22 junho 2025

joão habitualmente / a roda dos anos

 
 
 
Primeiro, tudo são carícias
e há grandes varandas arvoradas na noite
de lua morta
onde nos instalamos como reis
 
Ribeiros e fontes
e todos os sítios abrem para a tua porta
 
 
Depois abre-se o tempo em abismo
e erra-nos as contas
 
As noites, compridas e iguais,
São agora de cornos e pontas
 
 
 
joão habitualmente
um dia tudo isto será meu
(uma antologia)
porto editora
2019




21 junho 2025

joão gesta / vende-se isco



 

 

Faz muito frio, como convém nestas crónicas.
Trémulo, desembacio o vidro da janela.
As crianças esfaqueiam-se alegremente no parque e fazem
Ronaldos na neve, enfeitando-lhes os olhos com varejeiras da
Petúlia, as melhores.
Apenas um pouco para a esquerda, vestidas de lilás, três caudas
de piano lêem Pessoa, estiraçadas na relva domingueira. Dois
telefones beijam-se na boca e discam números às escondidas
dos pais.
Lá mais ao longe, no meu firmamento adivinhado, o Douro
faz amor com a Ribeira, mas a pensar noutra coisa.
Nas margens, os pescadores mijam mais do que o habitual.
O TGV, impante, atravessa o rio sem barbatanas,
“Pena os sáveis não usarem collants”, pensei, arreliado.
 
 
 
joão gesta
uma falha nos dentes
porto editora
2019



 

20 junho 2025

carlos de oliveira / estátua

 
 
 
a Jane L.
 
 
Nos umbrais desta página recebo o poema que chegou de longe, duma memória escura, voluntária, atravessando lama, sono, olvido. Desvendo-lhe as feições, sílaba a sílaba. Quando grito por fim «eis uma cara nova», penso logo «afinal, eras tu». Reconheci apenas outro rosto esquecido na aridez do mundo, recolhi-o da sombra donde veio, e aqui lho deixo, adoradora de estátuas muito antigas, petrificado no papel.
 
 
 
carlos de oliveira
sobre o lado esquerdo
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1982



19 junho 2025

yvette k. centeno / a hora

 



 

 

Acordo
dia a dia mais cedo.
Tenho o relógio ao lado
procuro ver a hora
mas não vejo.
Fecho os olhos
verei daqui a bocado,
não há pressa
a hora não fugirá
está ali dentro presa
 
29 de Setembro, 2021
 
 
 
yvette k. centeno
existir
eufeme
2022
 



18 junho 2025

rui diniz / notas de viana e arredores

 
 
 
Li pouco, este Verão. O «Retrato em Movimento», Ruy
Belo, puros esboços de leitura entre as
longas e extenuantes deliberações poéticas em
papel que comprara em Tuy numa papelaria.
Escrevi, pois. E de regresso de Lisboa, viveria,
viveria, desintegraria em mim todas as
objecções cósmicas e regressaria de mãos
vazias a mim mesmo. Falta-me
uma qualidade: a paciência. Sou acima
de tudo um ser inquieto perante a
ideia da morte. Estou incapaz de criar.
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022




17 junho 2025

armando silva carvalho / sempre passei a vida entre o poema

 
 
 
SEMPRE passei a vida entre o poema
e a vida entre o amor
e a fábula.
E sempre que colhia
esses espaços de luz precipitada
eu via a voz de deus
alevantada
entre mim e o nada que sorria.
 
 
 
armando silva carvalho
canis dei (1995)
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007






 

16 junho 2025

daniel faria / explicação do alpendre

 


 
 
Porque em seu peito nunca tive aberta
A veia exacta para lhe ser sangue
 
 
 
daniel faria
poesia
últimas explicações
quasi
2003






 

15 junho 2025

adolfo luxúria canibal / o jardim


 

  
 
Há tanto tempo que não me ocupo do jardim
A última vez estava frondoso
A buganvília a tingir-se de vermelho Trepando
O perfume inebriante
E as festas ao cair da tarde
Parece que foram há séculos Noutra encarnação
Os meus amigos traziam as bebidas
E a jovialidade
O jardim enchia-se de gente De beijos
Pelos cantos Sôfregos de desejo
Inventávamos planos de rebelião Sonhos de transmutação
Passávamos horas a inventar Entre duas carícias
Surgiam ideias puras e inocentes
Como a nossa vontade de tudo abarcar
Era um frenesim constante
Faz-me pena agora olhar para ele
Para as suas sebes abandonadas De ramos
Retorcidos jaz tombada a grande epícea
E uma enorme cratera
Substitui os belos canteiros de outrora
Há tanto tempo que não me ocupo do jardim
 
 
 
adolfo luxúria canibal
no rasto dos duendes eléctricos
(poesia 1978-2018)
Epístolas da guerra (1999)
porto editora
2019





 

14 junho 2025

irene lisboa / ir, vir

 
 
 
Ir, vir…
Ir. Manhã, ar fresco, paisagem nova.
Vir. Tarde. hora dos poetas, dos que não can-
tam e passam pelas coisas apenas gozando, sur-
preendidos e ternos.
 
