11 abril 2025

lawrence ferlinghetti / a rua comprida

 
 
A rua comprida
que é a rua do mundo
passa em volta do mundo
cheia de toda a gente do mundo
para não falar de todas as vozes
de todas as pessoas
que jamais existiram
Amantes e choramingas
virgens e dorminhocos
vendedores chulos e homens-sanduíche
leiteiros e oradores
banqueiros sem tusa
donas de casa friáveis
com snobs ligaduras de nylon
desertos de publicitários
rebanhos de poldras do ensino secundário
hordas de universitários
todos a falar pelos cotovelos
e a dar as suas voltas
ou a dependurar-se em janelas
para ver o que está a dar
lá fora no mundo
onde tudo acontece
mais tarde ou mais cedo
se é que acontece
E a rua comprida
que é a mais comprida
do mundo inteiro
mas não é tão comprida
como parece
vai passando
por todas as cidades e todas as cenas
descendo cada viela
subindo todas as avenidas
através de todos os cruzamentos
através de semáforos vermelhos e verdes
as cidades à luz do sol
os continentes à chuva
as esfomeadas Hong Kongs
as Tuscaloosas áridas
as Oaklands da alma
as Dublins da imaginação
E a rua comprida
desenrola-se por toda a parte
como um enorme comboio de brincar
apitando e baforando pelo mundo
com passageiros ao rubro
e bebés e cestas de piquenique
e cães e gatos
e todos eles a quererem saber
quem será que lá vai
à frente na cabine
a conduzir o comboio
se é que vai
o comboio que corre à volta do mundo
como um mundo às voltas
todos a quererem saber
o que haverá à frente
se houver
e há pessoas que se debruçam
e espreitam para longe
a ver se conseguem
vislumbrar o maquinista
na sua cabine de um só olho
a ver se conseguem vê-lo
relancear-lhe o rosto
deitar-lhe o olho
no giro de uma curva
mas nunca conseguem
embora de vez em quando
pareçam quase
E a rua segue a gingar
o comboio segue a disparar
com as suas janelas a subir
as suas janelas as janelas
de todos os prédios
de todas as ruas do mundo
a disparar
através da luz do mundo
através da noite do mundo
com luzinhas nos cruzamentos
luzes perdidas piscando
hordas nos carnavais
circos dos bosques da noite
bordéis e parlamentos
fontes esquecidas
portas para sótãos e portas por sitiar
silhuetas nos lampiões
pálidos ídolos bailando
enquanto segue o mundo a gingar
Mas chegamos agora
à parte solitária da rua
a parte da rua
que dá a volta
à parte solitária do mundo
E este é o sítio
onde se muda de comboio
para o expresso de Brighton Beach
Este não é o sítio
onde se faça alguma coisa
Esta é a parte do mundo
onde não acontece nada
onde ninguém faz nada
acontecer
onde não há ninguém em lado nenhum
ninguém em parte alguma
a não ser tu
nem sequer um espelho
para fazer dois de ti
nem vivalma
a não ser a tua
se calhar
e mesmo essa
não existe
se calhar
ou não te pertence
se calhar
porque tu estás o que se chama
morto
chegaste à tua estação
 
 
É favor descer



lawrence ferlinghetti
mensagens orais
uma coney Island da mente
tradução margarida vale de gato
antígona
2024
 


10 abril 2025

wislawa szymborska / tudo

 
 
 
Tudo –
palavra atrevida e enfunada de soberba.
Deveria escrever-se entre aspas.
Aparenta nada omitir,
tudo reunir, abarcar, conter e ter.
Porém, não é mais
do que um farrapo do caos
 
 
 
wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006





09 abril 2025

primo levi / aos amigos

 
 
Caros amigos, aqui digo amigos
No sentido mais amplo da palavra:
Mulher, irmã, camaradas, parentes,
Pessoas vistas uma só vez,
Ou com quem se conviveu toda a vida:
Contanto que entre nós, pelo menos um momento,
Se tenha estendido um segmento,
Uma corda bem definida.
 
A vocês vos digo, companheiros de um caminho
Denso, não poupado a trabalhos,
E também a vocês, que perderam
A alma, o ânimo, a vontade de viver.
Ou a ninguém, ou alguém ou talvez só a um, ou a ti
Que me lês: lembra o tempo,
Antes da cera endurecida,
Em que cada um era como um sinete.
Entre nós cada um traz a marca
Do amigo encontrado no caminho;
Em cada um o rasto de cada um.
Para o bem e para o mal
Em sageza ou em folia
Cada um estampado em cada um.
 
Agora que o tempo urge apressado,
Que as tarefas terminaram,
A todos faço o humilde voto
De que o Outono seja longo e brando.
 
16 de Dezembro, 1985
 
 
 
primo levi
a uma hora incerta
trad. rui miguel ribeiro
edições do saguão
2024




 

08 abril 2025

paul celan / flor

 
 
A pedra.
A pedra no ar, que segui.
O teu olhar, tão cego como a pedra.
 
