — Sentir-se-á infeliz, por acaso?
— Não se sente infeliz — respondeu a ratinha —, sofre. É isso que eu não posso suportar. E depois há-de cair na água, debruça-se de mais.
— Sendo assim — disse o gato —, quero prestar-te o serviço, mas não sei por que razão digo «sendo assim», uma vez que não percebo nada.
— És formidável — disse a ratinha.
— Mete a cabeça na minha boca e espera.
— Vai demorar muito tempo?
— O tempo de alguém me pisar o rabo — respondeu o gato; tenho de ter reflexos rápidos. Mas vou deixá-lo de fora, não tenhas medo.

A ratinha afastou as mandíbulas do gato e enfiou a cabeça entre os dentes agudos. Retirou-a logo a seguir.

— Diz-me cá — perguntou —, comeste tubarão esta manhã?
— Ouve — disse o gato —, se não te agradar podes pôr-te a mexer. Esses truques não me impressionam. Desenrasca-te sozinha.

Parecia aborrecido.

— Não te zangues — pediu a ratinha.

Fechou os olhinhos pretos e pôs a cabeça em posição. Com precaução, o gato encostou os caninos pontiagudos ao pescoço cinzento e delicado. Os bigodes pretos da ratinha misturavam-se aos seus. Desenrolou a cauda felpuda e deixou-a estendida no passeio.

Onze rapariguinhas cegas do Orfanato Júlio, o Apostólico, aproximavam-se a cantar.








boris vian
a espuma dos dias
trad. aníbal Fernandes
ulisseia
1974


22 fevereiro 2007

o sul do tempo




o olhar desfeito
na coerência do invisível

o remoto
lugar de areias ardentes
onde afogadas as mãos se soltam

o nome dos ventos
o sul do tempo

o sentido rumor
dos séculos imperfeitos
que te escondiam

esperavas
sob a mais alta estrela

o mundo a cercar-te
como se eu te levasse
o livro

pus o meu nome
na roldana do vento

era cedo
como nunca mais
voltaria a ser






gil t. sousa
poemas
2001




21 fevereiro 2007

em nome







em nome da tua ausência
construí com loucura uma grande casa branca
e ao longo das paredes te chorei








sophia de mello b. andressen
dual I
moraes
1972







20 fevereiro 2007

moravagine




Ó jovem, considera a secura
dos trágicos que se perdem em facécias. Não esqueças
que não existe alguma vez progresso
quando o coração petrifica. É
preciso que toda a ciência se
ordene à semelhança dum fruto que
se dependure na ponta de uma árvore
de carne e que amadureça
ao sol da paixão,
histologia, fotografia, campainha
eléctrica, telescópios, pássaros,
amperes, ferro de passar,
etc. – Tudo isto é para deslumbrar a porra da hu-
manidade.


O teu rosto é tão diferente
tão comovente molhado de
lágrimas e pronto a rebentar
de riso.





blaise cendrars
moravagine
trad. e pref. ruy belo
livros cotovia
1992






17 fevereiro 2007

é amargo o coração do poema



É amargo o coração do poema.
A mão esquerda em cima desencadeia uma estrela,
em baixo a outra mão
mexe num charco branco. Feridas que abrem,
reabrem, cose-as a noite, recose-as
com linha incandescente. Amargo. O sangue nunca pára
de mão a mão salgada, entre os olhos,
nos alvéolos da boca.
O sangue que se move nas vozes magnificando
o escuro atrás das coisas,
os halos nas imagens de limalha, os espaços ásperos
que escreves
entre os meteoros. Cose-te: brilhas
nas cicatrizes. Só essa mão que mexes
ao alto e a outra mão que brancamente
trabalha
nas superfícies centrífugas. Amargo, amargo. Em sangue e exercício
de elegância bárbara. Até que sentado ao meio
negro da obra morras
de luz compacta.
Numa radiação de hélio rebentes pela sombria
violência
dos núcleos loucos da alma.







herberto helder
le poème continu
somme anthologique
institut camões / chandeigne
paris, 2002






duelo após o baile de máscaras

16 fevereiro 2007

no mesmo espaço




Ambiente da casa, dos cafés, do bairro
que vejo e percorro: ano após ano.