Se em cada lugar da terra eu perdesse a minha
humana essência, aquilo que me iguala ao que é
e ao que foi!
Nesta hora divina, nesta formosa tarde como ser?
Que me tentava?
Não sei.
Terra, luz, ar, amenidade indizível!
 
 
 
irene lisboa
um dia e outro dia…
poesia I
obras de irene lisboa  I
editorial presença
1991
 




13 junho 2025

antonia pozzi / fogueiras de santo antónio

 
 
 
Labaredas na noite do meu nome
sinto arderem à margem
de um mar escuro –
e ao longo dos portos acenderem-se piras
de coisas velhas,
de algas e barcos
naufragados.
 
E em mim nada que possa
ser queimado,
mas cada hora da minha vida
ainda – com o seu peso indestrutível
presente –
no coração extinto da noite
me segue.
 
 
 
antonia pozzi
morte de uma estação
trad. inês dias
averno
2019
 



12 junho 2025

rui caeiro / país natal

 
 
 
País de cegos, onde não falta nem a mansidão nem a quietude – nem a resignação. Onde os zarolhos que há querem ser reis – a fim de, segundo dizem, dar razão a um velho provérbio. Tudo, na realidade, em ordem a mandar e até, quando calha, bater no ceguinho. São, pois, menos simpáticos os zarolhos – além do mais, mexem-se muito. País algo cinzento, cumpridor dos provérbios e das normas. Para nós, grande multidão dos cegos, uma consolação porém: nunca os zarolhos, naturais detentores do poder, hão-de conhecer os supremos prazeres do país em que vivem.
 
Prazeres de gente pobre, prazeres simples, comezinhos – mas supremos:
  – o afago de uma mão, de uma voz, de um olhar…
  – o contacto da mão de um cego que nos ajuda a atravessar a rua…
 
 
 
rui caeiro
sobre a nossa morte bem muito obrigado
livro de afectos
maldoror
2019




11 junho 2025

maria teresa horta / domínio

 
 
Não deixo que as coisas
me dominem
nem que a vasta secura
me adormeça
 
nem que a vela
me apague
nos sentidos
a febre a que a boca não se entrega
 
Não deixo nem que deixes
tuas armas
que a piscina de meu ventre
se entorpeça
 
nem que a vara
se quebre na saudade
nadando contra aquilo
que me vença
 
 
 
maria teresa horta
poesia reunida
educação sentimental
dom quixote
2009




 

10 junho 2025

mário dionísio / caminho



 

 
Depois que os levaram
as casas ficaram sem ninguém.
e o barulho das portas batendo nos umbrais
e o escaqueirar dos vidros das janelas completamente abertas
confundiram-se com o sinistro uivar do vento
e o choro convulsivo das crianças sozinhas.
Depois que os levaram
os olhos saltaram das órbitas, cansados de chorar,
as searas morreram queimadas porque ninguém as ceifou,
as máquinas pararam,
o ferro das charruas cobriu-se de ferrugem.
 
As cidades ficaram desertas.
 
Depois que os levaram
a miséria passou em todas as almas
e vincou nos rostos uma profunda ruga de tristeza.
As mulheres prostituíram-se
porque eles vieram e não tiveram quem os impedisse
de mudar as oficinas em casas de deboche.
Depois que os levaram
tudo mudou.
Sem luz, perdemo-nos no meio do deserto.
Estendemos os braços magros e não achámos nada.
Olhámos e não vimos.
Gritámos e nem ouvimos sequer o nosso eco.
Depois que os levaram tudo estava perdido.
 
Mas uma estrela brilhou na insondável noite.
Um grito sublime chicoteou o silêncio.
Um sopro de esperança cimentou o solo.
Um elo indestrutível juntou as nossas dores.
 
E o grito fez-nos estremecer até à medula
a estrela encharcou de claridade um novíssimo caminho.
Os olhos voltaram às órbitas.
As searas renasceram.
As máquinas tornaram a girar.
O ferro das charruas sacudiu a ferrugem.
 
Agora já não andamos como doidos a gritar no meio das trevas
e as nossas botas não ficam enterradas na areia do deserto.
Agora vemos um caminho.
E este não tem nada de igual aos que nos tinham mostrado.
Este é o nosso, o novo, o único caminho por onde podemos avançar,
o único
por onde voltarão aqueles que nos levaram.
 
 
 
mário dionísio
poesia completa
poemas (1936-1938
imprensa nacional-casa da moeda
2016




 

09 junho 2025

eduarda chiote / a incerta sujeição da arte

 
 
 
Puderas ter criado
mares
em que o contacto da luz
não magoasse
quer a leveza do fogo
quer a respiração funda
da água
e de modo a que a imolação
do corpo de ambos
por igual repartisse a
natureza primordial
da arte
e nenhuma lacuna seria
imperfeita,
criança indesejada: pois tudo seria
só,
silêncio,
majestade.
 