Nós fomos
mãos,
esvaziámos a treva, encontrámos
a palavra, que subia do Verão:
flor.
 
Flor – uma palavra de cegos.
Os teus olhos e os meus olhos:
vão em busca
de água.
 
Crescimento.
folha a folha acrescenta
as paredes do coração.
 
Uma palavra ainda, como esta, e os martelos
rodopiam ao ar livre.
 
 
 
paul celan
sete rosas mais tarde
antologia poética
trad. joão barrento e y. k. centeno
relógio d´água
2023




07 abril 2025

zbigniew herbert / a aldrava

 
 
 
Há quem cultive um jardim
na cabeça
e seus cabelos sejam veredas
para cidades soalheiras e brancas
 
é-lhes fácil escrever
fecham os olhos
e da testa já escorrem
cardumes de imagens
 
minha imaginação
é um pedaço de tábua
e meu único instrumento
é uma vara de pau
 
bato na tábua
e ela responde-me
sim-sim
não-não
 
outros têm o sino verde da árvore
o sino azul da água
eu tenho a aldrava
de jardins desprotegidos
 
bato na tábua
e ela sussurra
um poema árido de moralista
sim-sim
não-não
 
 
 
zbigniew herbert 
poesia quase toda
tradução de teresa fernandes swiatkiewicz
cavalo de ferro
2024





 

06 abril 2025

antonio moreno / geografia II

 
 
 
Debaixo do ardor do meio-dia o canto
que enevoa o pensamento
bulício das cigarras e do estio.
Onde estão as ideias que ateavam
o mundo e, junto dele, o vigor,
a antiga forma de olhar em redor?
Ali, onde antes tive certezas
como torres com que alcançar as coisas,
um espaço de figueiras amadurecidas,
um legado de terra se estende para mim.
Percorro com os olhos o seu silêncio
enquanto se afirma paralelo o meu:
quantas leituras houve,
as concórdias trazidas,
os rumos que tracei,
abandonados ao presente, ficam
inertes com as horas passageiras.
Ainda que seja na inércia do baldio,
na geografia da paisagem,
onde, certa, se encontre a unidade
de quanto sou face ao esquecimento.
 
 
 
antonio moreno
poesia espanhola de agora vol. II
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997




 

05 abril 2025

juan manuel villalba / extravio

 
 
 
Os lugares dourados que o futuro
prometeu são agora um grupo
de guerrilheiros mortos
na clareira de um bosque.
Dor mais invisível do que a dor.
Mas aceito a vida que me cabe
debaixo do peso gelado da noite,
a noite que em qualquer outro destino
– porventura menos incerto –
me pudera ter confortado.
Como quem vive com roupa emprestada;
como quem anda dentro
de um sobretudo que cheira a outra pessoa.
 
 
 
juan manuel villalba
poesia espanhola de agora vol. II
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997
 



04 abril 2025

federico garcia lorca / malaguenha

 
 
 
A morte
entra e sai
da taberna.
 
Passam cavalos negros
e gente sinistra
pelos fundos caminhos
da guitarra.
 
E há um cheiro a sal
e a sangue de fêmea
nos nardos febris
da beira-mar.
 
A morte
entra e sai,
e sai e entra
a morte
da taberna.
 
 
 
federico garcia lorca
poemas
trad. de eugénio de andrade
assírio & alvim
2013
 



03 abril 2025

konstandinos kaváfis / o sol da tarde

 
 
 
Este quarto, como o conheço bem.
Agora alugam-se quer este quer o do lado
para escritórios comerciais. A casa toda tornou-se
escritórios de intermediários, e de comerciantes, e Sociedades.
 
Ah este quarto, não é nada estranho.
 
Perto da porta por aqui estava o sofá,
e diante dele um tapete turco;
ao pé a prateleira com duas jarras amarelas.
À direita; não, em frente, um armário com espelho.
Ao meio a sua mesa de escrever;
e três grandes cadeiras de vime.
Ao lado da janela estava a cama
onde nos amámos tantas vezes.
 
Estarão ainda os coitados nalgum lugar.
 
Ao lado da janela estava a cama;
o sol da tarde chegava-lhe até metade.
 
… De tarde quatro horas, tínhamo-nos separado
por uma semana só… Ai de mim,
aquela semana tornou-se para sempre.
 
 
 
konstandinos kavafis
os poemas
II (1919-1932)
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
2005




02 abril 2025

giórgios seféris / o jardim e suas fontes sob a chuva

 
 
 
VI
 
                                            M.R.
 
O jardim e suas fontes sob a chuva,
hás-de vê-lo apenas da janela baixa
por trás do vidro fosco. O teu quarto
de luz só terá a chama da lareira
e às vezes ao luzir longínquo dos raios ver-se-ão
as rugas da tua fronte, velho amigo.
 
