Numa noite estava ele sentado à mesa dele
com a cabeça entre as mãos
quando se viu a si mesmo a levantar-se e a ir-se.
Uma noite ou um dia.
Pois quando se apagou a luz dele
não ficou na escuridão.
Na altura vinha uma espécie de luz
da única janela alta.
Debaixo dela ainda o banco por onde ele subia
para ver o céu até mais não poder
ou não querer.
Se não se esticava para ver
o que havia lá por baixo
era talvez porque a janela não era feita para abrir
ou porque ele não a podia ou não queria abrir.
Talvez ele soubesse até bem de mais
o que havia lá por baixo
e nunca mais o quisesse ver.
E assim mais não fazia
que pôr-se ali de pé bem alto acima da terra
a olhar através do vidro nublado para o céu sem nuvens.
A luz fraca e fixa do céu
como nenhuma outra luz de que ele se lembrasse
dos dias e das noites
em que dia dava em noite
e noite dava em dia.
Então esta luz exterior
quando a luz que ele tinha se apagou
tornou-se na única luz que tinha
até que por sua vez se apagou
e deixou-o na escuridão.
Até que por sua vez se apagou.
(...)
samuel beckett
sobressaltos
trad. miguel esteves cardoso
o independente
05-01-1990
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