09 outubro 2025

gastão cruz / a ria

  
 
Sete horas da manhã, estampidos secos do outro lado da ria, sons de sempre, caçadores nos pinhais, bater da água, motores de aviões crescendo na manhã até esmaga-la. Somente o som dos tiros depois, o som da água é necessário quase adivinhá-lo. Há um passado, como um poço, roldana e balde. Bate o balde na água várias vezes até entrar.
 
 
gastão cruz
repercussão
os poemas (1960-2006)
assírio & alvim
2009




08 outubro 2025

artur do cruzeiro seixas / ao longo dos muros

 



 

 
Ao longo dos muros
a cal confirmava
que desceria uma ave
ao mais profundo de ti
e daí
incendiada no teu sangue
de todas as cores
a todas as palavras
enfim
daria asas.
 
Áfricas, 58
 
 
cruzeiro seixas
viagem sem regresso
tiragem limitada
2001
 



07 outubro 2025

antonio gamoneda / pássaros

  
 
Pássaros. Atravessam chuvas e países no erro dos
ímanes e dos ventos, pássaros que voavam entre a ira
e a luz.
 
Voltam incompreensíveis sob leis de vertigem e de
esquecimento.
 
 
 
antonio gamoneda
livro do frio
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999
 



06 outubro 2025

alberto pimenta / balada de gaudência

 




 
paciência
gaudência
nem sempre
o céu
tem clemência
e se a
violência
da cheia
levou a aldeia
lembra-te
de pompeia
e escuta
a melopeia
das ondas
batendo
na areia
 
e de futuro
seja escuro
ou haja
lua-cheia
vai com o
nascituro
para o monturo
celebrar
a última ceia
e cantar
com a sereia:
 


  
alberto pimenta
obra quase incompleta
fenda
1990





05 outubro 2025

fernando echevarría / o outono

  
 
O outono é, sobretudo, esse limite
que, esquecido do corpo dos seus frutos,
e até da luz, retém somente o timbre
que do palato deduziu o uso
da inteligência. A fim de
ficar um travo a reformar o luto
e a analisá-lo. Para instituir-se
luz dessa luz. ou sapiência, culto
de estações a mover-se. Nunca tristes,
mas transparências a irisar-se ao fundo.
O outono aí, declina sempre. Insiste
na inteligência desse timbre arguto.
 
 
 
fernando echevarría 
geórgicas
afrontamento
1998





04 outubro 2025

gonçalo m. tavares / esconderijo

  
 
Do teu esconderijo vê, e no teu esconderijo constrói,
sai dele apenas quando puderes dar algo aos outros.
Antes, é cedo demais, muito depois, é excessivo egoísmo.
Mas mesmo esta convicção não ajuda, não sei
Como viver, não sei o que é mais moral, mais ético,
Onde intervir, para onde olhar, ouvir o quê?
Há tantas coisas que falam ao mesmo tempo.
 
 
 
gonçalo m. tavares
1 poesia
relógio d´água
2004
 



03 outubro 2025

pedro tamen / os dias

  
1
 
Não há mais céu
se ele não cai
humilde acaso
no seu lugar.
Não há melhor
nem som mais puro
que o natural
dos nossos olhos.
Não vale a pena
fazer brinquedos
se as nossas mãos
são de criança.
 
 
 
pedro tamen
os dias
tábua das matérias
poesia 1956/1991
círculo de leitores
1995






02 outubro 2025

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

  
 
X GREEN GOD
 
Trazia consigo a graça
das fontes quando anoitece.
Era o corpo como um rio
em sereno desafio
com as margens quando desce.
 
Andava como quem passa
sem ter tempo de parar.
Ervas nasciam dos passos
cresciam troncos dos braços
quando os erguia no ar.
 
Sorria como quem dança.
E desfolhava ao dançar
o corpo, que lhe tremia
num ritmo que ele sabia
que os deuses devem usar.
 
E seguia o seu caminho,
porque era um deus que passava.
Alheio a tudo o que via,
enleado na melodia
duma flauta que tocava.



eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000
 



01 outubro 2025

antónio franco alexandre / dos jogos de inverno

  
 
5
 
eu a morrer debaixo do sol e eles sentados
apreciando coxas e mármores pendentes
no verão seco ao fim de nenhuma tarde, eu
desalinhavado pelo vento, crescido no meio das chamas,
correndo pelas ruas paralelas e sórdidas da antiguidade clássica,
eu também eu de guia e asno e cabriola na duna encardida de sol
e a agreste sabedoria das mãos cortadas rente eu e eles
apreçando o remate
 
 
dormir dormidos nas esteiras, a corda
presa nos dentes, que surpresa quando me tomaste,
pela primeira vez era uma noite de algum vento e das
esquias chaminés subia a chuva como uma nuvem
caída na memória e para nunca mais
então acaricio-te as orelhas distraidamente como quem
está duvidoso de comprar e sabe que não deve
apressar o remate
 
 
eu a morrer como se fosse coisa nenhuma cheia de pressa
esmorecida pelo sol eu e eles sentados como se fosse
uma pressa vazia de coisas uma opressão às portas
do grande mercado demasiadamente silencioso e atento
acaricio-te as mãos bem cortadas, o reflexo do
melhor mármore antigo,
eu a morrer como se fosse o menor preço e eles
sentados com os olhos na cara a boiar!
 