O jardim e suas fontes, que nas tuas mãos eram
ritmos de outra vida, para lá dos mármores
quebrados e das colunas trágicas
e um espaço entre os loureiros
junto à nova pedreira,
 
um vidro turvo ter-to-á cerceado de tuas horas;
não hás-de respirar; a terra e a seiva das árvores
saltarão dos teus sonhos para virem bater
a esta vidraça onde bate a chuva
do mundo lá fora.
 
 
De Mythistorema, 1935
 
 
 
giórgios seféris
a grécia de que falas…
antologia de poetas gregos modernos
trad. de manuel resende
língua morta
2021
 


01 abril 2025

kiki dimoulá / 1 de abril

 
 
 
Abril
– o famoso jardineiro –
pulou de manhã para o meu jardim maninho
e plantou uma maravilhosa rosa.
 
A primavera,
escondida atrás da rosa,
vê o meu espanto e ri-se,
e com a minha alegria sem limites
condecora o mago jardineiro.
 
 
 
kiki dimoulá
inimigo rumor 14
trad. manuel resende
livros cotovia
2003





 

31 março 2025

juan luis panero / a memória e a morte

 
 
 
     Só são tuas – na verdade – a memória e a morte,
a memória que apaga e desfigura
e a sombra da morta que aguarda.
Só lembranças fantasmais e o nada
repartem entre si tua herança sem destino.
Depois de contratos sórdidos, mentiras,
de gestos inoportunos e palavras
– irreais palavras ilusórias -,
só um testamento de cinza
que o vento move, espalha e desordena.
 
 
 
juan luis panero
rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução josé bento
assírio & alvim
2001





 

30 março 2025

e. m. de melo e castro / aí estás

 
 
 
Aí estás. Solitária entre o pó e os homens,
transposta mas presente, construída
de tão pequenos pensamentos e de tão
leves quase ilusões dos teus sentidos.
 
Aí estás e não nos tens lembranças,
nem te lembramos, nem te esquecemos,
nem a presença em que estás é nossa
e no entanto és tu.
 
Para sempre as nossas mãos são actos
do teu querer.
 
Para sempre os nossos ideais são destroços
de ti.
 
Aí estás.
Para sempre a nossa ignorância
és tu.
 
 
 
e. m. de melo e castro
ignorância da alma (1956)
antologia da novíssima poesia portuguesa
livraria moraes editora
1971
 



 

29 março 2025

maria alberta menéres / meditação

 
 
 
XXXII
 
Fechei os olhos, para ver melhor
tudo o que a luz me negava!
– E quando o sono chegou
antes da revelação,
senti a minha alma paralela
como as grades que um jardim
desenha, às vezes, no chão…
 
 
 
maria alberta menéres
intervalo 1952
poesia completa
porto editora
2020
 




28 março 2025

david mourão-ferreira / infinito pessoal

 
 
 
Como se de repente ao coração do Sol
as raízes da luz alguém as arrancasse…
Como se de repente as hélices do vento
arranhassem o ar, e o Mar estivesse perto…
Como se de repente o Mundo entontecesse…
 
Foi tudo de repente e tudo ao mesmo tempo:
escuridão, rumor, frescura, movimento.
 
Mas de entre as espirais confusas quem sabia
Se era de novo amor, se era só melodia?
 
 
 
david mourão-ferreira
lira de bolso
publicações dom quixote
1971




27 março 2025

mário de sá-carneiro / quasi

 
 
Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe d’asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
 
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador d’espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quasi vivido...
 
Quasi o amor, quasi o triunfo e a chama,
Quasi o princípio e o fim - quasi a expansão...
Mas na minh’alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
 
De tudo houve um começo ... e tudo errou...
– Ai a dor de ser - quasi, dor sem fim... –
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...
 
Momentos d’alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
 
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos d’herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
 
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
 
……………………………………………………..
……………………………………………………..
 
 
Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe d’ asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
 
Paris 1913 – maio 13
 
 
 
mário de sá-carneiro
poemas
biblioteca editores independentes
assírio & alvim
2007





26 março 2025

miguel torga / fronteira

 
 
De um lado terra, doutro lado terra;
De um lado gente, doutro lado gente;
Lados e filhos desta mesma serra,
O mesmo céu os olha e os consente.
 
O mesmo beijo aqui, o mesmo beijo além;
Uivos iguais de cão ou de alcateia.
E a mesma lua lírica que vem
Corar meadas de uma velha teia.
 
Mas uma força que não tem razão,
Que não tem olhos, que não tem sentido,
Passa e reparte o coração
Do mais pequeno tojo adormecido.
 
 
 
miguel torga
libertação
1944
poesia completa vol. i
dom quixote
2007




25 março 2025

josé de almada negreiros / a um poeta que morreu

 
 
 
Sou eu o que está atrasado
tu já te despediste
– a verdadeira despedida –
o silêncio já fala por ti
e eu ainda tenho para dizer.
 
