01 agosto 2025

p. feijó / quem me dera poder dizer tudo isto



 

Quem me dera poder dizer tudo isto. Quem me dera poder gritá-lo sem hesitação, sem nenhuma inquietação. Quem me dera poder dizer «vós», «vosso», «vocês», e ter na mão a certeza dos contornos da minha oposição, dos meus adversários. Quem me dera poder fazer tudo isto.
 
Mas à noite, quando as costas se derramam nos lençóis e o corpo se faz horizontal, o primeiro expirar dos olhos sabe de imediato que de novo navego miragens. A minha raiva não quebra nenhuma jaula. O meu grito faz parte do vosso repertório, e o meu azedume, do cardápio. O ressentimento prende-me a uma economia amestrada. Como não há um «nós», não há um «vós». Sou também a minha própria abjecção, sou também o presságio do meu próprio fim. Nunca deixei completamente de vos ver.
 
Mas talvez seja essa a minha, a «nossa», maior arma.
 
Se não posso deixar de vos ser, a razão por que vos sou abjecta e abominável é que vocês também nunca deixaram de me ser a mim. O difícil não é ser demasiado parecida. E aí entra não a minha, mas a vossa imaginação: vocês re-conhecem-se em mim.
 
 
 
p. feijó
episódios de fantasia & violência
orfeu negro
2024
 



 

31 julho 2025

pierre louÿs / ao navio

  

XLVII
 
Belo navio que me trouxeste seguindo de perto as costas da Jónia,
entrego-te às vagas cintilantes. É, com pé ligeiro, que
salto para o areal.
 
Regressas à terra em que a virgem é a amiga das ninfas.
Não te esqueças de agradecer às conselheiras invisíveis
e entrega-lhes, como oferenda, este raminho
que eu própria colhi.
 
Foste pinheiro e, nas montanhas, teus ramos agudos,
teus esquilos e teus pássaros oscilavam ao ritmo
do vasto e inflamado vento sul.
 
Que agora o vento norte seja teu guia e, ao sabor
do mar paciente, te empurre devagar para o cais,
ó nave negra escoltada por golfinhos.
 
 
pierre louÿs
o sexo de ler de bilitis
elegias em mitilene
trad. maria gabriel llansol
relógio d´água
2010




30 julho 2025

maria alberta menéres / duas linhas de cor ao alto

  
 
Duas linhas de cor ao alto
e no meio um pedaço de alguém
A seta é escura      O pássaro
fugiu de noite
Eu encontrei-o quando ele não
estava perdido
e consolei-o de tristeza
quando ele já era triste
 
 
 
maria alberta menéres
os mosquitos de suburna (1967)
poesia completa
porto editora
2020
 



29 julho 2025

manuel de castro / a voz quase silêncio

  
vai-se perdendo a voz quase silêncio
um corpo agora oco     gasto     frio
a morte é uma cor que foi escolhida
para encontrar a direcção do vento
 
o homem que foi um feto      que foi um peixe
que foi o ar     que foi o sangue e o gesto
atravessa o mar com círculos nos braços
possuído no seu próprio destino
na descoberta dos focos submarinos
 
ao nível das estrelas mais brilhantes
e no entanto desde há muito extintas
pode encontrar-se o grande amor final
pesar-se no seu som e qualidade
 
garganta de alcatrão fundente
vai-se perdendo a voz, quase silêncio
 
                 do livro «A estrela rutilante» (1960)
 
 
 
manuel de castro
antologia da novíssima poesia português
m. alberta menéres, e. m. de melo e castro
moraes editora
1971
 


28 julho 2025

nuno guimarães / o quarto

  
[…]
O ar que, dentro dos pulmões, circula
altera-se. É o mesmo das imagens,
denso; as árvores, o ferro, o seu vapor
de enxofre: os dias mortos – de atenção
 
e gasto perceptivo. E onde pôr,
agora, a exacta dimensão? Na mão
cremada, no fogo imensurável?
Medir-se com imagens, breves
 
desvios da matéria? A régua jaz
sobre a madeira, a cama, outras mobílias
inexactas à vista – todo o real
oscila no seu leito. Ou haverá,
 
porém, outro rigor: visível, táctil,
um rasto de paisagem, de sentidos?
então, já póstumo e alheio,
o que descreve, neutro, ainda brilha.
 
 
 
nuno guimarães
rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001
 


27 julho 2025

bernardo soares / a renúncia é a libertação. não querer é poder.

  
A renúncia é a libertação. Não querer é poder.
 
 
Que me pode dar a China que a minha alma me não tenha já dado? E, se a minha alma mo não pode dar, como mo dará a China, se é com a minha alma que verei a China, se a vir? Poderei ir buscar riqueza ao Oriente, mas não riqueza de alma, porque a riqueza de minha alma sou eu, e eu estou onde estou, sem Oriente ou com ele.
 
 
Compreendo que viaje quem é incapaz de sentir. Por isso são tão pobres sempre como livros de experiência os livros de viagens, valendo somente pela imaginação de quem os escreve. E se quem os escreve tem imaginação, tanto nos pode encantar com a descrição minuciosa, fotográfica a estandartes, de paisagens que imaginou, como com a descrição, forçosamente menos minuciosa, das paisagens que supôs ver. Somos todos míopes, excepto para dentro. Só o sonho vê com (o) olhar.
 
