08 março 2025

fernando lemos / fiz uma rosa contemporânea

 
 
Fiz uma rosa contemporânea
com um compasso
 
não cheira
nem sonho com ela
 
Fiz um sonho com duas linhas
mas não acordo
nem sinto os olhos
 
fiz um quadrado
com a rosa dentro
nas duas linhas
 
e estava escrito o meu desalento
 
 
 
fernando lemos
poesia
porto editora
2019




07 março 2025

izidro alves / uma vez por ano

 




 

 
Uma vez por ano no mesmo mês
Regressamos à casa onde nascemos:
Limpamos o pó dos retratos
Tiramos as aranhas dos candeeiros
Abrimos as janelas mais pequenas
Espirramos e tossimos como antigamente.
 
Olhamos um para o outro
E nos olhos de cada um
Vemos os olhos de todos os mortos.
Sem nada para dizermos
Falamos com as mãos sujas
Da nespereira a bater na janela.
Como da última vez
Deixamos a luz acesa.
 
 
 
izidro alves
cédula do mundo
labirinto
2025



06 março 2025

albano martins / quatro haikais

 
 
 
1.
Se houve um paraíso, foi
Depois, quando a maçã
Foi mordida.
 
2.
A cabeça da lua
entre as coxas.
O sexo do luar.
 
3.
Solitários, solidários
ambos – Hermes
e Afrodite.
 
4.
A um passo
da luz fulguram,
grávidas, as espadas.
 
 
 
albano martins
por ti eu daria
entre a cicuta e o mosto (1992)
glaciar
2021
 


05 março 2025

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

 
 
 
VIII
 
Foi para ti que criei as rosas.
Foi para ti que lhes dei perfume.
Para ti rasguei ribeiros
e dei às romãs a cor do lume.
 
Foi para ti que pus no céu a lua
e o verde mais verde nos pinhais.
Foi para ti que deitei no chão
um corpo aberto como os animais.
 
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000




 

04 março 2025

antónio osório / amo os teus defeitos

 
 
 
Amo os teus defeitos, e tantos
eram, as tuas faltas para comigo
e as minhas; essa ênfase
de rechaçar por timidez; solidão
de fazer trepadeiras, agasalhos
para velhos, depois para netos;
indulgência de plantar e ver
o crescimento da oliveira do paraíso,
carregada de flores persistentemente
caducas; essa autoridade, irremediável
desafio; e a astúcia
de termos ambos quase a mesma cara.
 
 
 
antónio osório
a ignorância da morte
os cavalos de tróia
editorial presença
1982
 



03 março 2025

fátima maldonado / crepúsculo

 
 
 
II
 
Depois de te vazares
até secar na pele o recôndito veio
os opalinos rios desaguando baixo
enquanto te vigio à espera se abrandeces
surgem-me casas brancas
pilastras sucessivas
na funda quadratura de pátios sequestrados
mosaicos pontuando as salas de referências.
Nas báquicas volutas
as vides
policromam o chão de amores mais que suspeitos
engalanecem sobre os ângulos do repasto.
Enquanto recostado sopesas minha pele
e buscas na textura
o teu filão cativo
de forma terminante na rede alveolar,
como na mina o escravo avidamente passa
o dedo sobre o aurífero seio,
e firme o teu perfil moreno destacavas
no ocre da parede
sentindo o fresco chão inscrever-se na túnica,
eu te seguia o rasto
adivinhando na boca contraída
o rictus do desejo.
Gemias ao roçar-te a face contra os pés,
o estribo os magoou na última campanha
(a cativa mantém do saque
a cicatriz na nuca
e disfarça-a pousando por sobre o violeta
da zona contundida
o pente de coral que de manhã lhe deste)
A língua essa ficou-me oferta numa taça.
Numa noite de Maio
beberas talvez em demasia
de um torvo vinho acre
ao resguardo da brisa diluente
numa nave fenícia,
à volta celebravam com gritos a vitória,
apenas dois lugares no áspero parlamento,
lambia-te a barriga e comentava
o mundo circundante
um convidado atónito
soltou um vivo repto:
«Cave amantem».
Viraste a cabeça e vi por dentro a raiva
embravecer-te a boca.
Pediste na toalha a lâmina de prata.
No cabo cinzelado Artemísia sulcava
um mar de contusão.
Mandaste sossegar a trémula cabeça,
um golpe seccionou a língua virulenta.
Enquanto não estancou o sangue nessa noite
deitada no sombrio reduto das escravas
sentindo sobre o corte
pesar fresca mistura,
(uma velha tentara amordaçar a veia)
não pensava senão na próxima vingança.
Mas ao amanhecer
quiseste transportar-me
ao linho dos lençóis,
na cama desenhavam grinaldas tumulíneas
e a chama do azeite
enchia o ambiente.
Adormeci.
O teu olhar fitava dum Sileno
a face na parede
e uma mulher alada
dissecava à escuta
as fibras do mistério.
No tumulto de um sono
Em sobressalto
sentia a tua mão,
(o sangue junto às unhas grudou um lodo denso)
serena percorrer desimpedindo as vias,
projectos de cravar
entre os ossos do externo
adagas caldeadas em forjas escandecidas.
 
