13 dezembro 2025

júlio pomar / TRATAdoDITOeFEITO

  
XLI
 
 
     Não acredito que haja quem não tenha avistado uma vez que
                                                                                         fosse o avesso
do mundo.
Mas com receio
de se enganar ou de vir a ser
perseguido, quem aí esteve não sabe como
dizê-lo ou o que contar sem perigo.
E se acaso algo viram, atentaram depois
no que lhes foi possível discernir
do avesso do mundo?
 
Nas escolas são as crianças proibidas de
falar nisso umas às outras
e as professoras explicam-lhes que é para bem delas, para lhes
guardar a candura, é falso, é para
não se meterem em trabalhos e não correrem o risco
de pôr lado a lado afirmações opostas
tão verdadeiras umas como outras
porque ajustá-las entre si nunca deu resultado nem trouxe a paz
às famílias. Como explicar isto a quem vive na crença de que é preciso
escolher, trinchar, riscar do quadro o que está mesmo a ver que não é
preto nem branco, cru ou cozido, duro ou mole?
Assim as constituições regem os países, se escrevem as leis e
regulamentam os jogos,
se anunciam os modelos de vida, os exemplos
morais os feitos
heroicos os bravos
suicidas.
 
 
júlio pomar
poema TRATAdoDITOeFEITO
dom quixote
2004
 




12 dezembro 2025

joão pedro grabato dias / estou agora só no fim da avenida

  
 
Estou agora só no fim da avenida. Minha casa é aqui.
Sacudo a ligeira vertigem que me acode sempre que chego
Como um intruso que teme acordar a prata dos espelhos
e receia vê-la ondular, enrugar, nas pálpebras do fogo
paro, num fugaz pestanejo em que acendo um cigarro
e passo a ombreira para o visgo da solidão controlada.
 
Que fiz da minha raiva? Esgotei-a? onde estão, quais os culpados?
Onde esqueci (em que desvão, em que lavabo?) o alforge de enganos?
Todos vamos na culpa, como diria o Ioannes. Todos.
O nosso minúsculo e secreto maquinismo de masoquismo
ritmava o ofegar do sádico menor em cada esquina de tédio
todos álvaro de campos com imenso dó de si próprio
todos ceguinhos do acordéon do fado automático
uns mais e outros um pouco menos gozando a música do látego
cada um adiando, cada qual consentindo, todos indo na culpa…
 
 
 
joão pedro grabato dias
odes didácticas
uma meditação, 21 laurentinas e dois fabulários falhados, 1971
tinta da china
2021
 


11 dezembro 2025

luís miguel nava / o poema

  
 
É um arbusto, armados
ainda nele os últimos relâmpagos,
o poema.
 
A pedra cai no ventre
da água – a fruta poderosa, as páginas
onde a brancura se estilhaça, o lenço
como um relâmpago.
 
Os cães brilham ao alto
– são eles o arbusto
de imagens onde a força miúda
como um leão íris
a atravessa o poema encarcerado em sua própria imagem.
 
A pedra, digo, cai no ventre
da água como um punho
 
– agora está no fundo desta imagem.
 
 
 
luís miguel nava
películas
poesia completa (1979-1994)
publicações dom quixote
2002




 

10 dezembro 2025

eugénio de andrade / a mão no ombro

  
 
 
Como se tu alumiasses
ainda
cada degrau, cada palavra,
e a noite não fosse
a única porta estranhamente
branca,
eu subia sem conhecer o ombro
onde apoiava a mão.

 
 
eugénio de andrade
rente ao dizer
poesia
fundação eugénio de andrade
2000





 

09 dezembro 2025

joão miguel fernandes jorge / eugénio de andrade ao descer belmonte

  
 
Os olhos, verde claro, envolviam a água e a vila.
Erguiam a linha da manhã,
levantam a âncora
na madrugada marítima e as velas
não deixam sombra na baía da serra – os olhos
a um tempo insolentes, divertidos e duros
arco num verde de carícia, ao longo
do mastro; no ar translúcido de quem desce de
Belmonte para o plaino de Caria. Os olhos
sobrepunham a um rumor de fundo – os remadores
ergueram a direitura do tronco, viram o verde
incessante, murmúrio contido de surpresa, grito
de saudação – quebrar da vaga.
À partida da serra, à entrada da barra
prendia-se um coração exposto ao vento
movia rostos vazios
 
por detrás ficara a cidade. Nas ruas e praças
o rapazio fazia-se à vela, navegava por entre o
cume dos montes: um grupo de homens atravessa na
Cordoaria, o que restou do jardim – onde ficou
Belmonte? – com uma expressão de
destroço fala grosseiramente. Era
por demais manhã, os remadores estendiam o braço e
retesavam o remo
apontaram o barco na direcção do mar.
 
Nas casas, as mulheres passam o vinho pela vela,
                                       pano de serapilheira.
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
invisíveis correntes
relógio d´água
2004




08 dezembro 2025

joaquim manuel magalhães / prosa


 

UM
 
Devemos ir pelos versos muitas vezes, fixá-los fora dos modos usuais aos actores cobertos de adereços, representar nas palavras as fugidias imagens, os vazios dos sons adormecem nas fogueiras, a mudante linguagem vem como as aranhas pelos revoltos mercados dos homens, tudo seco, a seiva entre a areia e das flores. Antes de os destinos estarem nomeados, o corpo escuro e o claro dos astros dançam a tua mão, muda, muda, ludibria a negra encantação, as estrelas vês como flutuam no pão diário, no sal esmagado das comidas, no dinheiro com que compras coisas? Estende-te com elas sobre a cama, pousa num peito a brilhante boca, estão à espera que digas o destino até te despedires. Transformados na terra leva-nos o ar pelas maiores derivas para tornarmos esquecidos a um novo corpo de suplícios e não sabemos onde. As fogueiras acesas no largo de teatro devem aquecer no escuro o teu corpo vigilante. As sombras das árvores dançam-te à roda e nas mãos estendidas passa o fumo. O teu corpo está sozinho, desconhece quem o imagina de roupas grossas, a barba por fazer avermelhada por um fogo. Podiam defender-te o peito do frio de janeiro, acertar-te o cinto com os braços, viria ver-te um gato pelo muro, as névoas da boca subiriam com o fumo no areão molhado do orvalhos. Tens esta casa para repousar, jogar, deixar a roupa suja. Com as palavras destes versos atraio os planetas ao teu curso, os corpos benfazejos que não vês e vais sentindo enquanto representas. Esta qualidade que tenta aproximar-se dos desígnios arrasta sobre o corpo rios, lagos, aves de verão, vegetações. Vêm os mortos sobre o mar que são os vivos do futuro escutar-te. Não deixes que parta o fogo ou se avizinhe. Transformam este texto numa víbora para te morder.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
antónio palolo
na regra do jogo
1978
 