 
No fundo, há na nossa experiência da terra duas coisas — o universal e o particular. Descrever o universal é descrever o que é comum a toda a alma humana e a toda a experiência humana — o céu vasto, com o dia e a noite que acontecem dele e nele; o correr dos rios — todos da mesma água sororal e fresca; os mares, montanhas tremulamente extensas, guardando a majestade da altura no segredo da profundeza; os campos, as estações, as casas, as caras, os gestos; o traje e os sorrisos; o amor e as guerras; os deuses, finitos e infinitos; a Noite sem forma, mãe da origem do mundo; o Fado, o monstro intelectual que é tudo... Descrevendo isto, ou qualquer coisa universal como isto, falo com a alma a linguagem primitiva e divina, o idioma adâmico que todos entendem. Mas que linguagem estilhaçada e babélica falaria eu quando descrevesse o Elevador de Santa Justa, a Catedral de Reims, os calções dos zuavos, a maneira como o português se pronuncia em Trás-os-Montes? Estas coisas são acidentes da superfície; podem sentir-se com o andar mas não com o sentir. O que no Elevador de Santa Justa é universal é a mecânica facilitando o mundo. O que na Catedral de Reims é verdade não é a Catedral nem o Reims, mas a majestade religiosa dos edifícios consagrados ao conhecimento da profundeza da alma humana. O que nos calções dos zuavos é eterno é a ficção colorida dos trajes, linguagem humana, criando uma simplicidade social que é em seu modo uma nova nudez. O que nas pronúncias locais é universal é o timbre caseiro das vozes de gente que vive espontânea, a diversidade dos seres juntos, a sucessão multicolor das maneiras, as diferenças dos povos, e a vasta variedade das nações.
 
 
Transeuntes eternos por nós mesmos, não há paisagem senão o que somos. Nada possuímos, porque nem a nós possuímos. Nada temos porque nada somos. Que mãos estenderei para que universo? O universo não é meu: sou eu.
 
s.d.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982




26 julho 2025

mário de sá-carneiro / pied-de-nez

  
 
Lá anda a minha Dor às cambalhotas
No salão de vermelho atapetado –
Meu cetim de ternura engordurado,
Rendas da minha ânsia todas rotas…
 
O Erro sempre a rir-me em destrambelho –
Falso mistério, mas que não se abrange…
De antigo armário que agoirento range,
Minh’ alma actual o esverdinhado espelho…
 
Chora em mim um palhaço às piruetas;
O meu castelo em Espanha, ei-lo vendido –
E, entretanto, foram de violetas,
 
Deram-me beijos sem os ter pedido…
Mas como sempre, ao fim – bandeiras pretas,
Tômbolas falsas, carrossel partido…
 
                          Paris – Novembro de 1915
 
 
 
mário de sá-carneiro
poemas
biblioteca editores independentes
assírio & alvim
2007





 

25 julho 2025

pedro tamen / o vinho

  
1.
 
Isso de que gostámos tanto; impulso
sem que o fim, que dizem tão preciso,
se notasse; um beijo pela troca; pedra
no chão ainda; um rasgão no mais duro,
onde os corpos se abatem; um padre.
 
Demos? não demos? Porque aparece agora
esta questão de medo? – Um rio, meu amor,
um rio tem o sul… – Demos? não demos?
 
Dissemos amanhã sem o mais leve riso.
Um nervo porque sim caiu de lá no raso
dos amores. Tocámos os sinos, nós tocámos
os sinos. Vejam as nuvens (barcos, ananases…),
vejam os seios livres no sereno das noites.
 
Um rio, meu amor, um rio tem o sul,
que é onde é cor de casa a planta dos pés…
 
 
 
pedro tamen
o sangue, a água e o vinho
tábua das matérias
poesia 1956/1991
círculo de leitores
1995




 

24 julho 2025

pedro oom / poema



 

 
Tua boca
é um dia estreito
cheio de moscas
 
De noite
tem a cor azul-verde
dum veneno
como o mar.
 
 
pedro oom
actuação escrita
& etc
1980




 

23 julho 2025

jorge de sousa braga / foz

  
Com água no bico
aves marinhas combatem
o incêndio do crepúsculo
 
 
 
 
Sete da manhã
O sol acorda
com olheiras enormes
 
 
 
jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991
 



22 julho 2025

josé miguel silva / salão de beleza

  
 
Dorida visão, esta pobre velha à saída
do salão de beleza. apesar dos muitos
e pesados passos que deixou na terra,
ainda encontra forças para arrastar a alma
até ao reverso de um espelho e desenhar,
de memória, o contorno dos lábios,
armar o cabelo para mais uma ilusão.
Admirável a tenacidade das ervas
que à enxurrada opõem a verdura
de um grito e resistem à lição de Marco
Aurélio, ao prolongado cerco da realidade.
Admiráveis porque vestem de gala
para mais uma dança, já solitária,
num baile de fantasmas, todo mental,
sem darem crédito à melancolia
nem ouvidos ao tirânico juízo da crua,
da falsa, da estúpida carreta fúnebre.
 
 
josé miguel silva
ulisses já não mora aqui
língua morta
2014




21 julho 2025

manuel de freitas / quando sós à boleia do crepúsculo

  
                [para o Fernando Guerreiro]

                         
Não mais a literatura, os seus
fúteis e imperiosos desígnios
– julgamos dizer, insistindo
numa ourivesaria do terror
e em gestos que sabem o quanto
chegam tarde. quando sós,
à boleia do crepúsculo, dizemos
coisas assim, mentimos com
os dentes todos que não temos.
 
E a mentira (a literatura)
é ainda a improvável derrota
de que não nos salvaremos
nunca. Tão igual à vida, portanto:
pouso o copo, recupero o fôlego,
fumo uma silepse. Sei que vou morrer.
 
E isso que – talvez – nos diz
é uma evidência que escurece
(tivemos por amigo o desconforto).
 