 
 
antónio franco alexandre
dos jogos de inverno
poemas
assírio & alvim
1996





 

30 setembro 2025

nuno júdice / setembro

  
A poesia dá-se bem com este mês,
cuja medida se assemelha à do verso – dias
partidos ao meio, deixando a alma indecisa
numa evocação de gastos sentimentos. Mas é
no campo, ao poente, saboreando o cheiro doce
dos frutos que apodrecem na terra, como algas
mortas, que uma voz insistente chama – poe-
sia? Quem, por detrás do seu rosto sonoro e
abstracto? Memória que a noite depressa apaga…
 
 
 
nuno júdice
50 anos de poesia
antologia pessoal (1972-2022)
dom quixote
2024




 

29 setembro 2025

albano martins / solfejo

  

De algumas pedras também às vezes necessitas. Boleadas, como os seixos, são elas que dão consistência à arquitectura do poema. Porque nelas, como no solfejo das algas, resiste ainda, ou é somente o seu resíduo, a música das águas.
 
 
 
albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999




 

28 setembro 2025

al berto / doze moradas de silêncio

  
 
6
 
hoje é o sexto dia,
sexta morada de silêncio
 
anotar os nomes das flores e
suas significações emblemáticas
     absintio / amargura, tristeza
     asfódelo / coração abandonado
     cinerária / dor de coração
     glicínia / ternura
     junquilho / melancolia
     silindra / recordações
anotar os nomes das areias e das argilas mais profundas
os nomes dos insectos e dos minerais
as marcas discretas das coisas cortantes
e recopiar algumas palavras de Amers:
 
          … Tol que j'ai vu dormir dans ma tièdeur de
          femme, comme un nomade roulé dans son étroite
          laine, qu'il te souvienne, ô mon amant, de toutes
          chambres ouvertes sur la mer où nous avons aimé.
 
manter a imobilidade absoluta dos rochedos
recear as falésias onde a lua abriu um sulco
tactear teu rosto disperso pelos ventos
recolher a dor na penumbra do entardecer
 
anunciar a noite com a ponta dum punhal de veludo
espiar o frémito súbito das estrelas… reler tudo
mantendo o corpo em surdina
 
 
al berto
doze moradas de silêncio 1978/1979
o medo
assírio & alvim
1997




 

27 setembro 2025

amadeu baptista / prisão


 

Recebo a mão sobre o ombro que aqui me vem
prender como a mão de um amigo.
Seque a figueira e o fruto prometido,
estaque o vento para todo o sempre,
não seja nunca mais o mar o mar.
Recebo a mão sobre o ombro que aqui me vem
Prender como a mão de um amigo.
 
 
 
amadeu baptista
paixão 2003
caudal de relâmpagos
antologia pessoal 1982-2017
edições esgotadas
2017



 

26 setembro 2025

anna akhmatova / para a poesia

  
 
Tu guiaste-nos através do inexplorado
como uma estrela cadente na escuridão.
Foste a amargura e a mentira.
Nunca o consolo.

 
*
 
A fama nadou como um cisne
através da neblina dourada
e tu, meu amor, foste sempre
o meu desespero.
 
 
 
anna akhmatova
é por isso que a alegria é mais alta
poemas russos dos séculos vinte e vinte um
versões de luís filipe parrado
contracapa
2022




 

25 setembro 2025

leonard cohen / não há tempo para mudar

  
 
Não há tempo para mudar
O olhar para trás
É demasiado tarde
Meu doce livro
 
Demasiado tarde para
Que os homens se envergonhem
Daquilo que eles fazem
Com chamas nuas
 
Demasiado tarde para
Cair sobre a minha espada
Nem sequer tenho espada
Estamos em 2005
 
Como ouso preocupar-me
Com o que tenho a fazer
Ó doce livro
Vens demasiado tarde
 
Não percebeste nada
Da poesia
É toda sobre eles
Não sobre mim
 
 
 
leonard cohen
a chama
poemas
tradução de inês dias
relógio d´agua
2019




24 setembro 2025

wislawa szymborska / os dois macacos de brueghel

  
 
Sonhei assim com o meu exame do fim do liceu:
amarrados por correntes, dois macacos estão sentados à janela,
voa o céu, banha-se o mar
para além dela.
 
É a oral de história humana.
Eu gaguejo, vou-me atolando.
 
Um macaco fixo em mim, irónico vai escutando,
o outro quase dormita –
e no silêncio que se segue à questão posta,
este sussurra-me em segredo uma resposta,
no som baixo da sua trela tilintando.
 
 
 
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998
 



23 setembro 2025

primo levi / as estrelas negras

  
 
Não mais um canto de amor ou de guerra.
 
 
A ordem de onde o cosmos trazia o nome desfez-se;
As legiões celestes são um emaranhado de monstros,
O universo assedia-nos cego, violento e estranho.
O céu está cheio de horríveis sóis mortos,
Sedimentos densíssimos de átomos triturados.
Deles nada emana, senão uma gravidade desesperada,
Nem energia, nem mensagens, nem partículas, nem luz;
A própria luz deixa-se cair, quebrada pelo seu próprio peso,
E todos nós, semente humana, vivemos e morremos para nada,
E os céus revolvem-se perpetuamente em vão.
 