 

07 dezembro 2025

ruy belo / na noite de madrid

  
 
                                     para o João Miguel Fernandes Jorge

 
 
Na noite de Madrid eu vi um homem morto
Jazia ali como uma afronta para os vivos
que voltavam dos bares com música nos olhos
com estrelas na testa e festa nos ouvidos
e passavam de táxi a boa velocidade
Há quanto tempo o homem jazeria ali
à superfície escura do asfalto
já meio devolvido à terra nossa mãe?
Não o cobria o manto dos heróis
nenhum clarim tocara em sua honra
Como o confortaria a santa madre igreja?
Tombara apenas imolado ao dia-a-dia
Pagara com a vida a paz da consciência
de toda uma cidade que dormia
E ele crescia alastrava na estrada
e assumia inesperadas proporções
quando há bem pouco ainda se reduzia ao dia
Quem seria? Quem fora?
Que jornal conteria a imensidão do nome
de quem como um insulto ali jazia?
Que pensamentos próximos tivera?
E o que levaria ele nos bolsos?
Donde viria? Sorriria? Onde ia?
Fora criança? Sonharia ser feliz?
Mudaria de vida na manhã seguinte?
Brincara alguma vez naquela mesma rua?
Fora criança ali onde profundamente o vi?
Teria soluções para problemas que tivesse?
Seria porventura um bom chefe de família?
Disporia da consideração da vizinhança?
Era bom funcionário? Homem de futuro?
Mas já naquele momento o rosto lhe cobriam
pois não conseguiria ver nem as estrelas
nem ao menos a luz dos citadinos candeeiros
Havia curiosos e polícia havia uma ambulância inútil
para quem como cama só teria a pedra fria
«Aonde vai?» - perguntou-me o homem do táxi
«- Eu tenho cinco mil pesetas - respondi-lhe
Leve-me pelas ruas da cidade até nascer o sol
talvez ele possa dizer-me alguma coisa
daquelas muitas coisas que gostava de saber
(o sol é hoje uma das minhas poucas soluções)
Passe longe do corpo por favor»
Lembrei-me de leituras soterradas
de súbito subiram-me à memória cenas esquecidas
Samaritano eu? Mais um levita
que calmo procurava a promessa do dia
Inquietação ou pena? Sombra de metafísica?
Política? Moral? Lição? Comportamento?
Queria alguma coisa? Não sabia
Posso-vos garantir que não sabia
Só sabia que olhava e nenhum mar havia
 
 
                            Póvoa de Varzim, à vista do mar, 10 horas da manhã
                                                                do dia 29 de Dezembro de 1971

 
 
ruy belo
dispersos
todos os poemas III
assírio & alvim
2004




06 dezembro 2025

álvaro de campos / sim, está tudo certo.

  
 
Sim, está tudo certo.
Está tudo perfeitamente certo.
O pior é que está tudo errado.
Bem sei que esta casa é pintada de cinzento
Bem sei qual é o número desta casa —
Não sei, mas poderei saber, como está avaliada
Nessas oficinas de impostos que existem para isto —
Bem sei, bem sei...
Mas o pior é que há almas lá dentro
E a Tesouraria de Finanças não conseguiu livrar
A vizinha do lado de lhe morrer o filho.
A Repartição de não sei quê não pode evitar
Que o marido da vizinha do andar mais acima lhe fugisse com a cunhada...
Mas, está claro, está tudo certo...
E, excepto estar errado, é assim mesmo: está certo...
 
5-3-1935
 
 
álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993




05 dezembro 2025

vasco graça moura / a sombria beleza do tema

  
 
«a sombria beleza do tema
da estação e da morte» diz o Kundera algures.
nesta imagem desenha-se um olival perdido
de surdas tonalidades, atrás do cais de onde
 
se despenhou alguém, alguma forma
aflita e trágica, vinda do fundo súbito de uma
paisagem tão modesta, sob as vozes
de quem chega a quem parte, ou simplesmente foi ali para olhar
outros seres de passagem, outros rasos destinos sem anjo para o
     remorso.
há flores, dirás, algumas flores diurnas, confiantes,
que outras mãos hão-de dispor na jarra, relembrada
junto à parede branca, mas essas são um ténue
 
sopro de acaso, ou um fulgor antecipando outra nudez.
quando a luz já se tornou mais húmida e quase musical,
e através da folhagem a harpa do desgaste estremeceu,
e passaram as horas e passaram
 
pesadas, contadas, divididas, já não dói
a beleza de alguém que vai partir, a sombria beleza
da sua ocultação intransmissível, uma brisa leve misturar-se-á
ao cheiro de óleo, aos acenos afectuosos, aos
 
ruídos do tema da estação. é tudo. à noite o olival
será uma massa negra de clareiras adiadas,
atrás do cais sem ninguém e sem tempo, como sempre acontece
nas pequenas estações de uma província da alma.
 
 
 
vasco graça moura
rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001
 



04 dezembro 2025

benjamin péret / mistério do meu nascimento

  
E quando eu lhe respondi 19
ele respondeu-me 19
22 se tens tempo para ser rico
30 e 40 para a comédia em três tempos
50 para a porcaria do teu aniversário
100 para as comodidades da primavera
Quanto ao resto sou pálido e hipnótico
mas trate da sua calçada caro doutor
e deixe à água clara a hipótese de se tornar água suja
 
 
 
benjamin péret
sol de bolso
uma antologia de poemas
trad. regina guimarães
contracapa
2023




 

03 dezembro 2025

arthur rimbaud / um sonho para o inverno

  
 
                                                          Para ***Ela.
 