Quanto ao mais, vamos andando.
Casados ou sozinhos. Mortos.
 
 
 
manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002





20 julho 2025

leopoldo maría panero / um louco tocado pela maldição do céu

  
 
Um louco tocado pela maldição do céu
canta humilhado a uma esquina
as suas canções falam de anjos e coisas
que custam a vida ao olho humano
a vida apodrece aos seus pés como uma rosa
e já perto do túmulo, passa junto dele
uma Princesa.
 
 
leopoldo maría panero
a canção do croupier do mississípi e outros poemas
trad. jorge melícias
antígona
2019




19 julho 2025

víctor botas / tentativas de felicidade

  
 
As páginas de um livro de Baroja
à sombra de uma árvore
no verão.
Um poema de Octávio Paz, de Larkin, de Pessoa
ou do meu amigo d’Ors,
na cama de um comboio Madrid-Paris.
A jovem que percorre
a manhã e as ruas, com as ondas
retumbando nos seus olhos.
Os meus filhos na praia de Salinas, tão felizes,
brincando com a areia.
A rosa solitária que se ilumina,
húmida e temerária,
num jardim qualquer da tarde.
O curioso olhar dos velhos.
O brilho da Lua.
Todas estas coisas podem ser motivo de inusual felicidade.
Todas estas coisas podem ser a tua cruz e o teu calvário.
Todas estas coisas podem ser a armadilha em que cais de bruços.
Todas estas coisas podem inclusivamente não ser nada.
Nada de nada, irmão.
 
 
 
víctor botas
poesia espanhola de agora vol. I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997


18 julho 2025

joão miguel fernandes jorge / neste silêncio

  

 
Neste silêncio.
 
Vês esta ruína
tempo em que plantámos cinzentos agapantos
e amámos esta música de pinheiros
esta companhia das coisas?
 
Olha
quase colina
não respira
salta no pensamento a outra coisa,
 
Ensina-me.
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019



17 julho 2025

antónio maria lisboa / sinalização ossificada

  
 
A aranha-termómetro mergulhou no peso do meu nome
e deixou que ele falasse gota a gota:
 
«---- O sexo-limbo é um composto sobrevivente… etc., etc.»
Daí tirei conclusões que tudo me permitem:
 
___ A borracha-centopeia furada ao lado pela parede–
–telefone
a invenção dum novo dialecto para falar às formigas
a auto-fixação dum purificador nos buracos do vento
uma complicação perfeita para
objectivada em gesso morder o cio na boca… etc., etc.
 
 
 
antónio maria lisboa
ossóptico e outros poemas
poesia
assírio & alvim
1995
 


16 julho 2025

joaquim manuel magalhães / estava ali por esse dia

  
 
Estava ali por esse dia.
Diante da janela, além
nos bancos de trás. Sorriu,
o ar ergueu-se em labirintos,
a tarde pousou-lhe na tez.
A cultura tornou-se um conflito
de desalento. No fim da aula
fomos tomar café.
 
Diante dos outros tocava só
na sua chávena, no maço
dos cigarros, era o seu corpo
que eu queria atingir.
 
Não és real, eu não existo.
Raízes desertas do auriga.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
de súbito
uma luz com um toldo vermelho
editorial presença
1990




 

15 julho 2025

luís miguel nava / essas manhãs

  
 
Essas manhãs, as mais profundas e por que eu caminho para as ondas, manhãs como um poço, no perfil das águas ouço-as eclodindo o leite a avolumar-se pelas cristas, esta página redu-las a uma árdua anotação. A luz por dentro agora invadem-na outra sondas.
 
 
luís miguel nava
películas
poesia completa (1979-1994)
publicações dom quixote
2002





 

14 julho 2025

manuel antónio pina / azul

  
 
A luz, se formos luz. A sombra
se formos sombra: os olhos, sombra;
o coração, sombra; a própria luz
do pensamento, exílio e sombra.
 
Na infância (pois fomos
jovens um dia) atrás dos reposteiros
o invisível vigiava
o nosso sono desperto.
 
Agora que acordámos
do amarelo e do azul
e do branco e do azul
e do coração e do azul,
 
como regressaremos
a este mundo?
(O azul não é deste mundo,
nem os olhos são deste mundo).
 
À nossa porta batem
Inúteis lembranças: sombras.
Cegámos. Os amigos (sombras)
morreram de doenças de velhos,
 
o enfarte, a solidão, ou só
de morte, e nem
uma réstia de azul iluminou
o seu último olhar.
 
Se ao menos tivéssemos
envelhecido sem motivo, sem tempo,
desaparecido para dentro
lucidamente, como uma coisa desprendendo-se!
 
 
 
manuel antónio pina
moradas
todas as palavras, poesia reunida
assírio & alvim
2012





 

13 julho 2025

miguel torga / sagres

  
 
Vinha de longe o mar…
Vinha de longe, dos confins do medo…
Mas vinha azul e brando, a murmurar
Aos ouvidos da terra um cósmico segredo.
 
E a terra ouvia, de perfil agudo,
A confidencial revelação
Que iluminava tudo
Que fora bruma na imaginação.
 
E o resto do mundo que faltava
(Porque faltava mundo!).
E o agudo perfil mais se aguçava,
E o mar jurava cada vez mais fundo.
 
Sagres sagrou então a descoberta
Por descobrir:
As duas margens de certeza incerta
Teriam de se unir!
 
 
 
miguel torga
história trágico-marítima
poesia completa vol. II
dom quixote
2007




12 julho 2025

vitorino nemésio / dunas



 
Lá onde a garça deixa
O seu último ovo
E os juncos melodiosos vão ao vento,
Aí, nem uma queixa
Nem sentimento
Novo.
 