 
 
eduarda chiote
a celebração do pó
asa
2001
 



08 junho 2025

egito gonçalves / deitado sob as nuvens

 
 
 
Deitado sob as nuvens
recebo nos olhos o esplendor
que sombreia os escombros. Olho-as
como símbolos, vêm do meio-dia
solar que afastei, de fímbria
branca, ventres
de água, túrgidos. Levantarão
ainda outros poemas quando já não existam
(não existem agora?) longe daqui
num outro cérebro, num olhar pousado
nas sólidas ruínas, nos destroços
de que o inverno se nutre – por isso
afinal vos amo, nuvens, onde estais…
 
 
 
egito gonçalves
o esperado fim do mundo já partiu
uma antologia
língua morta
2020
 



07 junho 2025

hans-ulrich treichel / seja o que for

 
 
Bebem cerveja
ou vinho ou seja o que for
que deles vai restar,
os bolinhos moles, a pele dura,
aperitivos e amendoins,
ânimo nobre, amor aos animais,
as calças vinco a vinco, prega a prega,
o pescoço à navalha, manchas de ferrugem
debaixo dos braços, ou
manchas de sangue, ou
seja o que for que deles vai restar,
ou nós ou vocês, ou todos ou nenhum,
o veado na bruma,
a campa da criança,
a pancadinha seca na almofada,
haverá sujidade e
fome, apesar da
fartura e de todo
o sabonete.
 
 
 
hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994




 

06 junho 2025

ernesto sampaio / somos dos rios

 
 
 
Somos dois rios
que se afastam em silêncio
e os anos acumulam
de um pó essencial
antes de desaparecer
para nunca mais
 
Já se perde
na corrente fortíssima
a fixidez dos teus olhos
 
Até ao fim dos anos
os teus olhos
fixarão
 
 
 
ernesto sampaio
dois rios
poesia
vs editor
2024




05 junho 2025

andrea cohen / entrada

 
 
 
Ficou à porta
muito tempo
 
como se quisesse
entrar.
 
como se setas
invisíveis alojadas
 
no interior lho
não permitissem.
 
 
 
andrea cohen
serenamente sobre as lanternas
trad. francisco josé craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2024




04 junho 2025

diana v. almeida / firenze

 



 

 
Assaltam-me os anjos
renascentistas súbitos
infantes zelosos lúcidos
pálidos andróginos esguios
fina cabeleira em cascata
asa em riste pena matizada
descem em esquadria
dos altares laterais
aureo
lado
s.
 
 
 
diana v. almeida
cosmos e casas
editora urutau
2021







03 junho 2025

ilka brunhilde laurito / lamentação de natércia

 
 
 
VIII
 
Amor é fogo? ou é candente lágrima?
Pois eu naufrago em um mar de labaredas
que lambem o sangue e a flor da pele acendem
quando o rubor me vem à tona d’água.
 
E como arde, ai, como arde, Amor,
quando a ferida dói porque se sente,
e o mover dos meus olhos sob a casca
vê muito vem o que devia não ver.
 
Solitária andarei e descontente?
Mas como posso andar, Amor, com as gentes,
se teus braços de ausência é que me estreitam?
 
Pois se dois corpos só acharão lugar
no mesmo exacto e mensurado espaço,
em solidão tão larga eu já não caibo.
 
São Paulo, 1984
 
 
 
ilka brunhilde laurito
colóquio letras nr. 90
março 1986
fundação calouste gulbenkian
1986
 



02 junho 2025

cesário verde / num bairro moderno

 
 
 
Dez horas da manhã; os transparentes
Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estacam-se as nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua macadamizada.
 
Rez-de-chaussée repousam sossegados,
Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou doutro, em quartos estucados,
Ou entre a rama dos papéis pintados,
Reluzem, num almoço, as porcelanas.
 
Como é saudável ter o seu aconchego,
E a sua vida fácil! Eu descia,
Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde eu agora quase sempre chego
Com as tonturas d’uma apoplexia.
 
E rota, pequenina, azafamada,
Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmóreo d’uma escada,
Como um retalho de horta aglomerada,
Pousara, ajoelhando, a sua giga.
 
E eu, apesar do sol, examinei-a:
Pôs-se de pé; ressoam-lhe os tamancos;
E abre-se-lhe o algodão azul da meia,
Se ela se curva, esguedelhada, feia,
E pendurando os seus bracinhos brancos.
 
Do patamar responde-lhe um criado:
«Se te convém, despacha; não converses.
Eu não dou mais.» E muito descansado,
Atira um cobre lívido, oxidado,
Que vem bater nas faces d’uns alperces.
 
Subitamente - que visão de artista! -
Se eu transformasse os simples vegetais,
À luz do Sol, o intenso colorista,
Num ser humano que se mova e exista
Cheio de belas proporções carnais?!
 
Boiam aromas, fumos de cozinha;
Com o cabaz às costas, e vergando,
Sobem padeiros, claros de farinha;
E às portas, uma ou outra campainha
Toca, frenética, de vez em quando.
 