Este Inverno partiremos num pequeno vagão rosa
          Com almofadas azuis.
Que acolhedor. Espera-nos um ninho de beijos loucos
          Em cada recanto macio.
 
Fecharás os olhos para não veres pela janela
          As carrancas das sombras da noite,
Essas monstruosidades enraivecidas, chusma
          De demónios negros e de lobos negros.
 
Depois, sentirás a bochecha arranhada…
Um beijo ao d eleve, como uma aranha tonta,
          Descer-te-á pelo pescoço…
 
Então dir-me-ás: «Procura!», inclinando a cabeça:
–  E levaremos muito tempo à procura do insecto
       - Que tanto viaja…
 
 
Na carruagem, 7 de Outubro de 70

 
 
jean-arthur rimbaud
poesia
obra completa
trad. miguel serras pereira e joão moita
relógio d´água
2018




 

02 dezembro 2025

domingos da mota / soneto da pouquidão


 
 
São poucos os que lutam contra o medo
sem medo de perder seja o que for,
que ousam libertar-se do enredo
desse modo maligno de temor
que sofreia a coragem ante o susto
e que a tantos concita mais pavor
e os deixa tolhidos, dado o custo
da luta contra o medo sem temor.
São poucos os que lutam e a escassez
aumenta com tamanha pouquidão
que faz acumular, por sua vez
o medo, com razão ou sem razão
naqueles que se escondem dia a dia
por detrás do receio ou da apatia.
 
 
 
domingos da mota
tempestade seca
associação dos jornalistas e
homens de letras do porto
2025



 

01 dezembro 2025

herberto helder / comunicação académica

  
 
                    A minha posição é esta: toda as coisas que pare-
                    cem possuir uma identidade individual são apenas
                    ilhas, projecções de um continente submarino, e
                    não possuem contornos reais.
 
                                                                  Charles Fort
 
 
 
Gato dormindo debaixo de um pimenteiro: gato amarelo folhas verdíssimas pimentos vermelhos: sono redondo: sombras pequenas de pimentos vermelhos no sono do gato: folhas sombrias dentro do amarelo: pimentos dormindo num gato vermelho: verdes redondos no sono do pimenteiro: o amarelo: da cabeça do gato nascem pimentos verdíssimos de sono: sono vermelho: sombras amarelas no gato redondo de sono verdíssimo debaixo de um pimenteiro amarelo: a sombra do gato dando folhas redondas sonhando amarelo sobre dormindo os pimentos: água: secura sombria do gato vermelho: o sonho da água dorme no pimenteiro: a sombra da cal das paredes secas dorme no gato de água amarela: a cal dá pimentos que sonham nas folhas do gato: o sono da cal dá sombras redondas no gato enrolado no vermelho: a água é uma sombra o gato é uma folha o sono é um pimenteiro: a cal é o verdíssimo do sono seco dando sombra no amarelo: pimenteiro redondo: pimentos de cal enrolados no sonho do silêncio amarelo: o silêncio dá gatos que sonham pimentos que dão sono na cal que dá sombra nas folhas que dão água na secura do tempo vermelho: o tempo enrola-se debaixo da cabeça do pimenteiro que se enrola no gato de cal do sono amarelo: o sono de dentro dos pimentos debaixo do redondo verdíssimo enrolado no sonho: e dorme o pimenteiro com as sombras do gato redondo enrolando-se nas folhas: silêncio de sonho sono de tempo: tudo amarelo: noite do pimenteiro sono da cal folhas do gato sonho das sombras do verdíssimo vermelho: secura da noite: noite do gato na noite da cal com a noite das folhas dentro da noite do verdíssimo debaixo da noite do sonho diante da noite do pimenteiro após a noite da água conforme a noite debaixo com a noite enrolada contra a noite do amarelo desde a noite das sombras consoante a noite redonda para a noite de dentro durante a noite do vermelho detrás da noite dos tempos debaixo da noite sem à frente do com da noite conforme a noite conforme: a noite dos tempos: um gato de dentro desaparecendo num pimenteiro: pimenteiro desaparecendo: a cal morrendo no sonho das folhas pequenas: o silêncio de tudo no mundo inteiro:
 
 
   etceteramente vosso inteiro:
 
                                             herberto herder:
 
                                                                     em janeiro
 
   mil novecentos e sessenta e três
 
                                                                                                                                                                                                                                 1963
 

 
herberto helder
poesia toda
comunicação acadérmica
assírio & alvim
1996





30 novembro 2025

vergílio ferreira / todas as épocas…

  
 
303 – Todas as épocas têm uma palavra que resume e centraliza o que nela mais significa. Nós não temos nenhuma a não ser em negativo. Talvez «desagregação». Porque tudo o que é visível e sensível só diz não a tudo. O nosso vocabulário reduziu-se porque muitos vocábulos deixaram de servir. Amor, decoro, honestidade, honradez, seriedade, fidelidade, recato, decência. Opostamente, os vocábulos mais obscenos deixaram de ferir os ouvidos mais delicados. E não apenas os que se soltam em situações agressivas, mas mesmo em conversas normais e até em títulos de livros como um romance. O que é curioso é que nesses restos de reserva ou pudicícia não se dizem em voz alta esses títulos expostos numa livraria. Assim, se alguém os quer comprar não os pede pelo nome mas por outras formas de o referir como por exemplo apontando-os com o dedo ou apresentando-os simplesmente nas livrarias para o pagamento. Sempre existiram os palavrões, mas não expostos à publicidade e sim lidos com recato. Mas hoje vale tudo porque nada vale nada. incluindo a própria vida que tosos os dias se assassina numa vulgar bulha de facas. E não são precisas razões, que dão trabalho a descobrir ou seja a inventar. Basta faca.
 