Criei-te de alegrias e tristezas:
de tantas circunstâncias, tantas coisas.

E já não és senão como te sinto.

(1929)







constantino cavafy
90 e mais poemas
trad Jorge de Sena
edições asa
2003



15 fevereiro 2007

sentires



saltei os dias, enquanto minha mãe embalava a máquina do tempo, tentando esquecer os gritos ruidosos. sentia o vai e vem acelerado da vida vazia, que guardava na memória das redes de secretos desejos. carregava nos ombros cactos. picavam-me a pele queimada pelo salitre. não havia dor, o sangue escorria como áscuas. a paixão perseguia um rasto agudo. fulgurava a pressão aterradora do sibilar da cobra pérfida, que atravessava o silêncio, da minha memória. saboreava no outro lado do dia, pitangas que colhia no quintal sem paredes. um rasto de esperma precário, fazia-me recordar erros em salas de tortura. senti-me um lugar. os sonhos transmitiam nevoeiros de palavras embaciadas mas hábeis. desnudava muda o ardor das manhãs. no espelho da casa onde vivia, as sombras tomavam formas de corpos rasgados de mim, enlaçados na sofreguidão do ciúme.



os pássaros com mangonha, debicavam a goiaba pútrida. estendi os dedos e toquei nas aves. sobre a mesa da sala, outras mãos, unidas nas sombras, filhas de estrelas escondidas e sem rostos. mãos que acariciavam o saber místico dos sentires. os dedos dançavam no brilho dos meus olhos, senti-os gélidos, extensos. olhei-os fixamente e saltavam miraculosas cores luminosas. feriu-me o gelo intenso da luz.



por fim, adormeci no sumo do fruto proibido.

entrei no engano das imagens...





l.maltez

14 fevereiro 2007

não pares de me chamar




não pares de me chamar
faz de mim o sul dos teus rios

põe-me céus de vertigem nos dias
ou mares
põe-me mares nos instantes
e acende-me nos olhos
um bonito grito
como se eu fosse a madrugada
ou aquela hora
em que numa pedra branca
me desenhas o mundo
e eu me arrependo
de enlouquecer

leva-me
leva-me pelos telhados mais altos
e ensina-me os horizontes sem fim
as árvores antigas
onde as cores das estações se escondem
onde começam os caminhos
onde acabam as fugas
onde terminam as procuras

e dá-me as cidades
as mais longínquas
as que crescem das casas que sonhaste
e põe-me a teu lado

debruça-me nessas janelas
para nenhuma solidão







gil t. sousa
poemas
2001






13 fevereiro 2007

livro da noite




*

há coisas que não faço voluntariamente:
sonho o que sonho,
sinto o que posso sentir,
e querer é coisa que não quero de modo
nenhum, todas estas coisas aconte-
cem, como se fossem sexo,
e eu o seu corpo, quando as faço.


*





per aage brandt
livro da noite
trad. maria joão reynaud
poetas em mateus
quetzal
2004






11 fevereiro 2007

alejandra pizarnik / caminhos do espelho



I
E sobretudo olhar com inocência. Como se nada se passasse, o que é certo.

II
Mas a ti quero olhar-te até estares longe do meu medo, como um pássaro
no limite afiado da noite.

III
Como uma menina de giz cor-de-rosa num muro muito velho
subitamente esbatida pela chuva.

IV
Como quando se abre uma flor e revela o coração que não tem.

V
Todos os gestos do meu corpo e voz para fazer de mim a oferenda,
o ramo que o vento abandona no umbral.

VI
Cobre a memória da tua cara com a máscara daquela que serás
e afugenta a menina que foste.

VII
A nossa noite dispersou-se com a neblina. É a estação dos alimentos frios.

VIII
E a sede, a minha memória é da sede, eu em baixo, no fundo,
no poço, bebia, recordo.