E eu recompunha, por anatomia,
Um novo corpo orgânico, aos bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancia,
E nuns repolhos seios injectados.
 
As azeitonas, que nos dão o azeite,
Negras e unidas, entre verdes folhos,
São tranças dum belo cabelo que se ajeite;
E os nabos - ossos nus, da cor do leite,
E os cachos d’uvas - os rosários d’olhos.
 
Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido, fragrante,
Como d’alguém que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que me lembrou um ventre.
 
E, como um feto, enfim, que se dilate,
Vi nos legumes carnes tentadoras,
Sangue na ginja vívida, escarlate,
Bons corações pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.
 
O sol dourava o céu. E a regateira,
Como vendera a sua fresca alface
E dera o ramo de hortelã que cheira,
Voltando-se, gritou-me, prazenteira:
«Não passa mais ninguém!... Se me ajudasse?!...»
 
Eu acerquei-me d’ela, sem desprezo;
E, pelas duas asas a quebrar,
Nós levantámos todo aquele peso
Que ao chão de pedra resistia preso,
Com um enorme esforço muscular.
 
«Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!»
E recebi, naquela despedida,
As forças, a alegria, a plenitude,
Que brotam d’um excesso de virtude
Ou d’uma digestão desconhecida.
 
E enquanto sigo para o lado oposto,
E ao longe rodam umas carruagens,
A pobre afasta-se, ao calor de agosto,
Descolorida nas maçãs do rosto,
E sem quadris na saia de ramagens.
 
Um pequerrucho rega a trepadeira
D’uma janela azul; e, com o ralo
Do regador, parece que joeira
Ou que borrifa estrelas; e a poeira
Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.
 
Chegam do gigo emanações sadias,
Oiço um canário - que infantil chilrada! -
Lidam ménages entre as gelosias,
E o sol estende, pelas frontarias,
Seus raios de laranja destilada.
 
E pitoresca e audaz, na sua chita,
O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
D’uma desgraça alegre que me incita,
Ela apregoa, magra, enfezadita,
As suas couves repolhudas, largas.
 
E, como grossas pernas d’um gigante,
Sem tronco, mas atléticas, inteiras,
Carregam sobre a pobre caminhante,
Sobre a verdura rústica, abundante,
Duas frugais abóboras carneiras.
 
 
 
cesário verde
o livro de cesário verde e outros poemas
penguin clássicos
2024
 



01 junho 2025

eugénio de andrade / aos inimigos

 
 
 
Falta ainda trazer a estas páginas, nem que seja obliquamente, esses que engordam com o ódio. Vêm ao anoitecer, no rastro lento da melancolia, a enxúndia a reluzir de satisfação. Alguns amaram-me tanto quando eram jovens que seria mesquinho negar-lhes agora um copo de vinho ou um lugar ao lume para aquecerem as mãos. Novembro já chegou, e o frio desculpa de certo modo a promiscuidade.
 
20.3.86
 
 
 
eugénio de andrade
vertentes do olhar
poesia
fundação eugénio de andrade
2000



 

31 maio 2025

italo calvino / as cidades e a memória

 
 
1.
 
Partindo-se dali e andando três dias para Levante o homem encontra-se em Diomira, cidade com sessenta cúpulas de prata, estátuas de bronze de todos os deuses, ruas pavimentadas a estanho, um teatro de cristal e um galo de ouro que canta no alto de uma torre todas as manhãs. Todas estas belezas o viajante já as conhece por tê-las visto também noutras cidades. Mas a propriedade desta é que quem lá chegar numa noite de Setembro, quando os dias já diminuem e as lâmpadas multicores se acendem todas ao mesmo tempo por cima das portas das lojas de peixe frito, e de um terraço uma voz de mulher grita: uh!, lhe apetece invejar os que agora pensam que já viveram uma noite igual a esta e que então foram felizes.
 
 
italo calvino
as cidades invisíveis
trad. josé colaço barreiros
teorema
1999




30 maio 2025

primo levi / canto dos mortos em vão

 
 
 
Sentai-vos e negociai
À vossa vontade, velhas raposas grisalhas.
Iremos amuralhar-vos num palácio esplêndido
Com comida, vinho, boas camas e bom fogo.
Para que possais negociar e chegar a bom termo sobre
A vida dos nossos filhos e dos vossos.
Que toda a sabedoria da criação
Convirja para bendizer as vossas mentes
E vos guie no labirinto.
Mas lá fora ao frio, nós iremos esperar-vos,
O exército dos mortos em vão,
Nós os de Marne e de Montecassino,
De Treblinka, de Dresden e de Hiroshima:
E estarão connosco
Os leprosos e os tracomatosos,
Os desaparecidos de Buenos Aires,
Os mortos do Cambodja e os moribundos da Etiópia,
Os pactuadores de Praga,
Os exangues de Cálcuta,
Os inocentes massacrados em Bolonha.
Ai de vós se saís sem acordo:
Sereis cingidos ao nosso abraço.
Somos invencíveis porque somos os vencidos.
Invulneráveis porque já mortos:
Nós rimo-nos dos vossos mísseis.
Sentai-vos e negociai
Até que se vos seque a língua:
Se a ruína e a vergonha durarem
Iremos afogar-vos na nossa podridão.
 