Lá onde areias, bicos, água, o extenso
Mar sozinho se der,
Lá, só um lenço
E um malmequer.
 
O lenço, humano, pequenino
E o malmequer selvagem:
Ele só, teimoso e fino,
Guarda segredo à aragem.
 
Flor breve,
Adeus das dunas,
O malmequer me quis bem.
Em seu corpo radiado o mar me escreve
De amores piratas, sobre escunas
Que já não salvam ninguém.
 
 
 
vitorino nemésio
nem toda a noite a vida
antologia poética
asa
2002



 

11 julho 2025

pedro homem de mello / emigrante

  
 
Partiram todos. Fico desterrado
Na mesma Pátria que me viu nascer.
E foi tão longo e breve o meu reinado!
E foi tão longo e breve o meu prazer!
 
Os pés finco na Terra. E, do outro lado,
Vagueia o mar onde há-de sempre haver
Caminhos o moiro destronado
Pode ouvir fontes ao anoitecer…
 
Partiram todos. Mas de flor ao peito,
(Flor de alguém que, ao deixar a minha rua
Se lembrasse de mim naquele instante?)
 
Beijo-lhe, então, as pétalas, no jeito
De quem recolha lágrimas da Lua,
Neste país, neste país distante…
 
 
 
pedro homem de mello
fandangueiro (1971)
poesias escolhidas
imprensa nacional-casa da moeda
1983




10 julho 2025

nuno vidal / cegarrega

  
 
Helena no riso nervoso
no recuo d’aflição
declaravas o amor escuso.
Amêndoa amarga
frivolidades da razão
a ver se pegava.
 
Éramos escolha fraquinha,
uma carga de desgostos
lumes bruxuleantes
arredios, teimosos
a errarmos assim
sem fim, sem mais além.
 
Gostei de ti no minimercado
à fruta
ao alçapão do leite
à cata dos rótulos.
Depois, abóbora.
A tarde caiu do nono
fogo, fingido nosso.
 
Partidos de meias verdades
num adeus de soslaio
e caras de caso.
Um final felizinho
azul, lua conforme.
 
Agora para castigo
dormes no cúmulo das escadas
que por agora vagou
e eu vou aviado
de calores e a pé
para o fim do mundo.
Um lindo par
mas nem uma jarra.
 
Podes escolher-me casacos, calções.
Este amor vai durar
sem nunca ser o teu homem
nem camisas engomadas, ou assim.
 
 
 
nuno vidal
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990






 

09 julho 2025

fernando luís sampaio / as vozes de marraquexe

  
 
Enquanto vai e não vem
A nossa sombra sob o palmar
Desfaz-se na poeira
Do atlas, o silêncio floresce
Na rosa do algodão poeirento,
O cantil gargareja à cintura.
 
A lâmina de aço brota
Das flâmulas tingidas de sangue,
Assim nos recebem à porta
Num gesto moçárabe e elegante,
A piscina murmura a leve frescura.
 
A tarde aquece as ramagens,
Um súbito vento açoita o açafrão
Que se desprende, a pedra infunde
O seu perfume raro e soturno sobre
As fachadas floridas ao anoitecer.
 
As mil vozes da cidade
Adormecem depois
Com a adaga do céu embainhada.
 
 
 
fernando luís sampaio
relâmpago
revista de poesia 29-30
out 2011 abril 2012




 

08 julho 2025

ruy belo / imóvel viagem

  
 
Coisas gloriosas se têm dito de ti
árvore mais verde de quantas há na vida
praia prometida no fundo dos mais belos
dos menos intencionais dos mais
inexplorados olhos
E só para ti senhor não haver
lugar na cidade nem mãos com que te ungir
Servissem-te ao menos meus dias de espaço
não tenho nada já para morrer
abrir-te os braços é tudo o que faço
 
Passaste numa nuvem pelos costumados gestos
qual onda que recua roubaste-mos ao dia
aí teve princípio toda a salvação
 
Havia-me colinas prometidas
e lagos redondos como a minha sede de cervo
Mas reduzi-me à tua irregular geografia
ó foz deste rio irrequieto
Não há nenhuma outra paisagem
mais do que a tua cruz simplificada
 
 
 
ruy belo
todos os poemas I
dedicatória
assírio & alvim
2004




07 julho 2025

alexandre o'neill / o enforcado

  
 
No gesto suspensivo de um sobreiro
o enforcado.
 
Badalo que ninguém ouve,
espantalho que ninguém vê,
suas botas recusam o chão que o rejeitou.
 
Dele sobra o cajado.
 
 
 
alexandre o´neill
a saca de orelhas (1979)
poesias completas
assírio & alvim
2000




 

06 julho 2025

álvaro de campos / há tanto tempo que não sou capaz

  
 
Há tanto tempo que não sou capaz
De escrever um poema extenso!
Há anos...
 
 
Perdi a virtude do desenvolvimento rítmico
Em que a ideia e a forma,
Numa unidade de corpo com alma,
Unanimemente se moviam...
Perdi tudo que me fazia consciente
De uma certeza qualquer no meu ser...
Hoje o que me resta?
O sol que está sem que eu o chamasse...
O dia que me não custou esforço...
Uma brisa, com a festa de uma brisa
Que me dão uma consciência do ar...
E o egoísmo doméstico de não querer mais nada
Mas, ah!, minha Ode Triunfal ,
O teu movimento rectilíneo!
Ah, minha Ode Marítima
 
A tua estrutura geral em estrofe antiestrofe e epodo!
E os meus planos, então, os meus planos —
Esses é que eram as grandes odes.
E aquela a última a suprema a impossível!
 