IX
Cair como um animal ferido no lugar de hipotéticas revelações.

X
Como quem não quer a coisa. Nenhuma coisa. Boca cosida.
Pálpebras cosidas. Esqueci-me. Dentro o vento.
Tudo fechado e o vento dentro.

XI
Sob o negro sol do silêncio douravam-se as palavras.

XII
Mas o silêncio é certo. Por isso escrevo. Estou só e escrevo.
Não, não estou só. Há alguém aqui que treme.

XIII
Ainda que diga sol e lua e estrelas refiro-me a coisas que me acontecem.
E o que desejava eu?
Desejava um silêncio perfeito.
Por isso falo.

XIV
A noite parece um grito de lobo.

XV
Delícia de perder-se na imagem pressentida. Levantei-me do meu cadáver,
fui à procura de quem sou. Peregrina, avancei em direcção àquela
que dorme num país ao vento.

XVI
A minha queda sem fim na minha queda sem fim
onde ninguém me esperava pois ao descobrir quem me esperava
outra não vi senão a mim mesma.

XVII
Algo caía no silêncio. A minha última palavra foi eu
embora me referisse à aurora luminosa.

XVIII
Flores amarelas constelam um círculo de terra azul.
A água treme cheia de vento.

XIX
Deslumbramento do dia, pássaros amarelos na manhã.
Uma mão desata as trevas, arrasta a cabeleira da afogada
que não cessa de passar pelo espelho.
Voltar à memória do corpo, hei-de regressar aos meus ossos de luto,
hei-de compreender o que a minha voz diz.







Alejandra Pizarnik
Extracção da Pedra da Loucura
(1968), tradução de Luciana Leiderfarb
Construções Portuárias #1,
Maio de 2002



10 fevereiro 2007

pictures at an exibition: klavdij sluban






Klavdij Sluban
Turkey

[Around the Black Sea - Winter Journeys (1997-2001)]
2000



Klavdij Sluban
Poland
[Other Shores - The Baltic Sea (2001-2005)]
2004




Klavdij Sluban
Transiberian
[East to East (2004-....)]
2005



Klavdij Sluban
Transiberian
[East to East (2004-....)]
2004




klavdij sluban








06 fevereiro 2007

nos dias nevoentos fecho as janelas


(…)

Nos dias nevoentos fecho as janelas,
acendo a luz forte
e deito-me no tapete.

Leio ou penso.
Ou então fumo,
enquanto as camadas de silêncio se sobrepõem,
e as mais pesadas descem
e as mais leves se tornam pesadas,
até ser impossível destruir o silêncio.

É fascinante,
debaixo de uma luz que brilha tanto.

Lá fora, a terra
- a terra das criaturas que se aproximam uma das outras,
se tocam e falam.

O silêncio é sólido,
iluminado por cima,
aquecido pelos lados.

Durante seis meses fumo e leio,
estendido no tapete.

Depois chega o verão,
e subo à montanha,
e vou para o mar.

Rebento de sol e água,
do odor a terra quente
e agulhas de pinheiro.

Estou tremendamente forte.

(…)