14 de Janeiro, 1985
 
 
 
primo levi
a uma hora incerta
trad. rui miguel ribeiro
edições do saguão
2024
 



29 maio 2025

pier paolo pasolini / à bandeira vermelha

 
 
 
 
Para quem só conhece a tua cor, bandeira
                                                     vermelha,
tu deves realmente existir para que ele exista:
quem se cobria de crostas cobre-se de chagas,
o trabalhador torna-se mendigo,
o napolitano calabrês, o calabrês africano,
o analfabeto um búfalo ou um cão.
Quem mal conhecia a tua cor, bandeira
                                                     vermelha,
está prestes a deixar de te conhecer, até com
                                                  os sentidos:
tu que já te gabas de tantas glórias burguesas
                                                  e operárias,
torna-te de novo trapo, e que o mais pobre te
                                                     desfralde.
 
 
 
pier paolo pasolini
a poesia é uma mercadoria inconsumível
poemas e recensões
trad. joão coles
sr teste edições
2022




28 maio 2025

cesare pavese / eles estiveram lá

 
 
 
Lua terna e geada nos campos ao dealbar do dia
assassinam o trigo.
 
                            No plaino abandonado
aqui e ali putrefacto (é preciso tempo
para que o sol e a chuva sepultem os mortos),
era mesmo assim um prazer acordar e ver
se também a geada os cobria. A lua
inundava tudo, e alguns pensavam na manhã
em que a erva brotaria ainda mais verde.
 
Aos aldeãos que olham choram-lhes os olhos.
Este ano, quando o sol voltar, se voltar,
Só haverá folhinhas queimadas para segar.
Lua tenebrosa – só sabe comer as brumas,
e, em noites claras, as geadas são como dentada de serpente
que da verdura faz tanto estrume. Eles estrumaram
a terra; agora também o trigo ficará feito em estrume,
e não vale a pena olhar, e estará tudo ardido,
putrefacto. É uma manhã que deita abaixo um homem,
só de acordar e percorrer com os vivos
todos aqueles campos.
 
                                 Verão despontar mais tarde
algum tímido verdor na planura deserta,
sobre o túmulo do trigo, e terão de lutar
para o reduzir também a estrume pelo fogo.
Porque o sol e a chuva protegem só as ervas daninhas
e a geada, depois de queimar o trigo, não volta mais.
 
 
 
cesare pavese
antepassados
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997




 

27 maio 2025

fiama hasse pais brandão / do muro

 
 
 
Este muro avança com a estrada,
caminha para o cume e para o vale.
Se eu parasse junto dele, dir-me-ia:
aceito e recuso o movimento,
vou e não vou por vários horizontes,
sou e não sou infindamente.
 
 
 
fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002




26 maio 2025

josé agostinho baptista / encontro

 



 

 
está sentado
ligeiramente inclinado para sul
e o olhar detém-se ao alto        à direita
nas amarelas planícies de van gogh       pintor
que muito o impressionara na sua agitada juventude.
 
continua sentado
ligeiramente inclinado para sul
adormecido nos pomares abundantes nas chuvas que
desde o outono passado humedecem a ilha
o rosto calmo
de uma serenidade permeável e consentida
e dorme ainda.
 
 
 
josé agostinho baptista
biografia
assírio & alvim
2000
 



25 maio 2025

alexandre o'neill / amigos pensados: manuel

 
 
 
Manuel sai de amador às quatro para a pesca,
passa-me à porta, faz com a tosse o ponto e vírgula,
escarra como se fosse no país.
 
Com duzentos anzóis há quase sempre um peixe,
que nós conversamos quando, regressado,
Manuel abre a oficina e recomeça a mesa
que talvez acabe para mim.
 
 
 
alexandre o´neill
feira cabisbaixa 1965
poesias completas
assírio & alvim
2000
 




24 maio 2025

fernando assis pacheco / cuidar dos vivos

 
 
 
Como as ordens de Sebastião José
de Carvalho e Melo no terramoto
«cuidar dos vivos, enterrar os mortos»,
digo deste amor que tive
pior que terra sacudindo-se,
 
em que morri, matei, enchi a noite
de gemidos agudos sob as pedras
(onde era a rua, gente, Alfama, pombos),
Eugénio dos Santos para riscar Lisboa.
 
Porque é preciso agora cuidar dos vivos,
pôr os mortos no seu lugar:
que não tomem o lugar dos vivos.
Abrir as janelas ao sol de Maio,
beber o sol, beber Maio e a vida.
 
Moveu-se a terra, caíram casas, largou-se
o rio Teo por Lisboa dentro.
Ó amor sepultei-te, quero um amor
mais firme do que a terra, mais veloz que o vento
uma cidade nova nos meus olhos.
 