Por mim o silêncio ainda não fala,
a vida ainda me dá a palavra
e cá estou eu para me embaraçar
e todos embaraçar no meu novelo.
 
Violenta deusa, ó Serenidade,
que tão tumultuosos nos trazes em buscar-te,
a tua exigência só à Morte aproveita!
 
Cegos por ti, ó Serenidade,
escalamos os dias, dia a dia,
e a memória não relê
ao que a morte pôs ponto-final!
 
Mas finalmente entendo por que o Sol
anda por vales e por montes
semeando cores parecidas,
acesas, luminosas, vivas,
por onde nós vamos passando!
Do princípio ao fim
os braços sempre erguidos
as mãos no fim dos braços
por cima das mãos o ar
e depois ponto-final.
 
 
 
josé de almada negreiros
poemas
assírio & alvim
2017




24 março 2025

cesário verde / contrariedades

  
 
Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
     Consecutivamente.
 
Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
     E os ângulos agudos.
 
Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
     E engoma para fora.
 
Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta na botica!
     Mal ganha para sopas...
 
O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa d’um jornal me rejeitar, há dias,
     Um folhetim de versos.
 
Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais d’uma redação, das que elogiam tudo,
     Me tem fechado a porta.
 
A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A imprensa
     Vale um desdém solene.
 
Com raras exceções merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e em paz pela calçada abaixo,
Soluça um sol-e-dó. Chuvisca. O populacho
     Diverte-se na lama.
 
Eu nunca dediquei poemas às fortunas,
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
     Me negam as colunas.
 
Receiam que o assinante ingênuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convêm, visto que os seus leitores
     Deliram por Zaccone.
 
Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;
E a mim, não há questão que mais me contrarie
     Do que escrever em prosa.
 
A adulação repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exatos,
     Os meus alexandrinos...
 
E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe humedece as casas,
     E fina-se ao desprezo!
 
Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
     D’uma opereta nova!
 
Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
     Impressas em volume?
 
Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a réclame, a intriga, o anúncio, a blague,
E esta poesia pede um editor que pague
     Todas as minhas obras
 
E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
     Que mundo! Coitadinha!
 



cesário verde
o livro de cesário verde e outros poemas
penguin clássicos
2024





23 março 2025

luís vaz de camões / aquela triste e leda madrugada



 
Aquela triste e leda madrugada,
cheia toda de mágoa e de piedade,
enquanto houver no mundo saudade
quero que seja sempre celebrada.
 
Ela só, quando amena e marchetada
saía, dando ao mundo claridade,
viu apartar-se d’üa outra vontade,
que nunca poderá ver-se apartada.
 
Ela só viu as lágrimas em fio,
de que d’uns e d’outros olhos derivadas
s’acrescentaram em grande e largo rio.
 
Ela viu as palavras magoadas
que puderam tornar o fogo frio,
e dar descanso às almas condenadas.
 
 
luís de camões
poesia lírica
ulisseia
1988
 




 

22 março 2025

camilo pessanha / porque o melhor, enfim




 

Porque o melhor, enfim,
É não ouvir nem ver...
Passarem sobre mim
E nada me doer!
 
– Sorrindo interiormente,
Co'as pálpebras cerradas,
Às águas da torrente
Já tão longe passadas. –
 
Rixas, tumultos, lutas,
Não me fazerem dano...
Alheio às vãs labutas,
Às estações do ano.
 
Passar o estio, o outono,
A poda, a cava, e a redra,
E eu dormindo um sono
Debaixo duma pedra.
 
Melhor até se o acaso
O leito me reserva
No prado extenso e raso
Apenas sob a erva
 
Que Abril copioso ensope...
E, esvelto, a intervalos
Fustigue-me o galope
De bandos de cavalos.
 
Ou no serrano mato,
A brigas tão propício,
Onde o viver ingrato
Dispõe ao sacrifício
 
Das vidas, mortes duras
Ruam pelas quebradas,
Com choques de armaduras
E tinidos de espadas...
 
Ou sob o piso, até,
Infame e vil da rua,
Onde a torva ralé
Irrompe, tumultua,
 
Se estorce, vocifera,
Selvagem nos conflitos,
Com ímpetos de fera
Nos olhos, saltos, gritos...
 
Roubos, assassinatos!
Horas jamais tranquilas,
Em brutos pugilatos
Fraturam-se as maxilas...
 
E eu sob a terra firme,
Compacta, recalcada,
Muito quietinho. A rir-me
De não me doer nada.
 
 
 
camilo pessanha
clepsydra
assírio & alvim
2003
 




 

21 março 2025

bertolt brecht / os tempos modernos




 
Os tempos modernos não começam de uma vez por todas.
Meu avô já vivia numa época nova,
Meu neto talvez ainda viva na antiga.
 
 
A carne nova come-se com velhos garfos.
 
 
Época nova não a fizeram os automóveis
Nem os tanques
Nem os aviões sobre os telhados
Nem os bombardeiros.
 