30 de Novembro, 1974
 
 
 
primo levi
a uma hora incerta
trad. rui miguel ribeiro
edições do saguão
2024
 



22 setembro 2025

zbigniew herbert / fragmento de um vaso grego

  

Em primeiro plano vê-se
o corpo formoso de um jovem
 
a barba recai-lhe sobre o peito
um joelho dobrado
os braços como ramos secos
 
fechou os olhos
até a Eros renuncia
 
cujos dedos mergulhados no ar
cabelos soltos
e contornos da túnica
formam três círculos de tristeza
 
ele fechou os olhos
renuncia à armadura de bronze
 
ao belo elmo
adornado com sangue e crista negra
ao escudo quebrado
à lança
 
fechou os olhos
renuncia ao mundo
 
as folhas pairam no ar silente
um ramo treme com a sombra de pássaros em debandada
e somente um grilo escondido
nos cabelos ainda vivos de Mémnon
canta com convicção
o elogio da vida
 
 
 
zbigniew herbert 
poesia quase toda
tradução de teresa fernandes swiatkiewicz
cavalo de ferro
2024
 



21 setembro 2025

joão rebocho / eu pensei



 

 
eu pensei,
no meu livre arbítrio,
trazer-te a este livro
em versos abreviados;
fazer-te o pequeno almoço
escolher música para ti
bravio, a desnivelar:
vai embora liberdade de escolha,
um revólver para eu
aceitar a tua opção
ou dar um tiro no ouvido?
 
 
 
joão rebocho
obrigado é sozinho
edições fantasma
2025
 


 

20 setembro 2025

catarina costa / viagem à tua terra

 


 

 
Procurei-te no cemitério local pelo teu nome e foto
e não te encontrei –
 
a tua ausência era sinal de que ainda estavas vivo
 
não precisei de te ver
para voltar em paz
 
acabara de visitar uma terra misteriosa
com a sua necrópole histórica
e intacta
 
 
 
catarina costa
nervo/25 setembro / dezembro 2025
colectivo de poesia
2025
 



19 setembro 2025

paul auster / meridiano

  
 
Pelo verão afora,
junto ao declive de luz erodida
das nossas mãos, escuras parteiras de dunas:
as tuas pedras
ruindo de volta à vida
à tua volta.
 
Atrás da minha translúcida pálpebra de ébano,
uma estrela prematura,
expurgada de um inferno de bolbos,
ergue-te, inocente,
rumo à manhã, e povoa a tua sombra
de nomes.
 
Rimada de noite. Funda de arado.
Próxima.
 
 
 
paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002
 



18 setembro 2025

paul bowles / ed djouf

  
Chegamos
Em nove etapas, de sete dias cada uma.
Amamo-nos a pontapés.
Morremos de insolação.
Pó de ouro, melodia de cinzas
Confiai-me um dia de silêncio.
Vendi-lhe escorpiões ao longo de trinta e oito milhas.
No desenho animado do horizonte
Irrompem novamente as loucas cristas.
Aqui sente-se a gasolina, o progresso, a agonia.
Em nove etapas, de oito dias cada uma
Chegamos ao silêncio.
 
                                                    1934
 
 
paul bowles
poemas
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
2008





 

17 setembro 2025

john updike / televisão

  
 
Ligo-a como se fosse uma torneira,
nem frio nem quente, só tépido infotenimento,
e dela jorram as provas cintilantes
de conflitos, misérias, concupiscência,
desatrelados pouco a pouco, em remissões
de publicidade ansiosa que antecipa
para nosso bem a melhor vida dependente
de uma compra, de alguma aquisição indispensável.
 
Um carro lustroso dá curvas na chuva murmurante,
uma praia de alvura óssea acolhe peles bronzeadas,
um toalhete acalma as rugas de uma bela enrugada,
um unguento consola a dor sedentária,
dentes falsos resplandecem, a cerveja provoca alegria,
e cabelos pintados arremessam a cor pelo ecrã:
erupções de luz bebidas pelo meu cérebro,
que depressa se cansa, até ficar sequioso outra vez.
 
 
 
john updike
ponto último e outros poemas
trad. ana luísa amaral
civilização editora
2009




16 setembro 2025

paul celan / na selva do sangue

  
 
NA SELVA DO SANGUE, aí
está a despedida, de dedos
finos, em
cada ponta, em forma de
coração, uma
lente, aí
os tigres caçam
o dia.
 
 
 
paul celan
a morte é uma flor
trad. de joão barrento
relógio d´água
2022





15 setembro 2025

cesare pavese / as gerações não envelhecem

  
 
19 de Abril 1940
 
As gerações não envelhecem. Todos os jovens, de qualquer época e civilização, têm as mesmas possibilidades de sempre.
O Império Romano não caiu por causa da decadência da raça (tanto assim é que as gerações contemporâneas, que se sucederam às que tinham visto cair o edifício político, construíram um outro, espiritual – a Igreja Católica), mas pela mudança de condições económicas e sociais, que deslocaram as forças (anquilose económica, descentralização provincial, invasões bárbaras, etc.).
 
 
 
cesare pavese
o ofício de viver - diário (1935-1950)
trad. alfredo amorim
relógio d´água
2004




 

14 setembro 2025

salvador dali /diário de um génio



 
12 de agosto, 1953
 
 
À noite grande largada de balões. Um deles tem a forma de um camponês catalão. Quase que se incendeia e em seguida perde-se no infinito. Quando já está do tamanho de uma pulga, alguns dizem: «Ainda o vejo!», outros: «Perdeu-se!». Alguém julga sempre que pode vê-lo ainda. Isso faz-me pensar na dialéctica de Hegel que é tristíssima porque nela tudo se perde no infinito: cada dia teremos mais necessidade do espaço finito.
 