 
 
fernando assis pacheco
cuidar dos vivos (1963)
a musa irregular
tinta-da-china
2019




 

23 maio 2025

fernando luís sampaio / mínimo de existência



 
I
 
Chega a primavera com as folhas
Desavindas, o céu desatrelado invade
Trincheiras e monturos, aqui tu não vens,
Fechas os olhos para impedir
O peso do horizonte, o odor
Dos corpos que já não cantam,
Das mãos que pacíficas ainda
Trazem um pequeno lume, mas tu
Não vês, são pedaços reluzentes,
Montículos de mica sem boca e rosto.
Quando tudo terminar, mas nada termina
De verdade, sob
O silêncio destas ruas ficarão
Os nossos sonhos – e não voltes a falar
Do mar, nem das nuvens harmoniosas,
Porque a morte não é um vago vocábulo.
 
 
II
 
O teu corpo assim-sim
É uma galáxia compacta, sem saída
Ou entrada, uma espécie
De paisagem do que ficou,
Do que vai ficando
Do clamor das matinas.
És inteiro em partes iguais,
Como quem parte e reparte
E perde a melhor parte, e remendas
O erro com outro erro,
O teu mínimo de existência.
 
 
III
 
O que resta dos dias pardos
Vem bater à tua porta,
Qual mão espectral do destino.
A copiosa escuridão mete-se
A caminho, importuna a clareza do verso.
 
Sob o detrito da língua
Faísca o fio da espada.
 
 
IV
 
Um coração fechado só abre feridas.
Afinal do que falas?
O que dizes p’lo que fica
Por dizer?
Éramos muito jovens e a vida
Ainda nos desejava
Com muitas madrugadas e
A floração do desejo nas crinas
Marítimas – uma constelação inteira
A colapsar sobre nós.
Nenhuma memória é residência fiável.
Afinal, do que falas então?
 
 
 
fernando luís sampaio
nervo/24
colectivo de poesia
maio/agosto 2025
 



 

22 maio 2025

victor oliveira mateus / monólogo do estrangeiro

 
 
 
de milagres nada sei
nunca vi pão transformando-se em rosas
nunca ouvi vozes no alto da montanha
nem anjos à minha volta
tocando cítara
 
de milagres sei apenas o que li
em monges profetas santos
mas tudo me parecia exterior
longínquo mesmo
 
de milagres sei
no entanto
esta hipótese de ter podido ser nada
mas afinal todos os dias abrir os olhos
 
abrir os olhos e ver
árvores rios pessoas
enfim
este milagre imenso
que diariamente vou vivendo
o melhor que consigo
e sei
 
 
 
victor oliveira mateus
uma casa no outro lado do mundo
labirinto
2021




21 maio 2025

maria f. roldão / imunidade




 

 
Salto aquela parte em que é
preciso lavar as mãos antes
 
do acto. Entro directamente
na parte das bactérias em
 
que o sujo é belo e a vida
não admite lavagens.
 
 
 
maria f. roldão
a cadeira de mogno
edição do autor
2025
 




 

20 maio 2025

tiago araújo / as maçãs prateadas da lua

 
 
 
os homens fumam cigarros consumidos. inteiros na dupla brisa alveolar. e as mulheres cantam por uma. chuva prateada de mercúrio. que multiplique os rostos. espelhados na gordura das gotas.
 
à luz laranja das garrafas de cerveja. as mãos guardam um mistério mais profundo. actuam lentas sobre as mesas. à luz que atravessa a roupa estendida os rostos. são mais suaves. escondem um segredo: a memória do sol; o esquecimento de serem maçãs prateadas da lua.
 
 
 
tiago araújo
fórmulas
quasi
2004




19 maio 2025

izidro alves / estratégia de guerra

 
 
 
Não tem importância
A camisa ensanguentada
Estendida no arame farpado
Mas tem.
 
 
 
izidro alves
cédula do mundo
labirinto
2025





18 maio 2025

antónio franco alexandre / dos jogos de inverno

 
 
 
4
 
por um pequeno buraco, como é costume, saio à superfície anónima da neve
um campo todo em si aberto um tanto à tua semelhança Tu que
não começas nem acabas Talvez um dia deixes de lado o mundo para passar
                                                                       [a outra coisa E nós
enquanto se faz tarde subimos as colinas num feérico assento
só para sentir a boa indiferença do vento
e as árvores que se afastam como arrastadas para outra noite
Tu que abriste os buracos do corpo E assim ficámos
surpresos por um rastro de gente na relva
 
ainda não é esta a devida maneira de dizer as verdadeiras coisas falsas Por exemplo
os nomes vários da luz do fim do dia
nós os mais velhos podemos exclamar acesos num entusiasmo e misturar
o passado com o futuro que só existe levemente ao lado
e adivinhar no silêncio dos barcos o disfarce do jovem herói
e bater com a sandália nas portas em sinal de grande impaciência
ainda assim continuaremos a esvaziar o poço com a canga nos ombros
senhores deste pequeno inferno de trazer pelo mundo
 
por cima o céu por mais que digam continua fixo excepto quando
na larga noite as estrelas se separam
lançadas pela pista lisa só as ouvimos cintilar
incoerentes
 
 
 
antónio franco alexandre
dos jogos de inverno
poemas
assírio & alvim
1996
 


17 maio 2025

herberto helder / fragmento do cairo

 
 
 
Quando eu a cinjo e ela me abre os braços,
sou como um homem que regressa da Arábia,
impregnado de perfumes.
 