apresentação do rosto
herberto helder
editora ulisseia
1968


04 fevereiro 2007

book zapping #008 inferno



V

SYLVA SYLVARUM




Atingido meio caminho na minha vida, sento-me a descansar e a reflectir. Alcancei tudo o que audaciosamente desejei e sonhei. Carregado de vergonha e honra, alegrias e sofrimento, pergunto: E depois?
Tudo se vai repetindo numa desesperante monotonia, tudo é idêntico. Disseram os Antigos que o Universo já não possui segredos, encontrámos a palavra de todos os enigmas, resolvemos todos os problemas. Com um espectroscópio vimos que o Sol tem falta de oxigénio, não impedindo que arda tão bem como o antimónio no cloro ou o cobre no enxofre.
Desenhámos os canais de Marte que tão desagradavelmente recordam os desenhos de Widmannestetten nos meteoritos e, no entanto, só há bem pouco tempo sabemos ao certo como é o aspecto interior de África e nada conhecemos de Bornéu ou dos oceanos polares.
Uma geração que devia ter tido a coragem de suprimir Deus, demolir o Estado, a Igreja, a sociedade e os costumes, ainda se vergou à ciência em que devia reinar a liberdade mas cuja palavra de ordem foi acreditar na autoridade ou morrer! Ainda não foi erigida qualquer coluna da Bastilha no local de uma antiga Sorbonne. A cruz ainda domina o Panteão e a cúpula o Instituto.
Não há nada a fazer neste mundo. Sinto-me inútil e resolvido a desaparecer.
Já a lâmpada de espírito-de-vinho está acesa debaixo da retorta, já amarelo como ouro está o ferrocianeto de potássio que cheira como o cardo-leiteiro quando quente, destilado do sangue e do ferro, prestes a receber o ácido sulfúrico que oferece a morte quando concentrado e cria a vida por fermentação quando diluído. Desta vez será concentrado para provocar a morte. - Que diferença, afinal? E que soberba contradição!
O cianogénio, o gerador de azul nascido do sal amarelo, começa a desenvolver-se na mais inocente de todas as combinações que o carvão puro faz com o indiferente azoto, uma terrível aliança que não tem igual e forçou a ciência a confessar ignorância perante a natureza deste milagre.
Os vapores saem do recipiente e atingem-me a garganta como a difteria ou os venenos de cadáver não oxigenados. Os músculos do braço começam a paralisar-se e sinto dores agudas na espinal-medula.
Interrompo a operação quando o cheiro a amêndoas amargas se liberta. Sem saber porquê, parece-me que vejo uma amendoeira em flor numa álea de jardim e oiço uma voz de mulher velha que diz ó criança, não acredites nisso!
Não voltei a acreditar, portanto, que o segredo do Universo esteja desvendado e saí, umas vezes só, outras acompanhado, para reflectir na grande desordem onde acabei por descobrir urna coerência infinita.
Este é o livro da grande desordem e coerência infinita.
Eis o meu Universo, como o criei e a mim se revelou:
Se quiseres seguir-me, peregrino, transeunte, começarás a respirar mais livremente. Porque no meu Universo reina a desordem e na desordem é que existe a liberdade.







august strindberg
inferno
trad. aníbal fernandes
& etc
1978




02 fevereiro 2007

há um ruído



há um ruído que se silencia
no escorreito de tuas veias

é o silêncio amurado
que corre desencontrado
em direcção a rápidos

há um ruído que se silencia
forte de centelha

que envenena no teu choro
de menina
e arde como roma

ao nero olhar à pira

há um ruído que emudece
se te beijo o corpo
a alma

há um ruído que transparece
se me transcende
se te transcende

há um ruído que se silencia
só para não gritar






nuno travanca
31 julho 2006







31 janeiro 2007

LXXIX. na noite obscura





alguém roubou uma tecla ao piano, sentiu, de súbito, o seu coração dividido, uma nota que um ladrão roubara dessa carreira ________ ouviu-se um som plangente.
Se não levou toda a carteira, evaporou-se aquela parte da melodia nas mãos de alguém. E o piano perdeu o seu fragmento de potência. Não ergue mais todo o falo, foi o que sentiu o desvario da mulher _________ e desejou que a tromba do elefante se levantasse, e fosse procurar o cavalo derrubado no mar, onde vivia, à tona, um bando de noctívagos que consumiam ansiedade e pobreza. A nota estava com eles. Para que fossem destruídos pela fome ancestral/angélica que traziam no ouvido.


Uma tecla musical desaparecida corresponde a urna pessoa sem vista para quem vê. Essa moeda de olhar cego,
onde brilharia? Onde estava o cego?
À distância a que se encontra a mulher de outrora da mulher da noite obscura. Na esquina de uma rua, a vender doces de solidão.
— Quem quer doces da noite obscura? — apregoava. — Aí estava o cego, à margem das páginas que, à sua volta, se suicidavam.
Apregoava: «Doces da noite obscura. Doces de solidão».