 
 
vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001




29 novembro 2025

virgínia woolf / saumur, frio e chuva

  
 
(1931)
Sábado, 18 de Abril
 
 
Saumur, frio e chuva, embora com vislumbres de luz. o Loire – vasto, sem um único barco. Muito vazia a França. O hotel era melhor, a água mais quente. As mulheres disseram que estavam a usar vestidos de algodão – tempo incerto. Vimos a grande igreja redonda junto ao rio. Um mercado. Partimos; esquecendo-nos da mudança da hora. Manhã péssima. Fomos a Fontevrault. Vimos a velha igreja despida do velho convento. Não tire o chapéu, disse o homem. Não está consagrada. Os túmulos dos Plantagenetas: como Edith Sitwell: direitos, estreitados lado a lado: repintados, azul e vermelho. Agora todo este grande convento, onde as filles de France foram educadas, é uma prisão. Sinos da prisão tocando para o jantar. Fontes onde as raparigas se lavavam para o jantar. O frio deve ter sido pior nesse tempo. as abadesas faziam-se retratar em frescos – rostos gordos, sensuais, de grandes narizes.
 
Prosseguimos à chuva pelo país: estradas estreitas e amarelas: velhas sentadas nos campos debaixo de guarda-chuvas junto das ovelhas. Bíblico. Parado no tempo. almoço em Thouars: a comida ainda não é melhor do que a comida nas estalagens de Inglaterra, diz o L.
 
 
 
virgínia woolf
diários
trad. jorge vaz de carvalho
relógio d´água
2018
 


28 novembro 2025

roland barthes / na calma dos teus braços amantes

  
 
ABRAÇO. O gesto do abraço apaixonado parece preencher, num momento, para o sujeito, o sonho da união com o ser amado.
 
1
Fora do acasalamento (para o diabo, então, com o Imaginário), há este outro abraço, que é um enlace imóvel: estamos encantados, enfeitiçados: estamos no sono, sem dormir; estamos na voluptuosidade infantil do adormecimento: é o momento das histórias contadas, o momento da voz, que me vem fixar, siderar, é o retorno à mãe («na calma dos teus braços amantes», diz uma poesia musicada por Duparc). Neste incesto reconduzido, tudo então fica suspenso: o tempo, a lei, o proibido: nada se esgota, nada se quer: todos os desejos estão abolidos pois parecem definitivamente realizados.
 
2
Porém, no meio deste abraço infantil, o genital acaba fatalmente por surgir; destrói a sensualidade difusa do abraço incestuoso; a lógica do desejo põe-se em movimento, regressa ao querer-para-si, o adulto sobrepõe-se à criança. Sou, então, simultaneamente dois sujeitos: quero a maternidade e a genitalidade. (O apaixonado poderia definir-se: uma criança que se revolta: assim era o jovem Eros.)
 
3
Momento de afirmação: durante um certo tempo, na verdade terminado, perturbado, algo se conseguiu: fiquei realizado (abolidos todos os meus desejos pela plenitude da sua satisfação). A plenitude existe e não deixarei de a fazer regressar: por entre todos os meandros da história de amor, teimarei em querer encontrar, renovar, a contradição – a contracção – de dois abraços.
 
 
 
roland barthes
fragmentos de um discurso amoroso
trad. isabel pascoal
edições 70
2017
 



27 novembro 2025

agustina bessa-luís / massas

  
 
Disciplinar os povos é sempre a ilusão frenética dos grandes revolucionários. Falham continuamente. Não se dominam as energias sociais do mundo senão na medida em que elas tendem a uma rotina que, por sua vez, deixe tranquila a «espontaneidade negativa» do homem. Quer dizer que o estadista exerce influência nas massas, mas não as revela. Pode ser motor duma acção e formular um pensamento que se vai divulgando até se estiolar no exercício comum. Mas fica sempre ineficaz quanto à interpretação da chamada massa passiva que, na realidade, está organizada no sentido inverso do fatalismo.
 
 
 
agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008



26 novembro 2025

cesare pavese / uma obra não resolve nada

  
18 de Agosto 1947
 
Uma obra não resolve nada, assim como o trabalho de uma geração inteira não resolve nada. Os filhos – o amanhã – recomeçam sempre e ignoram alegremente os pais, o já feito. É mais aceitável o ódio, a revolta contra o passado do que esta beata ignorância. O que havia de bom nas épocas antigas era a sua constituição graças à qual se olhava sempre para o passado. Este o segredo da sua inesgotável plenitude. Porque a riqueza de uma obra – de uma geração – é sempre determinada pela quantidade de passado que contém.
 
 
 
cesare pavese
o ofício de viver - diário (1935-1950)
trad. alfredo amorim
relógio d´água
2004



25 novembro 2025

albert camus / a arte de kafka

  
Toda a arte de Kafka consiste em obrigar o leitor a reler. Os seus desfechos – ou as suas ausências de desfecho – sugerem explicações mas que não transparecem claramente e que exigem que a história seja lida sob um novo ângulo para adquirirem fundamento. Há por vezes uma dupla ou uma tríplice possibilidade de interpretação, de onde a necessidade de duas ou três leituras. Mas faríamos mal em tudo querer interpretar, na obra de Kafka, até ao pormenor. Um símbolo é sempre no geral e o artista dá-lhe uma tradução à letra. Só o movimento é restituído. E para o resto, temos de deixar ao acaso a sua parte, que é grande em todo o criador.
 