Vemos cair do céu uma estrela verde-veronese, a maior que já vi e comparo-a a Gala que foi para mim a mais bem visível estrela cadente, a mais bem delimitada, a mais perfeita.
 
 
 
salvador dali
diário de um génio
tradução de josé luís luna
ulisseia
1965
 




 

13 setembro 2025

virgínia woolf / voltamos de roma

  
 
(1926)
Domingo, 1 de Maio
 
 
Voltámos de Roma na quinta-feira à noite; daquela outra vida privada que agora tenciono ter para sempre. Há toda uma existência em Itália: à parte desta. Não se é ninguém em Itália, não se tem um nome, nem vocação, nem passado. E, depois, não há ali apenas a beleza, mas um relacionamento diferente. No conjunto, creio que nunca desfrutei um mês tanto. Que capacidade de desfrutar eu tenho! Gostei de tudo. Quem me dera não ser tão ignorante do italiano, da arte, da literatura, etc. Mas não me posso alargar agora sobre isto, ou penetrar na grande massa de sentimentos que se formou em mim. Quando regressámos, às 11 e meia, encontrámos a Nelly na cama, com uma misteriosa enfermidade dos rins. Isto foi um choque, o café foi um choque, tudo foi um choque. E depois lembrei-me de que o meu livro está prestes a sair. As pessoas dirão que sou irreverente – as pessoas dirão mil coisas. Mas creio, honestamente, que me importo muito pouco desta vez – mesmo em ralação à opinião dos meus amigos. Não tenho a certeza se é bom. Fiquei desiludida quando o li todo a primeira vez. Mais tarde, gostei. De qualquer modo, é o melhor que sei fazer. Mas será bom ler as minhas coisas quando estão impressas, criticamente? É encorajador que, apesar da obscuridade, afectação, etc., as minhas vendas cresçam constantemente. Já vendemos 1220 exemplares antes da publicação, e creio que atingirá os 1500, o que, para uma escritora como eu, não é mau. Mas, para mostrar que sou genuína, dou por mim a pensar noutras cisas, absorvida e esquecendo que sairá na quinta-feira. O Leonard nunca pensa no seu livro. a Vita volta na sexta-feira. Está agradável, frio, limpo, jantamos fora, fuma-se um charuto.
 
 
 
virgínia woolf
diários
trad. jorge vaz de carvalho
relógio d´água
2018





 

12 setembro 2025

joão miguel aragão / planos para a noite

  
 
Compor, decompor madrigais
em madrugadas a ferro e fogo.
Demorar o olhar no ser amado,
armado de amor até aos dentes.
 
 
 
joão miguel aragão
pacto
poética edições
2025



11 setembro 2025

miguel oliva teles / por todo o lado

  
 
os frutos
descem da árvore
as raízes abrem
e o amor
entorna
 
por todo
o lado.
 
 
 
miguel oliva teles
errando
editora urutau
2021




10 setembro 2025

pedro de queirós tavares / fulminantes (em vilar do paraíso)

  
 
Na minha rua brincávamos à roleta-russa
com pistolas de fulminantes
Não era carnaval nem dia das bruxas
em Vilar do Paraíso tímpanos para quê
 
 
pedro de queirós tavares
se tens fósforos
fresca / poetria
2023





09 setembro 2025

miguel bonneville / livro do daniel

  
 
LIV.
 
poder dizer:
aquilo que me dás ao amar-me
é a possibilidade de desaparecer –
 
estou a redescobrir o amor através das palavras.
 
as outras uniões
terão de vir depois.
 
 
 
miguel bonneville
livro do daniel e outros textos
editora urutau
2024




 

08 setembro 2025

izidro alves / metanoia

  
Se fosse hoje
Tinha tirado um curso superior
Talvez de latim e grego
Para falar com os deuses
E nunca nunca nunca
Esta maneira tosca de fazer versos
Este jeito de arquear as mãos
De alimentar os pombos
Nos jardins públicos
Com flores amarelas nos passeios.
 
 
 
izidro alves
cédula do mundo
labirinto
2025




07 setembro 2025

filipe marinheiro / porque nos prendemos a um lugar seguro?




 

 
porque nos prendemos a um lugar seguro?
se o mais importante é a calma, a pureza, a unidade e o modo
como as árvores de mar se enraízam no solo.
– luminoso solo em potência.
 
 
 
filipe marinheiro
a morte do amor
cordel d’ prata
2025
 


 

06 setembro 2025

joão rebocho / a morte

  
 
a morte
caminha ao nosso lado,
carregamo-la às costas,
a vida toda
alimentada na boca,
debruçados no poço;
a de quem nos interessa e amamos,
 
sempre a morte,
do profundo sono
ao cume do Everest,
e também pesa o
medo dela,
trinta vezes mais,
e não peses que é só tédio
repetido
 
 
 
joão rebocho
altas temperaturas
fernando dos santos
2024
 


05 setembro 2025

herberto helder / aberto por uma bala

 



 

 

Aberto por uma bala
de fora para dentro. Como um olhar de Deus,
ou da paisagem,
até à raiz do nervo de que vivo todo.
Aberto, descoberto.
Ou fechado inteiro para sempre.
E ao furo imaginário queimado
reflui o sangue do mundo.
O nó mais duro, o puro nó da carne
– o centro.
Furioso fulcro do espírito.
É aí que penso.
Por onde falo ainda tão depressa
que ressuscito, ardido.
 