                                               *
 
Desço o rio numa barca,
ao ritmo dos remadores.
Com um feixe de canas ao ombro,
vou para Mênfis,
e direi a Ptah, senhor da verdade:
«Dá-me esta noite a minha amada.»
Este deus é como um rio de vinho,
com seus maciços de canas.
E a deusa Sekmet é como se fosse a sua moita de flores.
E a deusa Earit, seu lótus em botão.
E o seu lótus aberto, o deus Nefertum.
- E a minha amada será feliz.
 
Levanta-se a aurora através da sua beleza.
Mênfis é um cesto de tomates
posto em frente do deus de rosto puro.
 
                                               *
 
Bom é mergulhar, bom,
ó deus meu amigo,
é banhar-me diante de ti.
Adivinhas-me, quando se molha
minha túnica de fino linho real.
E juntos entramos nas águas,
e à tua frente eu saio das águas,
agarrando entre os dedos
um estupendo peixe encarnado.
– Olha para mim.
 
                                               *
 
Tanto se alvoroça meu coração, de puro amor,
que metade da minha cabeleira se desfaz,
quando corro ao teu encontro.
 
 
Para que me vejas sempre igual e bela
diante de ti,
eu componho os meus cabelos.
 
 
 
herberto helder
poesia toda
o bebedor nocturno (versões)
poemas do antigo egipto
assírio & alvim
1996





16 maio 2025

nuno júdice / preparativos de viagem

 
 
 
Ao fazer a mala, tenho de pensar em tudo o que lá
vou meter para não me esquecer de nada. Vou ao
dicionário e tiro as palavras que me servirão
de passaporte: o equador, uma linha
de horizonte, a altitude e a latitude,
um lugar de passageiro insistente. Dizem-me
que não preciso de mais nada; mas continuo
a encher a mala. Um pôr-do-sol para que
a noite não caia tão depressa, o toque dos teus
cabelos para que a minha mão os não esqueça,
e aquele pássaro num jardim que nasceu
nas traseiras da casa, e canta sem saber
porquê. E outras coisas que poderiam
parecer inúteis, mas de que vou precisar: uma frase
indecisa a meio da noite, a constelação
dos teus olhos quando os abres, e algumas
folhas de papel onde irei escrever o que a tua ausência
me vem ditar. E se me disserem que tenho
excesso de peso, deixarei tudo isto em terra,
 e ficarei só com a tua imagem, a estrela
de um sorriso triste, e o eco melancólico
de um adeus.



nuno júdice
50 anos de poesia
antologia pessoal (1972-2022)
dom quixote
2024





 

15 maio 2025

gastão cruz / o tempo

 
 
 
Vivi onde as estrelas enegrecem
na luz intermitente
 
Intervalos longínquos
ocultaram do meu olhar o tempo
 
Desisto dele
um cadáver em chamas me vence
 
 
 
gastão cruz
as pedras negras
os poemas (1960-2006)
assírio & alvim
2009




14 maio 2025

pedro tamen / num outro mar que desses morreria

 
 
 
Num outro mar que desses morreria
e não invejo, pois, a só migalha
que a mão que tens mais leve certo dia
a outros pelo vento cega e espalha.
 
A mim, amor, só cabe, qual convém
para o centro da terra, teu miolo;
e, mais, do que isso, a tua chaga-mãe,
a perfeita descida do teu colo,
 
o lado fora, e nele o imo expresso
nos acidentes líricos do leito
em que, de ter-te, só me tenho e esqueço.
 
Em nada tenho tudo, dito e feito,
e nisso tens a estrela que mereço
brilhando perto, ao fundo do teu peito.
 
 
 
pedro tamen
escrito de memória
os quarenta e dois sonetos (1973)
poesia 1956/1991
círculo de leitores
1995




 

13 maio 2025

antónio osório / e súbito na rua desfilaram

 
 
 
E súbito na rua desfilaram
os fatigados elefantes
e símios, bobos de bobos, anões
falsamente ledos, a trapezista
que me deu vontade de chorar,
aqueles seres, os palhaços, que traziam
o admirável grotesco dos homens,
os cavalos, brancos, já por sua idade
e a jaula viajante dos leões,
estendidos, expectantes como sáurios.
E por uma contorcionista,
que torturava o corpo,
apaixonei-me: enredada em mim,
como serpente, estava a sua alma.
 