9-8-1934
 
 
 
álvaro de campos
livro de versos,
fernando pessoa
estampa
1993




05 julho 2025

miguel serras pereira / rebentação

  
 
Pela rebentação dos anos vai o meu amor
Vai no coração branco dos astros e ao alto dos mastros
Recordo-o de repente desconhecido a caminho
porque é ele o navio que me embarca e esqueci
 
Chama-se ilha que habita as encruzilhadas da brisa
Repassa de infinito o silêncio da amada
É o sono do tempo é uma planície de trigo
e no seu voo quem sou ondula entre dois passos
 
Regressa mais que a morte ao rosto de ninguém
como se houvesse mar partiríamos os dois
E nos surpreenderia a noite e eu poderia ao partir
tocar no teu rosto que nunca toquei
 
 
 
miguel serras pereira
á tona do vazio & reprise
cinquenta anos de poesia de miguel serras pereira 1969-2019
o mar a bordo do último navio (1998)
barricada de livros
2022




 

04 julho 2025

sandra costa / manual da vida breve

  
 
2.
 
Por detrás da casa onde cresci,
havia uma velha ameixoeira.
 
Quando os pássaros começam
a cantar entre os telhados,
as ameixoeiras têm flores
muito juntas, muito brancas,
que nunca esqueço.
 
Consta que certas árvores
dão frutos.
 
 
 
sandra costa
manual da vida breve
poesia reunida 2003-2021
officium lectionis edições
2021
 


03 julho 2025

isabel de sá / ela escreveu-me duas palavras…

  
 
Ela escreveu-me duas palavras nem sei bem porquê. Nunca compreendeu não haver em mim qualquer aderência ao mundo. Considerando que o desejo é uma coisa da alma, terei que realizá-lo sem a presença do corpo.
 
Existe a tentação d eme deixar levar pela corrente da vida. Talvez, no fim dela, eu possa escrever uma frase que contenha todo o sentido, sabedoria e impulso que procurei dar-lhe.
 
 
 
isabel de sá
semente em solo adverso (poesia reunida)
o nosso amor desfaz o trio
officium lectionis edições
2022
 


02 julho 2025

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

  
 
IX Madrigal
 
Tu já tinhas um nome, e eu não sei
se eras fonte ou brisa ou mar ou flor.
Nos meus versos chamar-te-ei amor.
 
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000




01 julho 2025

fernando namora / aforismo

  
Entre o arco e o alvo
há a conivência do gesto
e da paixão.
Cada um de nós
é ele mesmo
e o seu adversário.
Por isso o amor
jamais se purga
do que nele é pressentido
ressentimento.
 
 
 
fernando namora
nome para uma casa
livraria bertrand
1984
 



30 junho 2025

ana hatherly / 463 tisanas

  
 
212
 
Era uma vez um país de coveiros. Apertados uns contra os outros abriam as respectivas covas dos inimigos, correspondendo fielmente à sua mútua inimizade. As pás subiam e desciam brilhantes, aéreas, rítmicas, e a terra era atirada de uma cova para a outra, numa chuvada feericamente pesada. Nesse país todos estavam enlouquecidos pelo desejo de retribuir a retribuição. Tinham muito sangue português.
 
 
ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006
 



29 junho 2025

josé saramago / história antiga

  

 
Compromissos, não tinha, mas faltei;
Não prestei juramento, mas traí:
Sentir-se réu alguém, não depende
Do juízo dos outros, mas de si.
 
É fácil companhia a consciência
Se mansamente aceita e concilia,
Difícil é calá-la quando somos
Mais retos afinal do que se cria.
 
Um dia tornarei às dores do mundo,
À luta onde talvez já não me esperam,
Antes, seja diferente outra mulher,
Companheira, não de ferros que me ferram.
 
 
 
josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018


28 junho 2025

diego doncel / para um lugar de ninguém

  
 
Não é necessário fugir, perder-se em qualquer sítio
debaixo de uma identidade que não é a minha?
 
Ao longo desta madrugada estive a ver a passagem das nuvens
e tenho os olhos cheios da minha própria cinza.
No écran do céu, por cima desta cidade abstracta,
acossadas pelas sirenes e pelo tráfico das auto-estradas
vi-as lá no alto a serem pasto do frio,
porventura símbolos de domínios alheios, mensagens de uma íntima irrealidade.
 
Certas ocasiões tinham forma de fronteira como folhas que voam
de um mistério para não sabemos onde, noutras eram o rosto
mutável dos sonhos ou pareciam planetas desertos,
grandes rochedos cósmicos, objectos esquecidos
nos limites de uma tragédia que estava prestes a chegar.
 
Soube que as suas metamorfoses me falavam
de qual era o destino dos homens
e decidi renuncia à sua beleza.
Debaixo da sua fragilidade, debaixo da sua enganadora doçura,
debaixo da sua aparência humilde e quase introvertida
são um lugar de ninguém, como o Génesis.
E o seu cheiro a terra húmida, as gotas
com que às vezes caíam nos meus gerânios
apenas assinalavam o caminho do pouco que sou, do meu abandono.
 
Por isso pergunto se não é preciso fugir.
ser outra vez um grão de areia na poeira de outro tempo.
Embora saiba que há-de levar-me a este mesmo lugar, embora ali me esperem
estas mesmas alamedas brilhantes e sonâmbulas como uma furgonete de distribuição,
estes mesmos pombos pensativos criados com a combustão
dos motores e com flocos achocolatados de cereais,
embora me esperem este mesmo vento e estas mesmas folhas secas
que se arrastam ao pé de dias igualmente escuros e fugazes.
 