E muitos jantavam unicamente esses doces, sem nenhum gosto, a não ser o da noite que os guiava ________ a alguns, muito poucos.





maria gabriela llansol
amigo e amiga
curso de silêncio de 2004
assírio & alvim
2006



29 janeiro 2007

harold pinter / mensagem





Jill. O Fred telefonou. Não pode esta noite.
Disse que ligava outra vez logo que desse.
Eu disse (por ti) OK, não há problema.
Disse para eu te dizer que ele estava bem,
Só a merda, disse ele, sabes, fica colada,
A merda que tens de combater.
Às vezes não é mais do que um monte de merda ambulante.

Eu própria estou bem familiarizada com o pivete,
Disse-lhe eu, e aconselhei-lhe calma.
Não deixes que esses cabrões te deitem abaixo,
Descontrai um bocado a pressão,
Vai à cidade, queima uma pessoa até à morte,
Descobre uma outra puta, dá-lhe uma martelada,
Vive a juventude até ela se acabar,
Dá um pontapé nos tomates do primeiro cego que encontrares.

Mas ele vai ligar outra vez.

Eu volto à hora do chá.

A tua mãe que te adora.





harold pinter
várias vozes
trad. vários
quasi
2006





26 janeiro 2007

jean genet



A lantejoula é uma roda minúscula de metal dourado,
com furo ao centro. Fina e leve, até na água flutua.
Por vezes, duas ou três ficam coladas aos caracóis
de um acrobata.

Esse amor - mas quase em desespero,
mas carregado de ternura - que deves mostrar
pelo teu arame, tanta força terá como o arame
que vai suportar o teu peso.
Conheço os objectos, a malignidade que têm,
a crueldade, a gratidão também.
Estava morto, o arame
- ou mudo se quiseres, ou cego -
e olha: vai viver agora, e falar.

Vais amá-lo
e de um amor quase carnal.
Antes de começares o treino todas as manhãs,
com ele tenso e a vibrar, vai dar-lhe um beijo.
Pede-lhe que aguente o teu peso
e te conceda elegância e nervosidade à perna.
No fim da sessão vai saudá-lo e agradecer-lhe.
E à noite, já enrolado na caixa, vê-lo e fazer-lhe festas.
E encosta, muito meigo, a tua face à dele.

(...)





jean genet
o funâmbulo

trad. aníbal fernandes
hiena editora
1984




20 janeiro 2007

fiama hasse pais brandão (1938-2007)




Resposta





"Eu vinha para a vida, e deram-me dias"
vivos com os seus lugares e espaço.

Ontem nasci sem fim, e alimentei-me
nesta mesa que em duas se reparte.
Uma aba no mar, vagante à toa,
trouxe os sabores de ondas, de orlas.
Outra aba na terra mostrou-me as pedras
polidas, úberes, gastas. Pedras
densas que me encheram o ventre
e me criaram similar à Terra.
No mar tive cristais quebrados, jóias;
na terra, tão nítida poeira branca
que fundi as formas das flores visíveis.

E hoje é este olhar profundo,
deriva das imagens pelo mundo.





fiama hasse pais brandão
cenas vivas
relógio d’ água

2000






16 janeiro 2007

douglas coupland

a vida depois de deus

Ora eu sou urna pessoa afectuosa, mas custa-me muito mostrá-lo.

Quando era mais novo, costumava preocupar-me muito a ideia de ficar só, de ninguém me amar ou de ser incapaz de amor. À medida que os anos foram passando, as minhas preocupações mudaram. Passei a temer ter-me tornado incapaz de uma relação, de oferecer intimidade. Sentia-me como se o mundo vivesse dentro de uma casa confortável à noite e eu estivesse cá fora, e ninguém me visse por estar cá fora de noite. Mas agora estou dentro da casa e sinto-me precisamente na mesma.