E enquanto assim medito
um pombo cinamomo
num nicho segredeia
dando à ninfa saprófita ali em vigilância
relatos em detalhe das ruas destruídas
notícia da chacina
que impende sobre os prédios
os contos do abate às roxas cercaduras
o saque reiterado nos frisos de uvas pretas
a desfolha das rosas
os caules de narcisos
a esmagada flor solta do azulejo
as novas da matança que grassa na cidade.
 
 
 
fátima maldonado
os presságios
os alicerces
editorial presença
1983



02 março 2025

antónio ramos rosa / amamos num vislumbre

 
 
 
Amamos num vislumbre terra suspensa
chamamos limiar a esta chama
e uma ideia de fogo branco habita o pulso
um vaso negro irradia sobre o branco
 
Amamos o limiar o pólen dos mortos
na sombra desta palma deste odor de chama
chamamos alta a esta chama nua
E é uma mulher direita imóvel nua
 
Amamos esta terra esta sombra da mão
amamos esta escrita de água e dança obscura
caminhamos contra o hálito da noite
 
 
 
antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985




01 março 2025

paul strand / elegia pelo meu pai

 
 
2 -  RESPOSTAS
 
 
Porque viajaste?
Porque a casa estava fria.
Porque viajaste?
Porque é o que sempre fiz entre o crepúsculo e a aurora.
O que vestiste?
Vesti um fato azul, uma camisa branca, uma gravata amarela e
                                                                         meias amarelas.
O que vestiste?
Não me vesti. Um lenço de dor manteve-me quente.
Com quem dormiste?
Dormi com uma mulher diferente em cada noite.
Com quem dormiste?
Dormi sozinho. Dormi sempre sozinho.
Porque me mentes?
Sempre pensei que te dizia a verdade.
Porque me mentes?
Porque a verdade mente como nenhuma outra e eu amo a verdade.
Porque partes?
Porque nada significa já muito para mim.
Porque partes?
Não sei. Nunca soube.
Quanto tempo deverei esperar por ti?
Não esperes por mim. Estou cansado e quero descansar.
Estás cansado e queres descansar?
Sim, estou cansado e quero descansar.
 
 
 
paul strand
apeadeiro
revista de atitudes literárias
nr. 2 primavera 2002
tradução José luís peixoto
edições quasi
2002
 



28 fevereiro 2025

primo levi / aportar

 



 

 

Feliz o homem que chega a bom porto,
Que deixa atrás de si mares e tempestades,
Cujos sonhos estão mortos ou jamais nascidos;
E que se senta e bebe na taberna de Bremen,
Junto da lareira com uma paz serena.
Feliz o homem que é como uma chama extinta,
Feliz o homem que é como a areia do estuário,
que depôs o seu fardo e limpou a testa
e descansa no bordo do caminho.
Não teme, nem deseja, nem espera,
mas olha fixamente o sol que se põe.

 
                                        10 de Setembro, 1964
 
 
 
primo levi
a uma hora incerta
trad. rui miguel ribeiro
edições do saguão
2024
 

 



27 fevereiro 2025

zbigniew herbert / os peixes

 
 
 
Impossível imaginar o sono dos peixes. nem mesmo no canto mais escuro do lago, entre os juncos, o seu descanso é uma vigília: a mesma posição dura uma eternidade; é absolutamente impossível dizer deles: pousaram a cabeça.
 