 
 
albert camus
primeiros cadernos
caderno n.º 4 janeiro 1942 / setembro 1945
trad. não disponível (antónio quadros?)
livros do brasil
1973





24 novembro 2025

franz kafka / diários



 

 
1910, 15 de dezembro
 
 
Simplesmente não acredito nas consequências da minha presente situação que dura quase há um ano; a minha situação é demasiado séria para tal. Nem sequer sei se posso dizer que esta situação é nova. A minha opinião, porém, é a seguinte: esta situação é nova, vivi situações semelhantes, mas nenhuma igual. É como se eu fosse de pedra, sou a própria laje do meu túmulo, não há lugar para a dúvida nem para a crença, para o amor ou para a repugnância, para a coragem ou para o medo, em particular ou em geral, só viver uma vaga esperança, mas não é melhor do que a inscrição tumular. Quase não há palavras que eu escreva que estejam de harmonia com as outras, oiço o esfregar de lata das consoantes umas contra as outras, e o acompanhamento cantado das vogais, semelhante ao canto dos negros nos circos. As minhas dúvidas dispõem-se em círculo à volta de cada palavra, vejo-as primeiro, antes de ver a palavra, mas quê! Não vejo palavra nenhuma, invento-a. mas isso não seria a maior infelicidade, só que eu tinha de inventar palavras que fossem capazes de soprar o odor do cadáver numa direcção que não viesse dar à minha cara e à do leitor. Quando me sento à secretária, não me sinto melhor do que a pessoa que caiu no meio do trânsito na Place de L´Opera e que parte as duas pernas. Os carros, apesar do barulho, continuam a andar silenciosamente, vindos de todos os lados e indo para todos os lados, mas a dor daquela pessoa organiza melhor as coisas do que os polícias; ela fecha-lhe os olhos e despovoa a praça e as ruas, sem que os carros tenham de se desviar. O grande movimento magoa-a, porque é um empecilho no meio do trânsito, mas o vazio não lhe é menos penoso, porque liberta a sua dor real.
 
 
 
franz kafka
diários (1910-1923)
trad. maria adélia silva melo
difel
1986
 



 

23 novembro 2025

álvaro de campos / penso em ti no silêncio da noite, quando tudo é nada,

  
 
Penso em ti no silêncio da noite, quando tudo é nada,
E os ruídos que há no silêncio são o próprio silêncio,
Então, sozinho de mim, passageiro parado
De uma viagem em Deus, inutilmente penso em ti.
 
Todo o passado, em que foste um momento eterno
E como este silêncio de tudo.
Todo o perdido, em que foste o que mais perdi,
É como estes ruídos,
Todo o inútil, em que foste o que não houvera de ser
É como o nada por ser neste silêncio nocturno.
 
Tenho visto morrer, ou ouvido que morrem,
Quantos amei ou conheci,
Tenho visto não saber mais nada deles de tantos que foram
Comigo, e pouco importa se foi um homem ou uma conversa;
Ou um [...] assustado e mudo,
E o mundo hoje para mim é um cemitério de noite
Branco e negro de campas e [...] e de luar alheio
E é neste sossego absurdo de mim e de tudo que penso em ti.
 
s.d.
 
 
 
álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993




22 novembro 2025

jacques prévert / menina de aço

  
 
 
Menina de aço, eu não amava ninguém
Neste mundo a não ser aquele que eu amava
O meu amante o meu amante aquele que me atraía
Agora tudo mudou foi ele que deixou de me amar?
O meu amante que deixou de me atrair? Ou fui eu?
Não sei e depois isso que importa?
Agora estou deitada na palha húmida do amor
Sozinha com todos os outros sozinha e desesperada
Mulher de lata mulher enferrujada
Oh meu amante meu amante morto ou vivo
Quero que te recordes de antigamente
Meu amante que me amava e que eu amava.
 
 
 
jacques prévert
palavras
trad. manuela torres
sextante editora
2007






21 novembro 2025

e e cummings / xiv poemas

  
[xiv]
 
toda a ignorância escorrega para o saber
e de novo se arrasta para a ignorância:
mas o inverno não é para sempre,mesmo a neve
derrete;e se a primavera estragar o jogo,que fazer?
 
toda a história é um desporto de inverno ou três:
que fossem cinco,eu seguiria insistindo que toda
a história é demasiado pequena até mesmo para mim;
para mim e para ti,excessivamente demasiado pequena.
 
Mergulha(estridente mito colectivo)na tua tumba
tão-só para trabalhar a escala até à hiperestridência
por cada magda e marta diogo e david
–amanhã é o nosso endereço permanente
 
e aí mal nos hão-de achar(se acharem,
mudaremos ainda mais para diante:para agora
 
 
 
e. e. cummings
xix poemas
trad. jorge fazenda lourenço
assírio & alvim
1998




20 novembro 2025

francis ponge / o objecto é a poética

  


 
A relação do homem com o objecto não é de todo apenas de posse ou de uso. Não, seria demasiado simples. É muito pior.
Os objectos estão fora da alma, é certo; contudo, eles são também os fusíveis do nosso juízo.
Trata-se de uma relação no acusativo.
 
 
 
francis ponge
nouveau recueil
alguns poemas
tradução de manuel gusmão
livros cotovia
1996




19 novembro 2025

paul éluard / e, através da ponte dos sentidos

  
 
 
E, através da ponte dos sentidos, pouco a pouco a solidariedade. Um amigo, uma amiga, e o mundo recomeça, retoma corpo a matéria informe. Uma linha recta passa através dos peitos. Os homens reúnem-se de novo e o infeliz volta a prender-se aos seus sorrisos, com um sorriso talvez um pouco menos amável que o dos tempos idos, mas mais justo, melhor. Recuperou-se no imaginar o que poderiam ser os seus irmãos se destruíssem a solidão em que viviam. Ouviu bramir o canto que se elevava da multidão compacta. E não mais voltou a sentir vergonha.
 
Os que o amavam eram inúmeros. Iam beber às fontes, trabalhavam contra o esforço que se perde na sombra. A dor fora sobrepujada, a árvore saía da terra, os seus frutos iam amadurecer, todos seriam com eles alimentados.
 
Que tinham então a ver com isto os fabricantes da moral? Um homem fora restituído aos seus semelhantes, um legítimo irmão.
 