 
 
herberto helder
flash
a cura di carlo vittorio cattaneo
empira
roma
1987






04 setembro 2025

cesare pavese / paisagem VIII

  
 
As recordações começam ao cair da tarde
com o hálito do vento a erguer o rosto
e a escutar a voz do rio. A água
é a mesma, na escuridão, dos anos mortos.
 
No silêncio da escuridão eleva-se um murmúrio
onde passam vozes e risos distantes;
acompanha o rumor uma cor inútil,
de sol, margens e olhos claros.
Um Verão de vozes. Cada rosto contém
como um fruto maduro um sabor passado.
 
Cada olhar que volta conserva um gosto
a erva e a coisas impregnadas de pôr-do-sol
na praia. Conserva um hálito de mar.
como um mar nocturno é esta vaga sombra
de ânsias e arrepios, que o céu roça
e que volta ao fim de cada dia. As vozes mortas
assemelham-se à rebentação daquele mar.
 
 
 
cesare pavese
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997





 

03 setembro 2025

claudio rodríguez / sem epitáfio

  
Levanta voo entre os flocos cegos
de cada letra. Solta
uma inocência que então se grava
mesmo ao meio da alma. Deixa, deixa
tal mistério, e tal proximidade,
tal segredo que é já renascimento.
A vida pressente-se. Vai, vai. Foi
essa harmonia de pesar e graça,
tal a felicidade que é verdade
e agora alumia o teu ofício
com o seu silêncio fugidio, em som
sereno como de água ao meio-dia.
Levanta voo. Não entres
neste corpo total:
onde amanhece.
 
 
 
claudio rodríguez
sem epitáfio
trad.miguel filipe mochila
língua morta
2019





 

02 setembro 2025

joan margarit / chegas tarde ao teu tempo

  
Chegas tarde ao teu tempo. palavras duras
que escuto agora como uma derrota.
Mas já não sei de nenhum combate,
nem que tempo era o meu. É uma pena
não se ser ninguém, ter errado
o comboio, perdido as malas,
adormecido no banco, passar ao largo,
e achar-se agora sem roupa limpa,
cansado, num hotel reles de uma só
e má estrela, que deve ser a minha.
Prescindirei de tudo menos do poeta
que fica do desastre. Fingirei ver
que no fim de contas errei o século:
isto será Paris e eu Verlaine.
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020




01 setembro 2025

nizzar qabbani / sobre o amor marinho

  
 
sou o teu mar, senhora minha,
e não me perguntes da viagem
nem do tempo da partida e da chegada:
só tens de
esquecer os impulsos da terra
e obedecer às leis do mar
e entrar-me como peixe enfurecido;
racha o navio em dois pedaços
e o horizonte em dois pedaços
e a minha vida em dois pedaços
 
 
 
nizzar qabbani
um árabe é um árabe é um árabe, um árabe
breve antologia de poesia árabe
versões e traduções de joana santos e andré simões
contracapa
2022




31 agosto 2025

maria do rosário pedreira / nesse verão…

  
Nesse verão, o vento despenteou os campos e os barcos
andaram aos gritos sobre as ondas. A beleza excessiva
das crianças arrombou os espelhos; e as raparigas,
surpreendendo a intimidade dos pais, enlouqueceram
nos corredores e foram perder-se, também elas,
na volúpia dos dias. Nas árvores centenárias
 
rebentaram frutos que inflamavam a concha das mãos
e escorregavam para a boca com a pressa dos nomes
proibidos. O sol queimou as páginas do livro
interrompido na violência de um poema e revirou
os cantos do único retrato que resistira à moldura
do tempo. de noite, os rapazes deitaram-se às baías
 
atrás das estrelas; e os amantes, incomodados
com a exiguidade dos quartos, foram fazer amor
nos balneários frios da praia e acordaram nas vozes
um do outro. Já não sei o que disse e o que disseste:
 
o verão desarruma os sentimentos.
 
 
 
maria do rosário pedreira
o canto do vento nos ciprestes
gótica
2001





 

30 agosto 2025

marta cristina de araújo / hexagrama kan, depois de finisterra

  
 
TRONO SOBRE TRONO
 
 
O perigo é companhia para o soberano
que instalou seu trono sobre a dinastia
seu projecto (recto) vem do longe donde
se ameaçam o riso e o corpo o movimento
o segredo  (segrego) a fala o linguajar
do dia anterior continuadamente.
Nem todos são os súbditos, quem o conduziu
ao trabalho do quotidiano (ano) inquieto
entre o sono iniciado tarde nas manhãs?
 
Breve é o receio de (o meio) deslocar-se
da paisagem mar apreendida extensa
entre o fio a fio assíduo da janela.
O momento é pouco para olhar as tintas e a criança
acode à chamada urgente (gente) dos vizinhos
Surpreende (prende) o plano do levantamento
apropriado à sede (sede de melancolia)
no curso das leis seu código fechado
em área de confusos (usos) dos lugares.
 
Não é de desistência ainda o tempo
de há muito em sua mão a rédea de colares:
eu estou aqui segura e cúmplice
nada pretendo (entendo) além do encadeado
de anéis colhidos (escolhidos) devagar.
Talvez seja amor o medo da assistência
talvez seja amor a culpa d enão ter
o objecto (o ente) predilecto que refaz
solene esta alegoria do frágil (ágil) vidro
e nos separa (pára) à margem do poder.
 