De igual modo, as suas lágrimas são como um grito no vazio – incalculáveis.
 
Os peixes não são capazes de gesticular o seu desespero. Isso justifica a faca romba que salta pelo dorso arrancando lantejoulas de escamas.
 
 
 
zbigniew herbert 
poesia quase toda
tradução de teresa fernandes swiatkiewicz
cavalo de ferro
2024




 

26 fevereiro 2025

mar becker / caderno dos fins



 

 
outros amaram em mim a mulher
 
a ti peço para amar
a sombra
 
ama-me os fios de cabelo que caem
o farelo à ponta dos dedos
a poeira das unhas recém-lixadas
 
ama na minha boca a palavra que nunca é dita
 
ama os meus livros aquele que achei num sebo
e que decidi comprar só pela dedicatória
datada de junho de 1732
 
ver a caligrafia de um morto desejando boa leitura
a outro morto
duas mãos se encontrando assim, cobertas
de esquecimento e pó
 
 
 
mar becker
wladimir vaz (fotografia)
a mulher submersa
urutau
2021





 

25 fevereiro 2025

alejandra pizarnik / gestos para um objecto

 
 
               
Em tempo adormecido, um tempo como uma luva sobre um tambor.
 
Os três que em mim contendem ficámos no móvel ponto fixo e não somos nem um é nem um estou.
 
Antigamente os meus olhos procuraram refúgio nas coisas humilhadas, desamparadas, mas em amizade com os meus olhos eu vi, vi e não aprovei.
 
 
 
alejandra pizarnick
antologia poética
el infierno musical (1971)
tradução fernando pinto do amaral
tinta da china
2020


 

24 fevereiro 2025

amalia bautista / um tempo feliz

 


 
 
Era um tempo feliz. Naquele tempo
sustentavam-me as pernas o andaime
que sustentava e encerrava o mundo.
Não houve ninguém mais simples naquele tempo,
ninguém mais inocente do que eu mesma.
Não houve nenhum sinal que me falasse
da dor, da ansiedade e do desastre.
 
 
 
amalia bautista
estou ausente
tradução de inês dias
averno
2013




23 fevereiro 2025

eunice de souza / temporários

 
 
 
Casas temporárias para os vivos
Temporária a tenda para o casamento
Temporário o transporte
para a última viagem
Temporário o chão
que pisamos.
 
 
 
eunice de souza
coração de abacate
trad. francisco josé craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2018





 

22 fevereiro 2025

antonia pozzi / reflexos

 
 
Palavras – vidros
que infielmente
reflectis o meu céu –
 
pensei em vós
ao anoitecer
numa rua sombria
quando sobre as pedras da calçada caiu uma vidraça
e durante muito tempo os estilhaços
espalharam luz pela terra –
 
 
 
antonia pozzi
morte de uma estação
trad. inês dias
averno
2019
 



21 fevereiro 2025

herberto helder / a água nas torneiras, nos diamantes, nos copos




 

 
A água nas torneiras, nos diamantes, nos copos.
E entre inocência e inteligência estudava-se a arte.
Exemplo: a arte do ar queimado que passa pela boca
se a mão de alguém entra por mim dentro
e revolve
canos grossos, artérias, intestinos,
o sangue.
Deus, mão entrada.
A voz encurva-me todo.
Nos fulcros, à mesa, pelo fogo, onde as linhas se encontram nos grandes
objectos do mundo, sento-me,
e alimento-me, e a fruta adoça-se até ao oculto,
e eu sei tudo, e esqueço.
Quis Deus que eu entenebrecesse.
Que se fizesse em mim a abertura por onde saem
madeiras frias, ferros
para os talheres,
carne,
e jarras que trepidam com a força das corolas,
diamantes por onde se bebe.
Deus disse: um idioma que brilhe.
E eu trabalho para este espeço em que ponho a mão a peso
de sangue, o dom
de exercer os instrumentos terrestres.
Se vibram os arcos da respiração,
Se a baforada encrespa o ar quente das linhas.
 