 
As novas antenas continuaram a difundir as velhas asneiras.
A sabedoria continuou a passar de boca em boca.
 
 
 
bertolt brecht
poemas
selecção e trad. de arnaldo saraiva
presença
1976







 

20 março 2025

anna akhmatova / no quadragésimo ano

 
 
 
1.
 
Quando sepultam uma época,
O salmo fúnebre não soa,
Às urtigas, aos cardos
Caberá enfeitá-la.
E apenas os coveiros vivazes
Trabalham. As coisas não esperam!
E um silêncio, Senhor, um silêncio tal
Que se ouve o tempo passar.
Mas depois ela assoma,
Como um cadáver no rio primaveril, –
O filho, todavia, não reconhecerá a mãe.
E o neto desviará os olhos com enfado.
E as cabeças inclinam-se mais,
Como um pêndulo a lua move-se.
 
E eis – sobre Paris tombada
Agora um silêncio destes.
 
5 de Agosto de 1940
 
 
anna akhmatova
poemas
trad. joaquim manuel magalhães e
vadim dmitriev
relógio d´água
2003
 




19 março 2025

antónio franco alexandre / esta esquisita prova me tentou

 
 
 
esta esquisita prova me tentou
de tecer um rumor em muros de água
ossos de terra calcinada
o jugo
 
culpado me castigo com engenho
e da voz desenhada o artifício
restos de pele antiga
no laço da armadilha
 
em silêncio me muro e me demoro
no cálculo de rotas inexactas
 
um duro arbítrio quer que me desprenda
dos cinco ou mais sentidos
vou ser livre na terra desnudada
vou dizer o que sei como quem mente.
 
 
 
antónio franco alexandre
a pequena face
assírio & alvim
1983
 



18 março 2025

luís miguel nava / contra os flashes

 
 
 
É terra doutro o corpo dum rapaz, o leite amarrotado nele o incêndio corre contra os flashes, mínimo relâmpago de terra o poço da alegria.
 
As paisagens os miúdos reúnem-nas à mão, a miniatura delas é o seu rosto. Voltam-se as paisagens como as páginas.
 
Um deles, força macia, ensanguentado e verde inquina-se na luz, uma fralda de incêndio há-de escorrer-lhe pelos lábios.
 
Eis o rosto, eis o poço, põem-se as imagens como toalhas, as pequenas pedras deflagrando.
 
Os miúdos a nudez destrói-os nesses lábios.
 
 
luís miguel nava
películas
poesia completa (1979-1994)
publicações dom quixote
2002
 




17 março 2025

isabel meyreles / o livro do tigre

 
 
 
                       II
 
Existe em Lisboa
uma máquina cruel
que permanentemente aguça
os dentes virtuais
na alma indecisa
dos pobres mortais.
Esta máquina excepcional
tritura
esmaga
sacode
revolve
molda
anula
e expulsa
o quê?
Capachos.
 
 
 
isabel meyreles
poesia
o livro do tigre 1976
tradução de isabel meyreles
quasi
2004




 

16 março 2025

inês lourenço / crónicas




 

 
Mulheres de canastra à cabeça, que num recôncavo
de esquina, não calcetada, onde uma nesga
de terra desmentia o urbanismo
invasor, mijavam de pé
com rara pontaria dissimulando
entre as grossas saias, as
pernas afastadas. Não usavam cuecas
tal como uma modelo da Vogue,
cujo profundo decote dorsal,
prolongado abaixo da cintura,
as abolia.
 
Coincidências
da baixa plebe
e da alta-costura.
 
 
 
inês lourenço
o segundo olhar
companhia das ilhas
2015
 



 

15 março 2025

filipa leal / os velhos são manhosos

 



 

 

Os velhos são manhosos.
 
Demoram-se a apanhar a fruta, sabem
que sabem esticar o braço antigo até aos primeiros figos,
que podem saber chegar ao fim da figueira.
Os velhos arrastam os pés em direcção à saída,
esgotam-se ao sol seguinte.
Cortam-se por vezes no vidro de emergência,
no buraco para o exterior.
Têm visões extraordinárias,
Receitas específicas para o barroco do poema
e do mel.
 
Escrevo para os velhos.
 
 
 
filipa leal
vem à quinta-feira
assírio & alvim
2016

 




14 março 2025

antónio gancho / começo logo de manhã

 
 
 
COMEÇO LOGO de manhã
a fazer o poema
e o sol nasce e abre o tema
não é meu lema escrever o sol
mas é meu lema escrever o poema
para o poema inspiro-me em ti
para o nascer do sol também previ.
o poema és tu
ao sol nu.
a natureza avança
são já horas vou acabar
escrever poesia cansa
e tu estás-me a pensar.
dança o dia quase pronto
escrever o poema cansa
e eu conto e cansa-me o que eu conto.
o poema és tu
o sol nasce
é manhã
nu.
 