 
 
paul éluard
poemas políticos
trad. carlos grifo
editorial presença
1971



18 novembro 2025

luis cartañá / a contra-senha

  
 
 
     Cheguei do fundo da pedra:
precocemente do centro da rosa:
toquei as mãos e a artéria.
Ando ainda com a pele dos mármores
sombrios do deserto inocente. Oponho-me,
oponho-me ao relâmpago da água
e do mandato: ordeno, troco,
louvo a penugem como espada de enxofre
ou perfeição. Ordeno
ainda os horizontes.
                              Minha voz não é débil
nem o nascimento se cheguei e pus sobre uma pedra
o coração como destino
e como canto a palavra amor e sem resposta, espero.
E como uma chuva de martelos,
de homem demasiado homem, de pancadas demasiado pancadas,
ou de paixão sem limites lancei minha funda ao vento:
quero mais terra, mais terra e repartir unhas e chicotes
e repartir palavra e boca: Como um último respirar do homem
que viveu sem história na pegada e criou.
Criou a magnitude do homem lá do fundo da matéria única,
uma nova matéria, forças a rasgar o último recanto do vento
e a ordenar o eco
da última terra ou gratidão
que reste em minhas sandálias.
 
     Caminhei até aqui,
cheguei precocemente do fundo da pedra
com a boca doce ou a palavra dividida. Ordeno
ainda os horizontes.
 
 
 
luis cartañá
rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução josé bento
assírio & alvim
2001



 

17 novembro 2025

luis buñuel / pássaro de angústia

  
 
Um plesiossauro adormecido entre os meus olhos
enquanto a música ardia num candeeiro
e a paisagem tomava uma paixão Tristão e Isolda
 
o teu corpo ajustava-se ao meu
como a mão se ajusta ao que quer esconder.
escorchada
mostravas-me os teus tendões de madeira
e os pequenos ramos de luxúria
que podiam tecer-se com as tuas veias
 
nos nossos peitos trémulos como folhas de jardim
ouvia-se um galope de bisontes no cio
 
todas as falas de amor se assemelham
todas têm acordes delirantes
e o peito esmagado
por músicas de séculos de memórias.
vêm depois o coração e o vento
o vento dobador de sons em pontas
doces como sangue
de uivos feitos carne
 
que ímpetos que esperas de mares rasgados
convertidos em níquel
ou em canto ecuménico daquilo que podia ter disso
     tragédia
nascerão     juntos os pássaros das nossas bocas
enquanto a morte nos penetra pelos pés?
 
tensa como uma ponte de beijos de pedra soou
     a uma
as duas voaram de mãos cruzadas
as três ouviam-se mais distantes que a morte
as quatro já tremiam de auroras
as cinco desenhavam a compasso o grande circuito
     transmissor do dia
 
às seis ouviram-se as cabrinhas dos alpes
levadas por monges ao altar
 
 
 
luis buñuel
poemas
trad. de mário cesariny
arcadia
1977





 

16 novembro 2025

álvaro de campos / o futuro

  
 
Sei que me espera qualquer coisa
Mas não sei que coisa me espera.
 
Como um quarto escuro
Que eu temo quando creio que nada temo
Mas só o temo, por ele, temo em vão.
Não é uma presença; é um frio e um medo.
O mistério da morte a mim o liga.
 
Ao [...] fim do meu poema.
 
s.d.
 
 
álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993




15 novembro 2025

ulla hahn / de corpo inteiro

  
 
Da fossa dos teus anos te tirei do lameiro
e mergulhei-te nas águas do meu verão
lambi-te as mãos cabelo corpo inteiro
jurei ser minha e tua até mais não.
 
Tu deste-me a volta. Gravaste a fogo brando
a tua marca na minha pele fina.
Renunciei a mim. E eis senão quando
me começo a afastar da minha sina
 
e de mim própria. A princípio ainda a recordação
um belo resto chamando por mim.
Mas nessa altura estava já dentro de ti
de mim escondida. Bem me escondeste então.
 
Perdi-me toda em ti, de mim nem cheiro:
e então cuspiste-me de corpo inteiro.
 
 
 
ulla hahn
trad. joão barrento
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990
 




14 novembro 2025

antonia pozzi / novembro

  
E depois – se eu partir
restará alguma coisa
de mim
no meu mundo –
restará um fino rasto de silêncio
no meio das vozes –
um ténue sopro de branco
no coração azul –
 
E numa noite de novembro
uma menina frágil
à esquina de uma rua
venderá braçadas crisântemos
e lá estarão as estrelas
gélidas verdes distantes –
Alguém chorará
nalgum lugar – nalgum lugar –
Alguém irá procurar crisântemos
para mim
no mundo
quando sem regresso
eu tiver de partir.
 
 
 
antonia pozzi
morte de uma estação
trad. inês dias
averno
2019
 



13 novembro 2025

wislawa szymborska / o negativo

  
 
No céu pardacento,
uma nuvenzinha ainda mais pardacenta
com o halo solar negro.
 
À esquerda, ou seja, à direita,
o galho branco da cerejeira com as suas flores negras.
 
No teu rosto escuro, umas sombras claras.
Estás sentado à mesa
e pousaste nela as mãos acinzentadas.
 
Dás a impressão de ser um espírito
a tentar evocar os vivos.
 
(Uma vez que ainda faço parte deles,
deveria aparecer e dizer-lhe:
boa noite, ou seja, bom dia,
adeus, ou seja, bem-vindo
e não lhe poupar perguntas a nenhuma resposta,
caso digam respeito à vida,
ou seja, à tempestade antes da bonança.)
 
 
 
wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006
 



12 novembro 2025

zbigniew herbert / penteava o cabelo

  
Penteava o cabelo antes de dormir
diante do espelho Durava uma eternidade
Entre flexões e extensões do cotovelo
passavam épocas Dos cabelos soltavam-se em silêncio
soldados da segunda legião chamada Augusta Antoniniana
companheiros de Rolando artilheiros de Verdun
com dedos firmes
segurava a auréola sobre a cabeça
Demorava tanto tempo
que quando por fim
se dirigia a mim
entre meneios
meu coração até aí dócil
parava
e na pele apareciam
grossos cristais de sal
 
 
 
zbigniew herbert 
poesia quase toda
tradução de teresa fernandes swiatkiewicz
cavalo de ferro
2024





 

11 novembro 2025

paul celan / de escuridão em escuridão

  
 
Abriste os olhos – vejo a minha escuridão viver.
Vejo-a até ao fundo:
também aí é minha e vive.
 
Poderá isso transpor? E transpondo acordar?
De quem é a luz que se atrela aos meus passos
Para encontrar um barqueiro?
 