 
 
marta cristina de araújo
os poemas da minha vida
miguel veiga
público
2004
 




29 agosto 2025

maria velho da costa / dois poemas

  
1.
Nem sei estimar das vestes sem costura
o fito e alba
ou louvar da tala dos instantes
um só vermelho.
Pelas moradas ledas e subtis
à passagem dos castos e escolhidos
                                                        sustenidos
dos lidos
nada soube
que mais que o sáurio verde não prossiga.
Nem escolhido é o signo por lavrado
entre a testa e o chão
no húmido verdor dalguma víscera.
Se casas são plantadas com perícia
e arrematados autos lautos
louvados por tão cautos
seja a lhaneza desta a palha da debulha
o verde devolvido em amarelo.
É que não sei dos nomes com firmeza
mais que o início quedo e boçal talo
nem companhia posso ou artefactos
que o langor da lagarta não assista
que não consinta e emergir dos cactos.
 
 
2.
No entretanto do tempo é que o verde resiste
o interstício manso     a prova do contínuo
que quebra o passo e mais que o acrescenta
o assegura; se a roda começou
e do metal a terra é estreita     diminui
e de redonda à recta se afeiçoa
pelo verde o sabemos     no intervalo
dum ponto a outro ponto
do recado
da boca a outra boca     da fissura
entre o nome e o feito vertical.
 
No caule o facto osso e a semente
no espaço a obra de metal e a folha crua.
 
                                    In Capital, 20.1.71



maria velho da costa
desescrita
afrontamento
1972

28 agosto 2025

maria amélia neto / o areal

  
 
Só há areia
E um céu demasiado lúcido.
A transparência intacta feriu o nosso cérebro,
Mutilou os nossos pensamentos,
Fez nascer violetas de fogo no silêncio.
Arrastados pelas torrentes de luz,
Alagamos de solidão os nossos olhos.
 
Nem silvados, nem pauis,
Nem o pulsar do álamo.
É necessário continuar,
Mas quem descobre o rumo da areia?
Escutei vozes e nem uma conhecia o caminho.
Inventei vultos para me fazerem companhia,
E todos mantiveram os olhos cerrados.
Se eram cegos, porque me sorriam?
E porque havia nos seus dedos
A sugestão da cítara?
E porque me apontou um deles
Um flamingo, um cipreste, um lago,
Que os seus olhos não viam
E que os meus tinham começado a imaginar?
 
 
 
maria amélia neto
cicuta em março (1964)
antologia da novíssima poesia portuguesa
m. alberta menéres, e. m. de mello e castro
moraes editora
1971
 



27 agosto 2025

isabel meyreles / o livro do tigre

  
 
                      XXX
 
          POST HANC DIEM
 
De mãos vazias
sem nada nas algibeiras
sem tigre no chapéu
sem pomba na manga
o poeta atravessa o palco
sobre a corda bamba das palavras
de mãos vazias
sem nada nas algibeiras
sem tigre na manga
sem pombas no chapéu
a sala está às escuras
as cadeiras vazias
os músicos partiram
o poeta está sobre a corda bamba
e as palavras foram-se como sempre.
O espectáculo terminou.
Cai o pano.
 
 
 
isabel meyreles
poesia
o livro do tigre 1976
tradução de isabel meyreles
quasi
2004




 

26 agosto 2025

ana hatherly / tipo h

  
 I O PÉ NA CABEÇA
II O INTERREGNO
 
 
I
 
e estava na praia vejo aquele
formoso rapaz correndo admirável
depois correndo como um pássaro
sobre a água asas abertas os in-
divíduos que encolhem diante de
certas pessoas querendo emitir
este deus correndo artrópode
desespera cai na água sopra
longe pé na cabeça quando regresso
cada vez mais insignifica depois
de vestido perdeu cerca de 20 cm
no seu estado de não companhia que
tem apenas conotações abjectas
e é querub
 
 
 
ana hatherly
poesia
1958-1978

moraes editores
1980




 

25 agosto 2025

ana luísa amaral / da solidão da luz

  
A casa em ruínas que vejo daqui
salta da janela, entra nesta sala,
mas não tem janelas que a façam brilhar,
as molduras rotas carregadas de ar,
as portas cobertas da hera mais pura,
as telhas brilhantes de ausência de cor,
e um buraco imenso onde o coração
devia luzir, se as ruínas não –
 
Morre devagar, como o universo,
galáxias e mares de estrelas e sóis:
política rara sem reis nem senhores,
mas tenso equilíbrio de forças sem luz.
 
Morrem devagar o tempo e os livros,
as estantes todas que habitam a sala:
pobre microcosmo do Bem e do Mal,
e do que nem isso, que é o mais vulgar.
 
Lembra-me, escarlate, só pela memória,
um livro maior de forças a sério:
o claro e o escuro de um igual terror
 
À casa em ruínas salvam-na essas asas
que vejo daqui, saltam da janela
e entram nesta sala. Não são as do anjo,
mas têm nas penas um sistema hidráulico
que as faz oscilar e rasar os ventos.
 
Olham-me, sombrias, dentro de um futuro
liso e sem ruínas – só de um chão mais puro
onde a casa houve, de janelas rasas
carregadas de ar. Só ele é comum
ao anjo e a elas, elas cheias dele,
ele, transportando e oscilando em paz.
 