 
 
antónio osório
a ignorância da morte
ponte velha
editorial presença
1982
 




12 maio 2025

fernando guerreiro / a fúria da razão

 
 
 
Diz-se que os cegos não conhecem a luz, talvez porque
para a razão o sentimento lhes reservou outros caminhos.
O melhor, contudo, é não acreditarmos nestas histórias.
É vê-los cair, arrastando na queda os instrumentos
de que se servem para nos entreter os sentidos.
também não se atrevem a atravessar florestas
e quando a chuva cai, choram convulsivamente.
Ratos devoram-lhes o cérebro e arrastam segredos
para o cemitério. Para que quereriam a luz?
mesmo quietos é difícil não perceber a violência.
Apenas uma fúria incomunicável que os legitima
por dentro. É sem palavras – ou imagens – o pensamento.
Quando juntos, abandonam as famílias – e riem-se
Se, à sua passagem, alguém lhes pede música.
 
 
 
fernando guerreiro
poesia digital
7 poetas dos anos 80
campo das letras
2002
 



11 maio 2025

amadeu baptista / o centro do mundo

 
 
13
 
A asa ferida da pequena perdiz
concilia-te agora com o poder do sol.
 
Sobre o centro da luz o curativo vinga
o absoluto abandono em que te encontrei.
 
 
 
amadeu baptista
arte do regresso
campo das letras
1999






10 maio 2025

jorge melícias / são belos os instrumentos da minha morte

 



 
 
São belos os instrumentos da minha morte
nas suas mãos, a destreza da ira
sobre os trépanos, a forma
como o grito se abre de cânulas.
 
 
 
jorge melícias
incûbus
quasi
2004
 



09 maio 2025

joão pedro grabato dias / a arca

 
 
 
CCLXXVI
 
Não fujas do teu medo procurando
a tua audácia. Isto é só vestir
com outra roupa o mesmo espanta pássaros.
Se dás um nome ao medo, dás-lhe sombras
onde melhor te esconde a natureza
verdadeira, a que importa. Vais mais fundo
não à sua raiz, mas às carências
que elas são a raiz, mas às carências
que elas são a raiz do conflito.
Aparências opostas do real,
Teu medo ou tua audácia nada são.
 
 
 
joão pedro grabato dias
odes didácticas
a arca, ode didáctica na primeira pessoa, 1971
tinta da china
2021
 



08 maio 2025

adília lopes / irmã barata, irmã batata

 
 
 
Fez-se do sexo um bicho de sete cabeças. Parece que mais vale morrer violada do que virgem, quando isso é um grande disparate. A castidade é um valor, infelizmente confunde-se castidade com ausência de relações sexuais e de masturbação. O sexo não é porco nem deixa de ser. Nada na vida dá a garantia de ser limpo nu liso inteiro. Nem aquele quartinho em que está o eu, um quartinho que seja seu, porque mesmo o eu é o outro. Às vezes tenho medo de me despir na rua e de falar muito alto. Chamo a isto o sentimento da irrealidade.
 
 
 
adilia lopes
irmã barata, irmã batata (2000)
caras  baratas
antologia
relógio d´água
2004




07 maio 2025

adam zagajewski / a europa adormece

 
 
 
                                    para Gosia
 
 
A Europa adormece; em Lisboa
franzem as sobrancelhas velhos xadrezistas.
 
No céu de Cracóvia paira um nevoeiro cinzento
que apaga os contornos das veneráveis velas.
 
O Mediterrâneo embala-se suavemente
e daqui a pouco vai-se transformar numa canção de embalar.
 
Quando a Europa finalmente cair num sono profundo,
a América há-de velar
 
o pobre, mudo mundo
desconfiadamente, como uma irmã mais nova.
 
 
 
adam zagajewski
sombras de sombras
trad. marco bruno
tinta-da-china
2017




06 maio 2025

a. m. pires cabral / poeira

 
 
 
A poeira que a noite levantou
enquanto ardia
ainda anda no ar e é seca como
uma pistola disposta a disparar.
 
E tarde assentará
essa poeira.
 
Só espero que quando repousar
sobre o tampo da mesa
seja tão espessa que eu possa escrever nela
à ponta do dedo
alguns madrigais.
 
Ou então heresias, se estiver
para aí virado.
 
 
 
a.  m. pires cabral
a noite em que a noite ardeu
cotovia
2015




05 maio 2025

a. c. swinburne / um camafeu

 
 
 
Havia uma imagem esculpida do Desejo
     Pintada com sangue vermelho num campo de ouro,
     Passando entre os jovens e os velhos,
E a seu lado a Dor cujo corpo brilhava como o fogo,
E o Prazer com mãos descarnadas agarrando o seu salário.
     Com a mão esquerda, os dedos crispados e frios,
     Segurava-o a insaciável Saciedade,
Caminhando com pés descalços que tocavam a lama.
Os sentidos e as dores e os pecados,
     E os estranhos amores que sugam os seios do Ódio
Até que os lábios e os dentes mordam a sua profunda ferida,
Iam também, como animais batendo as asas ou as suas
                                                                barbatanas.
     A Morte mantinha-se afastada atrás de uma grade toda aberta,
Em cuja fechadura estava escrito: Talvez.
 
 
 
a. c. swinburne
poemas
tradução de maria lourdes guimarães
relógio d’ água
2006