Ao longo desta madrugada estive a ver a passagem das nuvens
sem consolo, como um homem perdido,
enquanto elas reflectiam pouco a pouco nos vidros
da minha casa as coisas que perdi, o meu desamparo.
Nuvens que eram tempo e que passavam mudas, nuvens
que eram restos de mim e cuja passagem não deixava qualquer marca
sobre a geografia desta cidade, só um punhado de sombras,
quase nada, perplexidades e desvarios no meu coração.
 
Vi-as descer à minha pele e encheram-me o rosto
de silêncio, do silêncio que vem dos bairros adormecidos,
do silêncio que vem do outro lado das coisas,
de um insuportável desdém.
Vi-as arrastar a gordura dos seus ventres
pelo que esta cidade oferece:
sexo, laboratórios de condutas do prazer,
fábricas de tratamento de resíduos afectivos, cruzamentos ferroviários
onde convergem diferentes nostalgias,
áreas de oração para estimular o consumo
e a obesidade sentimental.
 
Quando senti a ferrugem dos seus nervos
nos nervos dos meus olhos, quando senti que elas
eram eu próprio, só um punhado de cinza,
o tele-predicante do novo dia gritava de um estúdio de televisão:
– Sai daqui, desaparece, que ninguém te conheça.
Deixa atrás de ti os passos da tua fuga.
Corre, os países hão-de passar um após outro,
os diferentes estados de consciência.
Apenas necessitas da mecânica dos teus pulmões
para receberes umas migalhas de misericórdia. Por seres homem.
Por veres que tudo se acelera. A velocidade cardíaca,
os pensamentos, a elevada temperatura da tua espinha dorsal.
Toda a tua miséria. Os rumos do teu exílio à margem,
sempre à margem das coisas.
 
 
 
diego doncel
em nenhum paraíso
trad. joaquim manuel magalhães
averno
2007




 

27 junho 2025

bertolt brecht / quem é o teu inimigo?

  
 
O que tem fome e te rouba
O último pedaço de pão chama-lo teu inimigo
Mas não saltas ao pescoço
Do teu ladrão que nunca teve fome.
 
 
 
bertolt brecht
poemas
selecção e trad. de arnaldo saraiva
presença
1976





26 junho 2025

antónio franco alexandre / syrinx, ficção pastoral

 
 
 
VII
 
Este vapor em trânsito no tejo
é como branca gôndola descendo
as colinas de um rio;
de rosto ao vento, sou como o gondoleiro
na laguna serena a procurar o mar.
fez.me a vida este corpo de rã seca
a debitar no charco um som de flauta;
já nada nem ninguém me traz a sede
quando a chuva não cessa de crescer
e a neve cobre as pontes mais recentes.
Um negro louco nos dirige as tropas,
distribuindo ervas doces de chipre
pelos atarefados passageiros; e assim
eu, que ao sol cantei em minhas horas
esperando que o mundo me não leve a mal
embarco, quase noite, na praia ocidental.
 
 
 
antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999
 



25 junho 2025

antónio dacosta / ó dia de sol e morte

 


 
3.
 
Ó dia de sol e morte
 
As flores eram venenosas
As moscas eram negras
O azul tenebroso
 
Tanta luz impiedosa
Sobre o luto da terra
 
 
 
antónio dacosta
saudade
a cal dos muros
assírio & alvim
1994



24 junho 2025

eduardo pitta / meia dúzia de linhas

 
 
 
Meia dúzia de linhas
para me dizeres que tudo mudou.
Agora é outro mar
outra terra, outra gente.
 
Eu continuo por aqui.
Somos como pássaros que o horizonte recusasse.
Perdemos o azul
e perdemo-nos.
 
 
 
eduardo pitta
sílaba a sílaba
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011
 



23 junho 2025

joão miguel fernandes jorge / palavras dos remadores

 
 
Como se não restasse
nem sequer a ilha
desci à fundura do lago. Não vi
o barco nem os remadores.
Na distância, um ténue amarelo de enxofre.
Mesmo esse brilho
extinguiu-se.
Por um instante de desejo e medo
ouvi as suas vozes nítidas sobre
as águas paradas.
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
invisíveis correntes
relógio d´água
2004




22 junho 2025

joão habitualmente / a roda dos anos

 
 
 
Primeiro, tudo são carícias
e há grandes varandas arvoradas na noite
de lua morta
onde nos instalamos como reis
 
Ribeiros e fontes
e todos os sítios abrem para a tua porta
 
 
Depois abre-se o tempo em abismo
e erra-nos as contas
 
As noites, compridas e iguais,
São agora de cornos e pontas
 
 
 
joão habitualmente
um dia tudo isto será meu
(uma antologia)
porto editora
2019




21 junho 2025

joão gesta / vende-se isco



 

 

Faz muito frio, como convém nestas crónicas.
Trémulo, desembacio o vidro da janela.
As crianças esfaqueiam-se alegremente no parque e fazem
Ronaldos na neve, enfeitando-lhes os olhos com varejeiras da
Petúlia, as melhores.
Apenas um pouco para a esquerda, vestidas de lilás, três caudas
de piano lêem Pessoa, estiraçadas na relva domingueira. Dois
telefones beijam-se na boca e discam números às escondidas
dos pais.
Lá mais ao longe, no meu firmamento adivinhado, o Douro
faz amor com a Ribeira, mas a pensar noutra coisa.
Nas margens, os pescadores mijam mais do que o habitual.
O TGV, impante, atravessa o rio sem barbatanas,
“Pena os sáveis não usarem collants”, pensei, arreliado.
 