 
 
paul celan
sete rosas mais tarde
antologia poética
trad. joão barrento e y. k. centeno
relógio d´água
2023





10 novembro 2025

alain bosquet / três poemas

  
 
3
Em nome das nostalgias
que formam este cristal.
Em nome do verbo massacrado
donde saem as cegonhas.
Em nome do mistério antigo
que junte a montanha
aos cetáceos do crepúsculo.
Em nome do gosto pelo desgosto
vigilante no fundo da inocência.
Em nome de uma enfermidade
Que diz ser a nossa glória.



alain bosquet
trad. de eugénio de andrade
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990




 

09 novembro 2025

álvaro de campos / chove muito, chove excessivamente...

  
 
Chove muito, chove excessivamente...
Chove e de vez em quando faz um vento frio...
Estou triste, muito triste, corno se o dia fosse eu.
 
Num dia no meu futuro em que chova assim também
E eu, à janela de repente me lembre do dia de hoje,
Pensarei eu «ah nesse tempo eu era mais feliz»
Ou pensarei «ah, que tempo triste foi aquele»!
Ah, meu Deus, eu que pensarei deste dia nesse dia
E o que serei, de que forma; o que me será o passado que é hoje só presente?...
O ar está mais desagasalhado, mais frio, mais triste
E há uma grande dúvida de chumbo no meu coração...
 
20-11-1914
 
 
 
álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993




08 novembro 2025

louise glück / canção de embalar

  
 
Descansa agora. Foram
demasiadas emoções.
 
O crepúsculo, depois a noitinha. No quarto
cintilam pirilampos, aqui, acolá, aqui, acolá,
e a funda doçura do Verão entra pela janela aberta.
 
Não penses mais nestas coisas.
Ouve-me a respirar, ouve-te a respirar
como os pirilampos, cada pequeno sopro
é um clarão onde aparece o mundo.
 
Já cantei muito para ti na noite de Verão.
Hei-de conquistar-te, no final: o mundo não pode conceder-te
esta visão contínua.
 
Deves aprender a amar-me. Os humanos devem aprender a amar
o silêncio e o escuro.
 
 
 
louise glück
a íris selvagem
tradução de ana luísa amaral
relógio d´água
2020




07 novembro 2025

konstandinos kaváfis / para ficar

  
 
As horas uma da noite havia de ser,
ou uma e meia.

                       Num canto do tasco;
por detrás da divisória de madeira.
Além de nós os dois o sítio completamente vazio.
Um candeeiro de petróleo mal o iluminava.
Dormia, à porta, o criado por causa da demora.
 
Não nos veria ninguém. mas já
nos tínhamos acalorado tanto,
que nos tornámos inadequados para precauções.
 
As roupas entreabriram-se – muitas não eram
pois ardia um mês de Julho divino.
 
Deleite de carne por entre
as roupas entreabertas;
rápido desnudamento de carne – cuja imagem ideal
atravessou vinte e seis anos; e agora veio
para ficar nesta poesia.
 
 
konstandinos kavafis
os poemas
I (1919-1932)
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
2005




06 novembro 2025

charles bukowski / sol a descer

  
 
ninguém lamenta que eu esteja de partida,
nem eu;
mas devia haver um trovador
ou pelo menos um copo de vinho.
 
creio que isto incomoda principalmente os jovens:
uma morte lenta e pacífica.
ainda faz um homem sonhar;
anseias por um velho veleiro,
a vela branca com sal incrustado
e o mar a sacudir indícios de imortalidade.
 
mar no nariz
mar no cabelo
mar no tutano, nos olhos
e sim, aí dentro do peito.
será que sentiremos saudades
do amor de uma mulher ou da música ou da comida
ou do salto do grande e furioso cavalo
musculado, coiceando torrões de terra e destinos
ao alto e para fora
no momento exacto em que o sol se põe?
 
mas agora é a minha vez
e não há majestade nisto
porque não houve majestade
antes
e cada um de nós, como vermes que escavaram
                                   a saída de dentro de maçãs,
não merece qualquer reprimenda.
 
a morte entra-me na boca
e serpenteia ao longo dos meus dentes
e pergunto-me se tenho medo deste
morrer mudo, sem arrependimentos, que é
como o murchar de uma rosa.
 
 
 
charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018




 

05 novembro 2025

federico garcia lorca / adelina em passeio

  
 
Não tem laranjas o mar,
nem Sevilha tem amor.
Morena, que luz de fogo!
Empresta-me o guarda-sol.
 
Pôr-me-á a cara verde
– sumo de lima e limão –.
Tuas palavras – peixinhos –
nadarão em seu redor.
 
Não tem laranjas o mar.
Ai amor.
Nem Sevilha tem amor!
 
 
 
federico garcia lorca
poemas
trad. de eugénio de andrade
assírio & alvim
2013
 



04 novembro 2025

juan ramón jimenez / às vezes, sinto

  
 
137
 
Às vezes, sinto
como a rosa
que serei um dia, como a asa
que serei um dia;
e envolve-me um perfume, alheio e meu,
meu e de rosa;
e um vaguear me prende, alheio e meu,
meu e de pássaro.
 
 
 
juan ramón jimenez
antologia poética
tradução de josé bento
relógio d’água
1992




03 novembro 2025

john ashbery / na quinta do norte

  
 
Algures alguém viaja furiosamente ao teu encontro,
A uma velocidade incrível, viajando dia e noite
Por entre nevões e calores do deserto, transpondo torrentes, atravessando desfila-
                                                                                                           [deiros.
Mas saberá ele onde te encontrar?
Reconhecer-te-á quando te vir?
Dir-te-á a coisa que tem para ti?
 
 
Aqui quase nada cresce,
E contudo os celeiros estão a abarrotar,
As sacas de grão empilhadas até às traves do tecto.
Os ribeiros correm docemente, engordando o peixe;
Pássaros escurecem o céu. Será que basta
Deixar a malga do leite lá fora à noite,
Pensar nele às vezes,
Às vezes e sempre, com sentimentos confusos?



john ashbery
uma onda e outros poemas
tradução colectiva / joão barrento
poetas em mateus
quetzal editores
1992



 

02 novembro 2025

bernardo soares / escrever é esquecer

  
 
Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais animam, as artes vivas (como a dança e o representar) entretêm. A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida — umas porque usam de fórmulas visíveis e portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana.
 
