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chove um dia, outro dia, sempre.
amanhece um dia nublado,
outro dia alvorece áspero e negro.
o vento abala a pedra
sobre que é construído o casebre.
o inverno tem a sua voz própria,
a sua cor, o seu vestido em farrapos
com que agasalha os montes
deixando-lhe os ossos de fora.
mas o inverno é sonho.
só agora o compreendo.
é sonho concentrado:
sob esta casca ressequida
está uma primavera intacta.
esta voz clamorosa é a voz dos mortos.
uma pausa,
a prostração da tempestade,
e depois redobra o clamor...
andam aqui as suas lágrimas...
na sufocação
reconheço esta voz que me chama.
e depois a tempestade,
novos gritos,
a escuridão profunda...
lá andaremos todos não tarda!
lá andaremos todos não tarda!
"que frio o outro mundo!
que impassibilidade a do outro mundo
saudade, saudade de tudo, até do fel,
saudade de te não sentir ao pé de mim.
tenho saudade da vida.
só poder aquecer-me ao lume,
só sentir o lume neste inverno sem limites,
neste frio de morte - sem outra primavera!
o que a vulgaridade sabe bem! o que a matéria sabe bem!
não vejo. ceguei.
disperso-me, e por mais esforços que faça,
sinto-me desagregar:
perco pouco e pouco a consciência de mim mesma.
sou ainda ternura e pouco mais.
já não tenho lágrimas.
quem me dera a desgraça!
e uma pena da vida! uma saudade da vida!
uma tristeza de não poder misturar-me à vida!
a vida - e um cantinho do lume,
a vida banal, a vida comezinha...
tenho saudades do muro a que costumava queixar-me.
vive devagarinho.
aquece-te à réstea do sol
como quem nunca mais tornará a aquecer-se;
perde todas as horas a trespassar-te da vida.
deixa que sobre ti caia o pó de oiro. vive-a.
tu és a nuvem, tu és a árvore.
enche a consciência de todas estas coisas,
porque não tardarás a perdê-la.
vive - não tornas a viver.
põe de acordo a tua alma com a pedra,
extrai encanto do céu e da miséria.
pudesse eu gritar! pudesse eu ter fome!
só agora dou pelo sabor das lágrimas.
sorri, esquece, dorme, sonha..."
raul brandão
húmus
(grafia adaptada)
frenesi
2000