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09 outubro 2015

michel foucault / talvez um dia já não saibamos bem o que foi a loucura




Talvez um dia já não saibamos bem o que foi a loucura. O seu rosto ter-se-á fechado sobre si mesmo não mais permitindo decifrar os rastos que deixou. E, ao olhar ignorante, os próprios rastos conseguirão ser mais do que simples marcas negras? Quando muito farão parte de configurações que agora não saberíamos desenhar mas no futuro serão códigos indispensáveis para nos tornarmos legíveis, nós e a nossa cultura. As nevroses pertencerão às formas constituintes (e não aos desvios) da nossa sociedade. Tudo o que hoje sentimos sobre a forma do limite, ou do estranho, ou do insuportável, ter-se-á reunido à serenidade do positivo. E o que para nós designa actualmente este Exterior arrisca-se um dia a designar-se a nós.

Apenas sobrará o enigma desta Exterioridade. Perguntar-se-á, então, que estranha delimitação era essa que interveio desde o mais fundo da Idade Média até ao Séc. XX e, quem sabe, se além dele. Por que rejeitou a cultura ocidental, desde os primórdios, aquilo que ela própria teria podido tão bem reconhecer-se – ou se reconheceu, de facto, de uma forma oblíqua? Por que teria, claramente desde o Séc. XIX mas na verdade desde a idade clássica, afirmado que a loucura era a desnuda verdade do homem e, apesar disso, a colocou num espaço neutralizado e pálido em que surgia como que anulada? Por que recolheu as palavras de Nerval e Artaud, por que se reencontrou nelas e não neles?

Assim se há-de vergar a viva imagem da razão em fogo. Esse jogo tão familiar que é olharmos para o outro extremo de nós na loucura e pormo-nos à escuta de vozes que, chegadas de tão longe, de perto nos dizem o que somos; esse jogo com as suas regras, tácticas, invenções, artimanhas, toleradas ilegalidades, já não passará de um ritual complexo cujos significados terão sido reduzidos a cinza. Qualquer coisa como a atenção ambígua que a razão grega dispensava aos seus oráculos. Ou ainda como essa instituição gémea, desde o Séc. XIV cristão, das práticas e dos processos de feitiçaria. Nas mãos das culturas históricas não sobrará mais do que as medidas codificadas do internamento, as técnicas da medicina e, por outro lado, a inclusão súbita, irruptiva, da palavra dos banidos na nossa linguagem.


michel foucault
história da loucura na idade clássica



(august strindberg
inferno
trad. aníbal fernandes
& etc
1978)





04 fevereiro 2007

book zapping #008 inferno



V

SYLVA SYLVARUM




Atingido meio caminho na minha vida, sento-me a descansar e a reflectir. Alcancei tudo o que audaciosamente desejei e sonhei. Carregado de vergonha e honra, alegrias e sofrimento, pergunto: E depois?
Tudo se vai repetindo numa desesperante monotonia, tudo é idêntico. Disseram os Antigos que o Universo já não possui segredos, encontrámos a palavra de todos os enigmas, resolvemos todos os problemas. Com um espectroscópio vimos que o Sol tem falta de oxigénio, não impedindo que arda tão bem como o antimónio no cloro ou o cobre no enxofre.
Desenhámos os canais de Marte que tão desagradavelmente recordam os desenhos de Widmannestetten nos meteoritos e, no entanto, só há bem pouco tempo sabemos ao certo como é o aspecto interior de África e nada conhecemos de Bornéu ou dos oceanos polares.
Uma geração que devia ter tido a coragem de suprimir Deus, demolir o Estado, a Igreja, a sociedade e os costumes, ainda se vergou à ciência em que devia reinar a liberdade mas cuja palavra de ordem foi acreditar na autoridade ou morrer! Ainda não foi erigida qualquer coluna da Bastilha no local de uma antiga Sorbonne. A cruz ainda domina o Panteão e a cúpula o Instituto.
Não há nada a fazer neste mundo. Sinto-me inútil e resolvido a desaparecer.
Já a lâmpada de espírito-de-vinho está acesa debaixo da retorta, já amarelo como ouro está o ferrocianeto de potássio que cheira como o cardo-leiteiro quando quente, destilado do sangue e do ferro, prestes a receber o ácido sulfúrico que oferece a morte quando concentrado e cria a vida por fermentação quando diluído. Desta vez será concentrado para provocar a morte. - Que diferença, afinal? E que soberba contradição!
O cianogénio, o gerador de azul nascido do sal amarelo, começa a desenvolver-se na mais inocente de todas as combinações que o carvão puro faz com o indiferente azoto, uma terrível aliança que não tem igual e forçou a ciência a confessar ignorância perante a natureza deste milagre.
Os vapores saem do recipiente e atingem-me a garganta como a difteria ou os venenos de cadáver não oxigenados. Os músculos do braço começam a paralisar-se e sinto dores agudas na espinal-medula.
Interrompo a operação quando o cheiro a amêndoas amargas se liberta. Sem saber porquê, parece-me que vejo uma amendoeira em flor numa álea de jardim e oiço uma voz de mulher velha que diz ó criança, não acredites nisso!
Não voltei a acreditar, portanto, que o segredo do Universo esteja desvendado e saí, umas vezes só, outras acompanhado, para reflectir na grande desordem onde acabei por descobrir urna coerência infinita.
Este é o livro da grande desordem e coerência infinita.
Eis o meu Universo, como o criei e a mim se revelou:
Se quiseres seguir-me, peregrino, transeunte, começarás a respirar mais livremente. Porque no meu Universo reina a desordem e na desordem é que existe a liberdade.







august strindberg
inferno
trad. aníbal fernandes
& etc
1978