Quando for sem ser? Só um limpo instante
de equalizador: ruínas e ventos,
janelas e anjo, heras e senhores
em mudas frequências, enxutos os sons?
 
E um poço vazio onde o coração
foi visto bater: partícula igual
ao pó de um cometa que um dia rompeu,
devorando o ar. E a casa em ruínas
abrandada em tempo, vogando no branco
de resplandecentes seis sílabas. Sós.
 
 
 
ana luísa amaral
vozes
dom quixote
2011




 

24 agosto 2025

inês lourenço / domingo

  
Hoje é o dia dos senhores
e dos sóis em algumas línguas. Noutras
já foi ontem ou será depois, conforme
o cansaço divino sucedeu ou
não ao sétimo dia. Vária
gente irá aos templos ou ao parque
passear o cão. É dia de
visitar o lar de idosos ou de
abastecer a nossa arca
congeladora. Os pais solteiros levam
os filhos a comer pizza e outros
putativos progenitores recuperam
as horas de sono convivialmente
líquidas. O ar das ruas
é mais leve devido à pausa de
domingo. Ao menos hoje acontece
algo de bom em nome de Deus.
 
 
inês lourenço
o segundo olhar
companhia das ilhas
2015
 

23 agosto 2025

ana paula inácio / 1 família feliz

  
Vamos para a praia e levamos:
 
– 1 baralho de cartas,
subtraindo as da electricidade e da água,
ficaremos com as de paus,
por uma questão de sobrevivência,
com 4 paus fazes uma canoa,
como no poema de 2000,
e as de espadas
que é arsenal bélico
de que não se desconfia
(a precaução é relativa à aparência islâmica);
 
– 1 bola de plástico
que jogaremos entre nós
sem levantar suspeitas
ou olhares a outrem
infringindo o 3.º dever
da lista deontológica cristã.
 
Não ergueremos a voz
a um decibel prejudicial ao meio ambiente,
ninguém dirá que
– e seguindo a equação agustiniana da feliciade
é dela condição necessária e suficiente um testemunho que
     a ateste –
não somos 1 família feliz.
 
 
 
ana paula inácio
2010-2011
averno
2011



22 agosto 2025

r. lino / nove instantâneos do sul

  
.quarto.
 
talvez a nora não tenha aqui
do seu tamanho o maior.
aqui.
 
Quando a vasta terra se descobre
lá mais para o sul
na primazia do deserto,
 
há enormes cegonhas poeirentas
que debicam nas raras águas
a funda alegria dos seus poços.
 
 
 
r. lino
nove instantâneos do sul
políptico
companhia das ilhas
2016
 

21 agosto 2025

maria teresa horta / laranja

  
Rosa branda na espuma
do meio-dia
com janelas abertas nas laranjas
 
E um risco de sombra
sobre o sal
traçado devagar, como uma franja
 
Meu claustro de musgo
e de fermento
onde o ferro se perde de humidade
 
Onde o tempo se inventa
noutro tempo
feito de musgo, framboesa e carne
 
 
 
maria teresa horta
poesia reunida
educação sentimental
dom quixote
2009
 

20 agosto 2025

fernanda botelho / as coordenadas líricas

  
Desviou-se o paralelo um quase nada
e tudo escureceu:
era luz disfarçada em madrugada
a luz que me envolveu.
 
A geométrica forma de meus passos
procura um mar redondo.
Levo comigo, dentro dos meus braços,
oculto, todo o mundo.
 
Sozinha já não vou. Apenas fujo
às regras emboscadas.
Em cada esfera desenho o meu relógio
– as minhas coordenadas.
 
 
 
fernanda botelho
as coordenadas líricas  (1951)
antologia da novíssima poesia portuguesa
m. alberta menéres e e. m. de mello e castro
moraes editora
1971
 
 


19 agosto 2025

judith teixeira / a sesta



 

 

O sol em calmaria sofucante,
abrindo as grandes azas luminosas
adejou sobre a serra culminante
abrazando-lhe as faces pedregosas…
 
Subindo luminoso, mais brilhante
abrangeu as planícies argilosas
emudecendo a fonte sussurante –
sequioso, anda, a sorver as rosas!...
 
As abelhas, zumbindo nos silvados,
lembram pingos de fogo, condensados,
a refulgirem sob as suas azas…
 
E descansando á sombra dos sobreiros
o encalmado rancho dos ceifeiros
foge aos seus beijos rubros como brazas!
 
Agosto – 922
 
 
 
judith teixeira
castelo de sombras
1923
 




 

18 agosto 2025

salette tavares / dorme o meu peso de água...

  
 
Dorme o meu peso de água numa fonte
um brilho de pena que me dói
molhada, escorrida, plena
doçura de praia serena
um ainda que se foi.
 
Dorme o meu peso de pedra sob o sol
um perto de pavor em que me movo
rica, lúcida, límpida
certeza loira de trigo
na dúvida fatal que te persigo.
 
Dorme o meu peso de hera sob a chuva
um longe de aventura que me segue
escassa, pálida, breve
ternura que a tarde escreve
um sempre que nada dura.
 