 
 
joão gesta
uma falha nos dentes
porto editora
2019



 

20 junho 2025

carlos de oliveira / estátua

 
 
 
a Jane L.
 
 
Nos umbrais desta página recebo o poema que chegou de longe, duma memória escura, voluntária, atravessando lama, sono, olvido. Desvendo-lhe as feições, sílaba a sílaba. Quando grito por fim «eis uma cara nova», penso logo «afinal, eras tu». Reconheci apenas outro rosto esquecido na aridez do mundo, recolhi-o da sombra donde veio, e aqui lho deixo, adoradora de estátuas muito antigas, petrificado no papel.
 
 
 
carlos de oliveira
sobre o lado esquerdo
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1982



19 junho 2025

yvette k. centeno / a hora

 



 

 

Acordo
dia a dia mais cedo.
Tenho o relógio ao lado
procuro ver a hora
mas não vejo.
Fecho os olhos
verei daqui a bocado,
não há pressa
a hora não fugirá
está ali dentro presa
 
29 de Setembro, 2021
 
 
 
yvette k. centeno
existir
eufeme
2022
 



18 junho 2025

rui diniz / notas de viana e arredores

 
 
 
Li pouco, este Verão. O «Retrato em Movimento», Ruy
Belo, puros esboços de leitura entre as
longas e extenuantes deliberações poéticas em
papel que comprara em Tuy numa papelaria.
Escrevi, pois. E de regresso de Lisboa, viveria,
viveria, desintegraria em mim todas as
objecções cósmicas e regressaria de mãos
vazias a mim mesmo. Falta-me
uma qualidade: a paciência. Sou acima
de tudo um ser inquieto perante a
ideia da morte. Estou incapaz de criar.
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022




17 junho 2025

armando silva carvalho / sempre passei a vida entre o poema

 
 
 
SEMPRE passei a vida entre o poema
e a vida entre o amor
e a fábula.
E sempre que colhia
esses espaços de luz precipitada
eu via a voz de deus
alevantada
entre mim e o nada que sorria.
 
 
 
armando silva carvalho
canis dei (1995)
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007






 

16 junho 2025

daniel faria / explicação do alpendre

 


 
 
Porque em seu peito nunca tive aberta
A veia exacta para lhe ser sangue
 
 
 
daniel faria
poesia
últimas explicações
quasi
2003






 

15 junho 2025

adolfo luxúria canibal / o jardim


 

  
 
Há tanto tempo que não me ocupo do jardim
A última vez estava frondoso
A buganvília a tingir-se de vermelho Trepando
O perfume inebriante
E as festas ao cair da tarde
Parece que foram há séculos Noutra encarnação
Os meus amigos traziam as bebidas
E a jovialidade
O jardim enchia-se de gente De beijos
Pelos cantos Sôfregos de desejo
Inventávamos planos de rebelião Sonhos de transmutação
Passávamos horas a inventar Entre duas carícias
Surgiam ideias puras e inocentes
Como a nossa vontade de tudo abarcar
Era um frenesim constante
Faz-me pena agora olhar para ele
Para as suas sebes abandonadas De ramos
Retorcidos jaz tombada a grande epícea
E uma enorme cratera
Substitui os belos canteiros de outrora
Há tanto tempo que não me ocupo do jardim
 
 
 
adolfo luxúria canibal
no rasto dos duendes eléctricos
(poesia 1978-2018)
Epístolas da guerra (1999)
porto editora
2019





 

14 junho 2025

irene lisboa / ir, vir

 
 
 
Ir, vir…
Ir. Manhã, ar fresco, paisagem nova.
Vir. Tarde. hora dos poetas, dos que não can-
tam e passam pelas coisas apenas gozando, sur-
preendidos e ternos.
 
Se em cada lugar da terra eu perdesse a minha
humana essência, aquilo que me iguala ao que é
e ao que foi!
Nesta hora divina, nesta formosa tarde como ser?
Que me tentava?
Não sei.
Terra, luz, ar, amenidade indizível!
 
 
 
irene lisboa
um dia e outro dia…
poesia I
obras de irene lisboa  I
editorial presença
1991
 




13 junho 2025

antonia pozzi / fogueiras de santo antónio

 
 
 
Labaredas na noite do meu nome
sinto arderem à margem
de um mar escuro –
e ao longo dos portos acenderem-se piras
de coisas velhas,
de algas e barcos
naufragados.
 
E em mim nada que possa
ser queimado,
mas cada hora da minha vida
ainda – com o seu peso indestrutível
presente –
no coração extinto da noite
me segue.
 
 
 
antonia pozzi
morte de uma estação
trad. inês dias
averno
2019
 



12 junho 2025

rui caeiro / país natal

 
 
 
País de cegos, onde não falta nem a mansidão nem a quietude – nem a resignação. Onde os zarolhos que há querem ser reis – a fim de, segundo dizem, dar razão a um velho provérbio. Tudo, na realidade, em ordem a mandar e até, quando calha, bater no ceguinho. São, pois, menos simpáticos os zarolhos – além do mais, mexem-se muito. País algo cinzento, cumpridor dos provérbios e das normas. Para nós, grande multidão dos cegos, uma consolação porém: nunca os zarolhos, naturais detentores do poder, hão-de conhecer os supremos prazeres do país em que vivem.
 