 
 
antónio gancho
poemas digitais (jun. / jul. 89)
o ar da manhã
assírio & alvim
1995




13 março 2025

armando silva carvalho / soneto

 
 
 
Não há que descobrir ó Luiz Vaz
que vejo num retrato destroçado
se as tuas diatribes de rapaz
são parte acidental do mesmo Fado
 
que qualquer sabe do que é capaz
ao mentir tanto e tanto andar parado
nas paredes do tempo arrepiado
daquilo que se fez ou não se faz
 
quando chegado o tempo dos sem versos
de espelhos para espelhos se passeia
o percurso dos meus olhos perversos
 
que são estas palavras já de areia
distintas também elas dos diversos
sentidos que ninguém nada nomeia
 
 
 
armando silva carvalho
alexandre bissexto, 1983
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007
 



12 março 2025

antónio josé forte / o degolado

 
 
 
O degolado que dizia
que ficara sem cabeça
por causa da poesia
 
o degolado que gritava
por causa da mulher
que era quem mais amava
 
o degolado que gemia
por causa do silêncio
que à sua volta havia
 
o degolado que parecia
que quanto mais calava
mais ele enrouquecia
 
o degolado que sorria
com a língua de fora
e uma lágrima de alegria
 
o degolado que ainda olhava
mas que já não via
a morte que o matava
 
o degolado de olhos tortos
e revirados para o céu
como os de todos os mortos
 
 
 
antónio josé forte
uma faca nos dentes
parceria a. m . pereira
2003




11 março 2025

gonçalo m. tavares / o sol

 
 
 
Na infância o sol era um companheiro mais alto,
Que aparecera primeiro no campo de futebol, e aí, parado,
Guardava as costas da baliza e a erva que se tornava quente.
Como se o sol fosse de facto um instrumento de cozinha,
Aperfeiçoado, antigo, mas instrumento, matéria
Que os meninos agarravam com os dedos e cuja
Intensidade podiam por vontade própria regular.
Por exemplo: quando a luz era excessiva
Os dedos protegiam os olhos. Outras vezes
O corpo parecia a conclusão
Natural, instintiva, do calor que vinha de cima:
Recebíamos o sol como o ponto final recebe
Uma frase. Fazia mais sol quendo eu tinha seis anos
(quem o fazia?) ou com o tempo e o tédio
Me fui distraindo?
 
 
 
gonçalo m. tavares
1 poesia
relógio d´água
2004




 

10 março 2025

fernando alves dos santos / lenda das donzelas presas

  
 
Na memória das pequenas povoações
reencontra-se o cântico
que incendeia o restolho
onde se acoitam as bruxas.
Ouvem-no as pessoas imóveis
junto ao eremitério
construído sobre os cadáveres dos soldados
que ali morreram na resignação
às ordens dos generais.
 
As donzelas cantam o deserto que amamentam
nos seus cabelos compridos.
As donzelas cantam nas janelas das prisões.
 
 
 
 
fernando alves dos santos
diário flagrante [poesia]
edição perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
2005





09 março 2025

fernando assis pacheco / sem que soubesses

 
 
 
Falei de ti com as palavras mais limpas,
viajei, sem que soubesses, no teu interior.
Fiz-me degrau para pisares, mesa para comeres,
tropeçavas em mim e eu era uma sombra
ali posta para não reparares em mim.
 
Andei pelas praças anunciando o teu nome,
chamei-te barco, flor, incêndio, madrugada.
Em tudo o mais usei da parcimónia
a que me forçava aquele ardor exclusivo.
 
Hoje os versos são para entenderes.
Reparto contigo um óleo inesgotável
que trouxe escondido aceso na minha lâmpada
brilhando sem que soubesses, por tudo o que fazias.
 
 
 
fernando assis pacheco
cuidar dos vivos (1963)
a musa irregular
tinta-da-china
2019
 



08 março 2025

fernando lemos / fiz uma rosa contemporânea

 
 
Fiz uma rosa contemporânea
com um compasso
 
não cheira
nem sonho com ela
 
Fiz um sonho com duas linhas
mas não acordo
nem sinto os olhos
 
fiz um quadrado
com a rosa dentro
nas duas linhas
 
e estava escrito o meu desalento
 
 
 
fernando lemos
poesia
porto editora
2019




07 março 2025

izidro alves / uma vez por ano

 




 

 
Uma vez por ano no mesmo mês
Regressamos à casa onde nascemos:
Limpamos o pó dos retratos
Tiramos as aranhas dos candeeiros
Abrimos as janelas mais pequenas
Espirramos e tossimos como antigamente.
 
Olhamos um para o outro
E nos olhos de cada um
Vemos os olhos de todos os mortos.
Sem nada para dizermos
Falamos com as mãos sujas
Da nespereira a bater na janela.
Como da última vez
Deixamos a luz acesa.
 