 
Não é esse o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de ideias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso.
 
s.d.
 
 
 
fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982




 

01 novembro 2025

rui caeiro / saber que o verão

  
 
Saber que o Verão foi uma vez e pronto, saber que a paixão idem idem, mas saber também que tudo se passa como se não, isto é, como se o não soubesse ou o Verão durasse sempre.
E também por isso não devem escrever-se poemas de amor: ficam a mirrar e a desbotar no papel pelos séculos dos séculos.
 
 
 
rui caeiro
sobre a nossa morte bem muito obrigado
baba de caracol
maldoror
2019





31 outubro 2025

rui diniz / ode aos ateadores de incêndio

  
Na nudez dos mares pousei mãos curtidas.
Acendi o fogão no quarto. «Cheira aqui
a petróleo.» Era com efeito um cheiro de lacre,
de ganchos para o cabelo queimado ao
rubro. Fiz também queimar nessa noite alguns
castiçais de velas – espécimes preciosos
e raríssimos. Havia sobre as mesas e
o soalho fósforos franceses. Pus fogo
a uma vivenda junto ao mar. fiz isso em
memória de Ana de Rivera que passava as
noites de inverno no seu quarto,
queimando fósforos.
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022




30 outubro 2025

rui lage / da limpeza das matas



 

 
Desconhecem os versos
que escreves na terra
a firmes golpes de enxada
ou que recolhes em cestos,
maçãs de sol,
rotundos pêssegos
 
líricos frutos para os quais
não há leitores.
 
Ignoram como te segues
no voo da perdiz
quando o machado abala o tronco
no coração da floresta.
 
 
 
rui lage
corvo
quasi
2008
 



 

29 outubro 2025

rui nunes / vésperas portuguesas



 

 
o dia corre de poente para nascente, a chuva
é um lençol tenso sobre os velhos que separam
as lembranças, com palavras que não chegam
a dizer: esquecem os subterfúgios do tempo
e avançam cambaleantes pelas grandes fissuras
entregues ao despovoamento alucinante
 
no interior dos carros, os crimes
são ligeiras confidências
 
 
 
rui nunes
ofício de vésperas
relógio d’ água
2007
 



 

28 outubro 2025

rui costa / o homem azul

  
 
Há muito que tento escrever um poema
sobre o canteiro de um homem azul no labor
das mãos. O homem seria cego porque a visão
não facultaria o modo de selecionar os minerais ou
a resistência das proteínas à fúria das ideias trazidas
pelo vento. Na verdade, as mãos deste homem não seriam
mãos como as de outros animais – dos corvos, por exemplo –
capazes de ouvir, do fundo intuído da sua genética
consciência, mesmo aqueles pequenos actos que ainda não
aconteceram. O homem azul já aprendeu, aliás, que cada
tentativa de despojamento traz consigo mais um
camião de areia
que acaba por ser demasiado sólida perante o orgulho das
pétalas mais breves.
Quando alguém volta a cabeça para baixo o céu começa
a duvidar e então, diz o azul do mundo, a planta que precisa
de atenção vê o bafo ainda quente do homem azul.
 
 
 
rui costa
«não sou quem era quando lhe mordi a orelha»
mike tyson para principiantes
antologia poética
assírio & alvim
2017





 

27 outubro 2025

ruy belo / em cima de meus dias

  
 
Muita gente me tem falado a meu respeito
como quem me chamasse pelo nome e eu me voltasse
e nesse nome dito nessa boca fosse toda a minha vida
e eu morresse quando entre pinhais quem me chamara a fechasse
 
Muita gente me tem falado a meu respeito
mas eu cresço e decresço não reparo e anoitece
e já nem sei ao certo quantos dias meço
Regresso com o gado contra o sol rasante
Mas é de névoa ou fumo o algodão que cobre as casas
aonde regressamos atraídos pela luz que já nos campos se consome?
 
Os ciprestes os pássaros saúdam-me e eu passo
com um olho vazado transpareço o meu passado
e tudo esqueço e peço mesmo a Deus que esqueça quanto sou
além dessa medida simples onde me vasou
Sabermos nós que a face de algum mar ao pôr-do-sol pode mudar
e nenhum dia-a-dia consentir ao homem mais que a morna superfície
dos gestos por que troca a mais íntima morte que merece
 
Nada na minha poesia é meu
juro por Deus dizer toda a verdade
Ponho a mão na cabeça o dia é escuro e vago e eu respiro
Espero pela manhã como quem nasce
Ninguém sabe o meu nome porque
eu já perdi ao longe alguns dos olhos
e fui feliz em cafés de província onde me vi sentar
 
Digam que foi mentira, que não sou ninguém,
que atravesso apenas ruas da cidade abandonada
fechada como boca onde não encontro nada:
não encontro respostas para tudo o que pergunto nem
na verdade pergunto coisas por aí além
Eu não vivi ali em tempo algum
 
É de manhã caminho nem meus passos oiço
oitenta passos diz-se que darei
Vão-se fechando os dois alinhamentos das moradas
arredonda-se o largo, alguns problemas camarários
Duvido de mim próprio: quem serei?
O carro rega coisas tão profundas como esta
Meu Deus meu Deus, que mal eu fiz?
Eu estive em Dinard e vou talvez casar
Acordo e transistorizo os dois ouvidos numa música abundante
 
Muita gente me tem falado a meu respeito
mas eu cresço e minguo certas vezes anoitece
Sou coisa que se molha encolhe e envelhece
tudo me aquece e tudo me arrefece
Dois pés e duas mãos, algumas pás de terra
E sabem mesmo que o meu nome é Rá, por isso me conhecem
Sou a doença e sou onde me dói
sou sítio onde se nega que se morre
Tem graça haver quem fale a meu respeito
 
 
 
ruy belo
todos os poemas I
sete coisas verdadeiras
assírio & alvim
2004