 
 
salette tavares
espelho cego (1957)
antologia da novíssima poesia portuguesa
m. alberta menéres e e. m. de mello e castro
moraes editora
1971
 



 

17 agosto 2025

adília lopes / almoço do trolha

  
Pobríssimos
as cabeças cortadas
mas tão felizes
homem mulher e bebé
de um tijolo
do patrão
fizeram um assento
o Estado Novo impede-os
de tirar os sapatos
o Partido Comunista também
desce sobre eles
o Espírito Santo
do almoço
vão comer língua?
 
 
adilia lopes
clube da poetisa morta (1997)
caras  baratas
antologia
relógio d´água
2004




16 agosto 2025

natália correia / cântico do país emerso

  
I
 
ENQUANTO que no mar das Caraíbas
Os albatrozes os peixes-voadores
Os sargaços a bússola a espuma
E a nossa Senhora dos Navegadores
Se punham ao serviço de uma
Nação acabada de nascer,
 
Terra transportuguesa de longo curso
Onde os homens andam de tronco nu
E a barba produz ardor como a urtiga
Onde o instinto lê no voo das aves
Como uma sibila e o medo é abandonado
No país das sombras do urubu:;
 
Terra onde as decisões têm a rapidez
Do leopardo e a fome desenha no ar
Uma hipérbole arquejante; terra onde
A fraternidade é rude como a flor do cardo
E os homens usam a alma como um instrumento cortante;
 
Terra onde por enquanto não há
Encontro às seis horas no bar
Nem estilo de vida nova-iorquino
Nem razões para um homem se casar
Nem o fim-de-semana arrabaldino
Onde não há vivendas para alugar
Com cadeiras de verga sobre a relva;
 
Selva atónita ainda pela desfloração
O violento estupro dos machados
As panteras tensas da iniciação
O batuque dos seus sentidos alterados
Os tigres encolhidos da contracção uterina
Os gamos assustados dos seus peitos
As gazelas da sujeição à força masculina
E o elefante sossegado dos instintos satisfeitos…
 
Terra saudada ainda pelas
Estrelas-do-mar e outras estrelas
Meninas dos olhos dos marujos
Extasiados do avesso sempre
Que um português se fez ao mar
Não para descobrir a Índia
(Isso era o começo de um mundo
Com ondas por fecundar) mas
Para fazer um filho às vagas
Fêmeas de gosto salgado e de ancas
Largas. Mulheres que aderem à pele
Como a salsugem. As únicas
Que verdadeiramente se estorcem e rugem;
 
 
 
natália correia
cântico do país emerso
antologia poética
dom quixote
2018





15 agosto 2025

fiama hasse pais brandão / sistema solar



 
 
Cada voz tem o seu contraponto
num ruído natural. Cada silêncio,
no silente espaço que rodeia, por vezes,
cada coisa. À beira do berço as bocas
percutem sobre a criança. Depois, no sono,
abrem-se como qualquer flor. Sobre
os cílios da adolescente tecem frases.
 
                               *
 
À beira do berço as bocas
percutem sobre a criança. Depois no sono
adensam-se como qualquer árvore. Sobre
os cílios da adolescente tecem frases.
Cada silêncio corporiza-se no espaço.
As coisas têm eixos e rodam
com ruídos diferentes do seu nome.
E o Sol tramonta entre vestígios,
Além dos montes e vales e o mar.
 
                               *
 
E o Sol tramonta sobre as nossas casas
e os montes e vales e o nosso mar.
quando um verso marca o lugar das coisas
elas aí ficam para sempre. O Sol
que perpassa em cumes e em cristas
nasce nas arestas serranas do nascente
e vai até ao mar em sete versos.
 
 
 
fiama hasse pais brandão
cenas vivas
relógio d'água
2000




 

14 agosto 2025

natércia freire / hoje, mãe, chega o verão

  
 
                        «Hoje, Mãe, à meia-noite e trinta e cinco,
                        Chega o Verão. Eu vou esperá-lo na varanda.»
 
                        Luís Manuel – 8 anos

 

 
Sobre as copas das árvores da mata
É que o vias chegar
Deus generoso, antigo
A navegar
Desdobrando os navios coloridos
Dessas manhãs sulinas
A mergulhar nas águas submarinas
Verdes, verdes de jóias e sargaços.
 
E sob a tarde em brasa
E cantos roucos
De pássaros com sede
Fogem-te azuis os olhos de criança
Para as viagens que se chamam Espanha.
E Julho, Verão, Baviera, são cometas
E carrocéis em límpidas clareiras.
 
Ouves bronzes de anúncios musicais
No Verão que te pertence e que te abraça
No Verão que tu abraças como Irmão
No Verão dos frutos, teus Irmãos também.
 
Nos somos passageiros, sob tendas
De nómadas, cegando à claridade…
 
Mas para ti, as lendas
É que são a Verdade.
 
 
 
natércia freire
foi apenas ontem (1977-1987)
antologia poética
assírio & alvim
2001
 

13 agosto 2025

tereza balté / a folha não é livre

  
 
A folha não é livre tem um caule
uma raiz suposta a que se prende
à terra à atmosfera confluente
que lhe traz alimento imponderável
 
no interior do quarto a folha verde
cativa empalidece transparente
ao pouco sol que a janela consente
volta para a luz a face mais atreita
 
aceita humilde a réstia que aproveita
afila o caule subtiliza a sede
subsiste planta verde por uns meses
 
até ao tempo da ternura extrema
em que não é mais flor fica semente
e em silêncio encontram-na liberta
 
 
tereza balté
horizontes portáteis
editorial inova
1977