Aqui sozinho, agora, todos os meus medos irrompem, os medos que julguei enterrar para sempre quando me casei: medo da solidão; medo de que estar sempre a apaixonar-me e a desapaixonar-me tornasse mais difícil amar; medo de nunca sentir o verdadeiro amor; medo de que alguém se apaixonasse por mim, ficasse extremamente próximo, a saber tudo de mim, e depois desligasse a ficha; medo de que o amor só fosse importante até certo ponto depois do qual tudo é negociável.

Durante muitos anos, vivi urna vida solitária e achava a vida boa. Mas sabia que se não explorasse a intimidade e partilhasse a intimidade com mais alguém, a vida nunca iria além de certo ponto. Lembro-me de pensar que, se não soubesse o que ia dentro de outra cabeça além da minha, ia explodir.






douglas coupland
a vida depois de deus
trad. telma costa
teorema
1994



14 janeiro 2007

al berto



ofício de amar




já não necessito de ti
tenho a companhia nocturna dos animais e a peste
tenho o grão doente das cidades erguidas no princípio doutras galáxias, e
o remorso


um dia pressenti a música estelar das pedras, abandonei-me ao silêncio
é lentíssimo este amor progredindo com o bater do coração
não, não preciso mais de mim
possuo a doença dos espaços incomensuráveis
e os secretos poços dos nómadas


ascendo ao conhecimento pleno do meu deserto
deixei de estar disponível, perdoa-me
se cultivo regularmente a saudade de meu próprio corpo







al berto
o medo
assírio & alvim
1997







10 janeiro 2007

m. fernanda silva



à superfície do fogo ...




à superfície do fogo a respiração dos equilíbrios
a frágil ironia dos contrários os espaços cheios de vácuo
os grafismos que se soltam dos murmúrios das plantas
rasteiras à beira-mar

no coração do lume as palpitações das águs presas
os cordões umbilicais que se entrançam enegrecem
as vísceras que escutam Bach cantam os coros voláteis
rompem-se em partículas não observáveis

nas almas reluzentes dos nados-mortos deitados sobre
véus de noivas dilacerados tingidos de invisivilidade
as portas intransponíveis dos outros universos
que de longe nos acenam improbabilidades poéticas





m.f.s.




08 janeiro 2007

oswaldo roses



CRUEL BELLEZA




Pero nunca te encuentro amor que tú serías prometido,
nunca,
como un pálido rescatar diamantes imposibles.

Oh, ese chirrido de días que pasa como lágrimas
que se confluirán tiernamente en los mares perdidos.

Pero nunca te encuentro, nunca, persiguiéndome los entusiasmos
como esas lunas ebrias en islas engañadas
por inmensa -indesteñible- soledad.

Pero nunca: ciegamente así.

Tú amor que eres libre serás siempre libre,
como el aire insepunlto fluyendo;
tú eres libre sin esfuerzo,
perdiéndote,
perdiéndote ya apenas con horizontes.

Es tu fuerte designio: majestuosidad lejana,
muy lejana
donde entrevistos pájaros aún no sabrían vivir, soñando,
soñando frenéticamente día tras día.

Es tu endiosado poder y, asimismo, cruel belleza,
sublime
donde ya no quiero ingenuizar la muerte,
sino alzar mis ojos al crepúsculo ferviente
y, acaso, ya.... sonreír,
¡oh indagable Amor!






Oswaldo ROSES




07 janeiro 2007

gil t. sousa



sopro




eu era o sopro
de um muito antigo grito

sobrava-me a doçura
de uma catedral imperfeita

um silêncio sem luz
morto nas paredes ideadas

tinha torres sineiras
palavras altas

muito para além dos signos
e que entravam nas cidades

pelo seu lado mais escuro
até se tornarem leis


tu não sabes
mas eu era a sombra

que dedilha os vitrais
a invisível música

das nascentes de pedra
eu era a torrente

que alaga o sonho
dos sábios

a rocha de sangue
com que se tecem

os caprichos
dos reis






gil t. sousa
"poemas"
2001







06 janeiro 2007

jean-arthur rimbaud


frases


lancei cordas de campanário a campanário; grinaldas de janela a janela; cadeias de ouro de estrela a estrela, e danço.







jean-arthur rimbaud
“iluminações / uma cerveja no inferno”
trad. de mário cesariny
estúdios cor
1972

01 janeiro 2007

a bicicleta pela lua dentro — mãe, mãe —



A bicicleta pela lua dentro — mãe, mãe —
ouvi dizer toda a neve.
As árvores crescem nos satélites.
Que hei-de fazer senão sonhar
ao contrário quando novembro empunha —
mãe, mãe — as telhas dos seus frutos?
As nuvens, aviões, mercúrio.
Novembro — mãe — com as suas praças
descascadas.