Prazeres de gente pobre, prazeres simples, comezinhos – mas supremos:
  – o afago de uma mão, de uma voz, de um olhar…
  – o contacto da mão de um cego que nos ajuda a atravessar a rua…
 
 
 
rui caeiro
sobre a nossa morte bem muito obrigado
livro de afectos
maldoror
2019




11 junho 2025

maria teresa horta / domínio

 
 
Não deixo que as coisas
me dominem
nem que a vasta secura
me adormeça
 
nem que a vela
me apague
nos sentidos
a febre a que a boca não se entrega
 
Não deixo nem que deixes
tuas armas
que a piscina de meu ventre
se entorpeça
 
nem que a vara
se quebre na saudade
nadando contra aquilo
que me vença
 
 
 
maria teresa horta
poesia reunida
educação sentimental
dom quixote
2009




 

10 junho 2025

mário dionísio / caminho



 

 
Depois que os levaram
as casas ficaram sem ninguém.
e o barulho das portas batendo nos umbrais
e o escaqueirar dos vidros das janelas completamente abertas
confundiram-se com o sinistro uivar do vento
e o choro convulsivo das crianças sozinhas.
Depois que os levaram
os olhos saltaram das órbitas, cansados de chorar,
as searas morreram queimadas porque ninguém as ceifou,
as máquinas pararam,
o ferro das charruas cobriu-se de ferrugem.
 
As cidades ficaram desertas.
 
Depois que os levaram
a miséria passou em todas as almas
e vincou nos rostos uma profunda ruga de tristeza.
As mulheres prostituíram-se
porque eles vieram e não tiveram quem os impedisse
de mudar as oficinas em casas de deboche.
Depois que os levaram
tudo mudou.
Sem luz, perdemo-nos no meio do deserto.
Estendemos os braços magros e não achámos nada.
Olhámos e não vimos.
Gritámos e nem ouvimos sequer o nosso eco.
Depois que os levaram tudo estava perdido.
 
Mas uma estrela brilhou na insondável noite.
Um grito sublime chicoteou o silêncio.
Um sopro de esperança cimentou o solo.
Um elo indestrutível juntou as nossas dores.
 
E o grito fez-nos estremecer até à medula
a estrela encharcou de claridade um novíssimo caminho.
Os olhos voltaram às órbitas.
As searas renasceram.
As máquinas tornaram a girar.
O ferro das charruas sacudiu a ferrugem.
 
Agora já não andamos como doidos a gritar no meio das trevas
e as nossas botas não ficam enterradas na areia do deserto.
Agora vemos um caminho.
E este não tem nada de igual aos que nos tinham mostrado.
Este é o nosso, o novo, o único caminho por onde podemos avançar,
o único
por onde voltarão aqueles que nos levaram.
 
 
 
mário dionísio
poesia completa
poemas (1936-1938
imprensa nacional-casa da moeda
2016




 

09 junho 2025

eduarda chiote / a incerta sujeição da arte

 
 
 
Puderas ter criado
mares
em que o contacto da luz
não magoasse
quer a leveza do fogo
quer a respiração funda
da água
e de modo a que a imolação
do corpo de ambos
por igual repartisse a
natureza primordial
da arte
e nenhuma lacuna seria
imperfeita,
criança indesejada: pois tudo seria
só,
silêncio,
majestade.
 
 
 
eduarda chiote
a celebração do pó
asa
2001
 



08 junho 2025

egito gonçalves / deitado sob as nuvens

 
 
 
Deitado sob as nuvens
recebo nos olhos o esplendor
que sombreia os escombros. Olho-as
como símbolos, vêm do meio-dia
solar que afastei, de fímbria
branca, ventres
de água, túrgidos. Levantarão
ainda outros poemas quando já não existam
(não existem agora?) longe daqui
num outro cérebro, num olhar pousado
nas sólidas ruínas, nos destroços
de que o inverno se nutre – por isso
afinal vos amo, nuvens, onde estais…
 
 
 
egito gonçalves
o esperado fim do mundo já partiu
uma antologia
língua morta
2020
 



07 junho 2025

hans-ulrich treichel / seja o que for

 
 
Bebem cerveja
ou vinho ou seja o que for
que deles vai restar,
os bolinhos moles, a pele dura,
aperitivos e amendoins,
ânimo nobre, amor aos animais,
as calças vinco a vinco, prega a prega,
o pescoço à navalha, manchas de ferrugem
debaixo dos braços, ou
manchas de sangue, ou
seja o que for que deles vai restar,
ou nós ou vocês, ou todos ou nenhum,
o veado na bruma,
a campa da criança,
a pancadinha seca na almofada,
haverá sujidade e
fome, apesar da
fartura e de todo
o sabonete.
 
 
 
hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994




 

06 junho 2025

ernesto sampaio / somos dos rios

 
 
 
Somos dois rios
que se afastam em silêncio
e os anos acumulam
de um pó essencial
antes de desaparecer
para nunca mais
 
Já se perde
na corrente fortíssima
a fixidez dos teus olhos
 
Até ao fim dos anos
os teus olhos
fixarão
 
 
 
ernesto sampaio
dois rios
poesia
vs editor
2024




05 junho 2025

andrea cohen / entrada

 
 
 
Ficou à porta
muito tempo
 
como se quisesse
entrar.
 
como se setas
invisíveis alojadas
 
no interior lho
não permitissem.
 
 
 
andrea cohen
serenamente sobre as lanternas
trad. francisco josé craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2024




04 junho 2025

diana v. almeida / firenze

 



 

 
Assaltam-me os anjos
renascentistas súbitos
infantes zelosos lúcidos
pálidos andróginos esguios
fina cabeleira em cascata
asa em riste pena matizada
descem em esquadria
dos altares laterais
aureo
lado
s.
 
 
 
diana v. almeida
cosmos e casas
editora urutau
2021