 
 
izidro alves
cédula do mundo
labirinto
2025



06 março 2025

albano martins / quatro haikais

 
 
 
1.
Se houve um paraíso, foi
Depois, quando a maçã
Foi mordida.
 
2.
A cabeça da lua
entre as coxas.
O sexo do luar.
 
3.
Solitários, solidários
ambos – Hermes
e Afrodite.
 
4.
A um passo
da luz fulguram,
grávidas, as espadas.
 
 
 
albano martins
por ti eu daria
entre a cicuta e o mosto (1992)
glaciar
2021
 


05 março 2025

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

 
 
 
VIII
 
Foi para ti que criei as rosas.
Foi para ti que lhes dei perfume.
Para ti rasguei ribeiros
e dei às romãs a cor do lume.
 
Foi para ti que pus no céu a lua
e o verde mais verde nos pinhais.
Foi para ti que deitei no chão
um corpo aberto como os animais.
 
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000




 

04 março 2025

antónio osório / amo os teus defeitos

 
 
 
Amo os teus defeitos, e tantos
eram, as tuas faltas para comigo
e as minhas; essa ênfase
de rechaçar por timidez; solidão
de fazer trepadeiras, agasalhos
para velhos, depois para netos;
indulgência de plantar e ver
o crescimento da oliveira do paraíso,
carregada de flores persistentemente
caducas; essa autoridade, irremediável
desafio; e a astúcia
de termos ambos quase a mesma cara.
 
 
 
antónio osório
a ignorância da morte
os cavalos de tróia
editorial presença
1982
 



03 março 2025

fátima maldonado / crepúsculo

 
 
 
II
 
Depois de te vazares
até secar na pele o recôndito veio
os opalinos rios desaguando baixo
enquanto te vigio à espera se abrandeces
surgem-me casas brancas
pilastras sucessivas
na funda quadratura de pátios sequestrados
mosaicos pontuando as salas de referências.
Nas báquicas volutas
as vides
policromam o chão de amores mais que suspeitos
engalanecem sobre os ângulos do repasto.
Enquanto recostado sopesas minha pele
e buscas na textura
o teu filão cativo
de forma terminante na rede alveolar,
como na mina o escravo avidamente passa
o dedo sobre o aurífero seio,
e firme o teu perfil moreno destacavas
no ocre da parede
sentindo o fresco chão inscrever-se na túnica,
eu te seguia o rasto
adivinhando na boca contraída
o rictus do desejo.
Gemias ao roçar-te a face contra os pés,
o estribo os magoou na última campanha
(a cativa mantém do saque
a cicatriz na nuca
e disfarça-a pousando por sobre o violeta
da zona contundida
o pente de coral que de manhã lhe deste)
A língua essa ficou-me oferta numa taça.
Numa noite de Maio
beberas talvez em demasia
de um torvo vinho acre
ao resguardo da brisa diluente
numa nave fenícia,
à volta celebravam com gritos a vitória,
apenas dois lugares no áspero parlamento,
lambia-te a barriga e comentava
o mundo circundante
um convidado atónito
soltou um vivo repto:
«Cave amantem».
Viraste a cabeça e vi por dentro a raiva
embravecer-te a boca.
Pediste na toalha a lâmina de prata.
No cabo cinzelado Artemísia sulcava
um mar de contusão.
Mandaste sossegar a trémula cabeça,
um golpe seccionou a língua virulenta.
Enquanto não estancou o sangue nessa noite
deitada no sombrio reduto das escravas
sentindo sobre o corte
pesar fresca mistura,
(uma velha tentara amordaçar a veia)
não pensava senão na próxima vingança.
Mas ao amanhecer
quiseste transportar-me
ao linho dos lençóis,
na cama desenhavam grinaldas tumulíneas
e a chama do azeite
enchia o ambiente.
Adormeci.
O teu olhar fitava dum Sileno
a face na parede
e uma mulher alada
dissecava à escuta
as fibras do mistério.
No tumulto de um sono
Em sobressalto
sentia a tua mão,
(o sangue junto às unhas grudou um lodo denso)
serena percorrer desimpedindo as vias,
projectos de cravar
entre os ossos do externo
adagas caldeadas em forjas escandecidas.
 
E enquanto assim medito
um pombo cinamomo
num nicho segredeia
dando à ninfa saprófita ali em vigilância
relatos em detalhe das ruas destruídas
notícia da chacina
que impende sobre os prédios
os contos do abate às roxas cercaduras
o saque reiterado nos frisos de uvas pretas
a desfolha das rosas
os caules de narcisos
a esmagada flor solta do azulejo
as novas da matança que grassa na cidade.
 
