Talvez um dia já não saibamos bem o que foi a
loucura. O seu rosto ter-se-á fechado sobre si mesmo não mais permitindo
decifrar os rastos que deixou. E, ao olhar ignorante, os próprios rastos
conseguirão ser mais do que simples marcas negras? Quando muito farão parte de
configurações que agora não saberíamos desenhar mas no futuro serão códigos
indispensáveis para nos tornarmos legíveis, nós e a nossa cultura. As nevroses
pertencerão às formas constituintes (e não aos desvios) da nossa sociedade. Tudo
o que hoje sentimos sobre a forma do limite, ou do estranho, ou do
insuportável, ter-se-á reunido à serenidade do positivo. E o que para nós
designa actualmente este Exterior arrisca-se um dia a designar-se a nós.
Apenas sobrará o enigma desta Exterioridade. Perguntar-se-á,
então, que estranha delimitação era essa que interveio desde o mais fundo da
Idade Média até ao Séc. XX e, quem sabe, se além dele. Por que rejeitou a
cultura ocidental, desde os primórdios, aquilo que ela própria teria podido tão
bem reconhecer-se – ou se reconheceu, de facto, de uma forma oblíqua? Por que
teria, claramente desde o Séc. XIX mas na verdade desde a idade clássica,
afirmado que a loucura era a desnuda verdade do homem e, apesar disso, a
colocou num espaço neutralizado e pálido em que surgia como que anulada? Por que
recolheu as palavras de Nerval e Artaud, por que se reencontrou nelas e não
neles?
Assim se há-de vergar a viva imagem da razão em
fogo. Esse jogo tão familiar que é olharmos para o outro extremo de nós na
loucura e pormo-nos à escuta de vozes que, chegadas de tão longe, de perto nos
dizem o que somos; esse jogo com as suas regras, tácticas, invenções,
artimanhas, toleradas ilegalidades, já não passará de um ritual complexo cujos
significados terão sido reduzidos a cinza. Qualquer coisa como a atenção
ambígua que a razão grega dispensava aos seus oráculos. Ou ainda como essa
instituição gémea, desde o Séc. XIV cristão, das práticas e dos processos de
feitiçaria. Nas mãos das culturas históricas não sobrará mais do que as medidas
codificadas do internamento, as técnicas da medicina e, por outro lado, a
inclusão súbita, irruptiva, da palavra dos banidos na nossa linguagem.
michel
foucault
história da loucura na idade clássica
(august
strindberg
inferno
trad. aníbal fernandes
& etc
1978)