A neve sobre os frutos — filho, filho.
Janeiro com outono sonha então.
Canta nesse espanto — meu filho — os satélites
sonham pela lua dentro na sua bicicleta.
Ouvi dizer novembro.
As praças estão resplendentes.
As grandes letras descascadas: é novo o alfabeto.
Aviões passam no teu nome —
minha mãe, minha máquina —
mercúrio (ouvi dizer) está cheio de neve.


Avança, memória, com a tua bicicleta.
Sonhando, as árvores crescem ao contrário.
Apresento-te novembro: avião
limpo como um alfabeto. E as praças
dão a sua neve descascada.
Mãe, mãe — como janeiro resplende
nos satélites. Filho — é a tua memória.


E as letras estão em ti, abertas
pela neve dentro. Como árvores, aviões
sonham ao contrário.
As estátuas, de polvos na cabeça,
florescem com mercúrio.
Mãe — é o teu enxofre do mês de novembro,
é a neve avançando na sua bicicleta.


O alfabeto, a lua.


Começo a lembrar-me: eu peguei na paisagem.
Era pesada, ao colo, cheia de neve.
la dizendo o teu nome de janeiro.
Enxofre — mãe — era o teu nome.
As letras cresciam em torno da terra,
as telhas vergavam ao peso
do que me lembro. Começo a lembrar-me:
era o atum negro do teu nome,
nos meus braços como neve de janeiro.


Novembro — meu filho — quando se atira a flecha,
e as praças se descascam,
e os satélites avançam,
e na lua floresce o enxofre. Pegaste na paisagem
(eu vi): era pesada.
O meu nome, o alfabeto, enchia-a de laranjas.
Laranjas de pedra — mãe. Resplendentes,
as estátuas negras no teu nome,
no meu colo.


Era a neve que nunca mais acabava.


Começo a lembrar-me: a bicicleta
vergava ao peso desse grande atum negro.
A praça descascava-se.
E eis o teu nome resplendente com as letras
ao contrário sonhando
dentro de mim sem nunca mais acabar.
Eu vi. Os aviões abriam-se quando a lua
batia pelo ar fora.
Falávamos baixo. Os teus braços estavam cheios
do meu nome negro, e nunca mais
acabava de nevar.

Era Novembro.

Janeiro: começo a lembrar me.
O mercúrio crescendo com toda a força em volta
da terra. Mãe — se morreste, porque fazes
tanta força com os pés contra o teu nome,
no meu colo?
Eu ia lembrar-me os satélites todos
resplendentes na praça. Era a neve.
Era o tempo descascado
sonhando com tanto peso no meu colo.
Ó mãe, atum negro —
ao contrário, ao contrário com tanta força.

Era tudo uma máquina com as letras
lá dentro. E eu vinha cantando
com a minha paisagem negra pela neve.
E isso não acabava nunca mais pelo tempo
fora. Começo a lembrar-me.
Esqueci-te as barbatanas, teus olhos
de peixe, tua coluna
vertebral de peixe, tuas escamas. E vinha
cantando na neve que nunca mais
acabava.


O teu nome negro com tanta força —
minha mãe.
Os satélites e as praças. E novembro
avançando em janeiro com seus frutos
destelhados ao colo. As
estátuas, e eu sonhando, sonhando.
Ao contrário tão morta — minha mãe —
com tanta força, e nunca


— mãe — nunca mais acabava pelo tempo fora.







herberto helder
“poesia toda”
assírio & Alvim
1998