 
 
fátima maldonado
os presságios
os alicerces
editorial presença
1983



02 março 2025

antónio ramos rosa / amamos num vislumbre

 
 
 
Amamos num vislumbre terra suspensa
chamamos limiar a esta chama
e uma ideia de fogo branco habita o pulso
um vaso negro irradia sobre o branco
 
Amamos o limiar o pólen dos mortos
na sombra desta palma deste odor de chama
chamamos alta a esta chama nua
E é uma mulher direita imóvel nua
 
Amamos esta terra esta sombra da mão
amamos esta escrita de água e dança obscura
caminhamos contra o hálito da noite
 
 
 
antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985




01 março 2025

paul strand / elegia pelo meu pai

 
 
2 -  RESPOSTAS
 
 
Porque viajaste?
Porque a casa estava fria.
Porque viajaste?
Porque é o que sempre fiz entre o crepúsculo e a aurora.
O que vestiste?
Vesti um fato azul, uma camisa branca, uma gravata amarela e
                                                                         meias amarelas.
O que vestiste?
Não me vesti. Um lenço de dor manteve-me quente.
Com quem dormiste?
Dormi com uma mulher diferente em cada noite.
Com quem dormiste?
Dormi sozinho. Dormi sempre sozinho.
Porque me mentes?
Sempre pensei que te dizia a verdade.
Porque me mentes?
Porque a verdade mente como nenhuma outra e eu amo a verdade.
Porque partes?
Porque nada significa já muito para mim.
Porque partes?
Não sei. Nunca soube.
Quanto tempo deverei esperar por ti?
Não esperes por mim. Estou cansado e quero descansar.
Estás cansado e queres descansar?
Sim, estou cansado e quero descansar.
 
 
 
paul strand
apeadeiro
revista de atitudes literárias
nr. 2 primavera 2002
tradução José luís peixoto
edições quasi
2002
 



28 fevereiro 2025

primo levi / aportar

 



 

 

Feliz o homem que chega a bom porto,
Que deixa atrás de si mares e tempestades,
Cujos sonhos estão mortos ou jamais nascidos;
E que se senta e bebe na taberna de Bremen,
Junto da lareira com uma paz serena.
Feliz o homem que é como uma chama extinta,
Feliz o homem que é como a areia do estuário,
que depôs o seu fardo e limpou a testa
e descansa no bordo do caminho.
Não teme, nem deseja, nem espera,
mas olha fixamente o sol que se põe.

 
                                        10 de Setembro, 1964
 
 
 
primo levi
a uma hora incerta
trad. rui miguel ribeiro
edições do saguão
2024
 

 



27 fevereiro 2025

zbigniew herbert / os peixes

 
 
 
Impossível imaginar o sono dos peixes. nem mesmo no canto mais escuro do lago, entre os juncos, o seu descanso é uma vigília: a mesma posição dura uma eternidade; é absolutamente impossível dizer deles: pousaram a cabeça.
 
De igual modo, as suas lágrimas são como um grito no vazio – incalculáveis.
 
Os peixes não são capazes de gesticular o seu desespero. Isso justifica a faca romba que salta pelo dorso arrancando lantejoulas de escamas.
 
 
 
zbigniew herbert 
poesia quase toda
tradução de teresa fernandes swiatkiewicz
cavalo de ferro
2024




 

26 fevereiro 2025

mar becker / caderno dos fins



 

 
outros amaram em mim a mulher
 
a ti peço para amar
a sombra
 
ama-me os fios de cabelo que caem
o farelo à ponta dos dedos
a poeira das unhas recém-lixadas
 
ama na minha boca a palavra que nunca é dita
 
ama os meus livros aquele que achei num sebo
e que decidi comprar só pela dedicatória
datada de junho de 1732
 
ver a caligrafia de um morto desejando boa leitura
a outro morto
duas mãos se encontrando assim, cobertas
de esquecimento e pó
 
 
 
mar becker
wladimir vaz (fotografia)
a mulher submersa
urutau
2021





 

25 fevereiro 2025

alejandra pizarnik / gestos para um objecto

 
 
               
Em tempo adormecido, um tempo como uma luva sobre um tambor.
 
Os três que em mim contendem ficámos no móvel ponto fixo e não somos nem um é nem um estou.
 
Antigamente os meus olhos procuraram refúgio nas coisas humilhadas, desamparadas, mas em amizade com os meus olhos eu vi, vi e não aprovei.
 
 
 
alejandra pizarnick
antologia poética
el infierno musical (1971)
tradução fernando pinto do amaral
tinta da china
2020


 

24 fevereiro 2025

amalia bautista / um tempo feliz

 


 
 
Era um tempo feliz. Naquele tempo
sustentavam-me as pernas o andaime
que sustentava e encerrava o mundo.
Não houve ninguém mais simples naquele tempo,
ninguém mais inocente do que eu mesma.
Não houve nenhum sinal que me falasse
da dor, da ansiedade e do desastre.
 
 
 
amalia bautista
estou ausente
tradução de inês dias
averno
2013




23 fevereiro 2025

eunice de souza / temporários

 
 
 
Casas temporárias para os vivos
Temporária a tenda para o casamento
Temporário o transporte
para a última viagem
Temporário o chão
que pisamos.
 
 
 
eunice de souza
coração de abacate
trad. francisco josé craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2018