 
 
herberto helder
a faca não corta o fogo
assírio & alvim
2008



 

20 fevereiro 2025

mahmud darwish / só me resta

 
 
 
só me resta
perder-me pela tua sombra, que é a minha.
só me resta
habitar a tua voz, que é a minha.
 
afastei-me da cruz estendida
como claridade em horizonte que não se inclina
até ao mais minúsculo monte que a vista alcança
mas não achei minha ferida, minha liberdade.
 
porque não sei onde moras
não encontro o caminho,
e porque meu dorso não se apoia em ti com pregos
inclinei-me tanto
como teus céus fazem
a quem espreita de escotilhas de avião
 
devolve-me os pedaços do meu nome
para que possa convocar as fibras das árvores
devolve-me as letras do meu rosto
para que possa chamar as tempestades próximas
devolve-me aas razões do meu prazer
para que possa invocar esse regresso sem razão
 
porque a minha voz está seca como pau de bandeira
e a minha mão vazia como o hino nacional
porque a minha sombra é ampla como se fora uma festa
e os traços do meu rosto se passeiam de ambulância,
porque eu não sou mais que isto:
o cidadão de um reino que não nasceu ainda.
 
 
 
mahmud darwish
rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução adalberto alves
assírio & alvim
2001




19 fevereiro 2025

alain morin / 13 de junho…

 
 
 
     Procuro como um requinte o ângulo na beleza. Que nenhum dos livros empilhados saia da esquadria. Concebo assim uma arquitectura sensorial para o que tenta ser torre no acanhado espaço onde resido. Uma pilha de livros é um templo onde venero um deus indelével, informulado, hermeticamente fechado. Abrir um deles constitui um esforço sagrado que pode afectar todo o edifício. Às vezes, deslocando cuidadosamente os livros através da pilha, procuro casar determinado título com outro, para ver que consequências essa união mágica produz. Outras, é da colisão entre dois autores que, através da fermentação da sombra, espero conseguir um álcool celeste.
 
 
alain morin
trad. luís miguel nava
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990
 




18 fevereiro 2025

antónio barahona / legenda para uma fotografia do autor

 
 
 
legenda para uma fotografia do autor com Hernâni Taveira no jardim constantino em 1959
 
 
Passaram alguns anos:
uns suicidaram-se outros não têm o braço esquerdo
as mil e uma noites surrealistas
já foram escritas
hoje uma elegia amanhã o amor louco
para o ano uma viagem religiosa
ao lugar do crime
 
éramos nós
tu o amigo dos óculos chineses
do gato voador no vidro
dos cavalos azuis a emergir dum espelho
eu de semblante vítreo taciturno
olhando a morte que te escolheu primeiro
 
 
1970
 
 
 
antónio barahona 
resumo, a poesia em 2011
documenta
2012
 




 

17 fevereiro 2025

manuel de freitas / such a sad machine





 

 
                    no Estádio, com o Diogo Vaz Pinto
 
 
                         
Talvez hoje, de certa maneira,
tenha percebido. Há uma idade
em que acreditamos na poesia,
em que julgamos (coitados
de nós) a única saída possível.
 
Tocar na capa de um livro ou
numa «suffering jukebox»
torna-se quase a mesma coisa.
O mundo pede-nos desespero
– e nós tentamos dar-lho.
 
Há uma idade, um desencontro,
um fim sem recomeço que teima
em nomear mortos impartilháveis,
versos longos que celebram o luto
de haver versos, de haver morte.
 
Mas já não é a idade certa, aquela
em que tolerávamos poetas
e poemas que cresceram ao contrário,
por nos ser mais próximo o final da noite,
essa morte retórica que nos embebedava tanto.
 
Não sabíamos, mas acreditávamos
– na poesia ou noutra merda qualquer
que não viesse sujar o azul das mesas,
esta cor baça que persiste e que
fomos, de comum acordo, dissipando.
 
Uma idade em que nos apetecia ainda
falar de idade, sem futuro nem constrangimentos.
(Deixa-me ao menos pagar-te a cerveja.
Começou a chover. É demasiado tarde
para quem nunca esteve aqui
 
e espera, sentado, que lhe digam que morreu.)
 
 
 
manuel de freitas
telhados de vidro/12
averno
2009






 

16 fevereiro 2025

fernando luís / num café de Bolonha

 
 
6

Desta névoa em cerco
crescem rosas para ti,
o nublado anil das quimeras,
riscos de um destino dilacerado.
 
A paz das águas sobre
o mundo reacende o torpor
de deus encarcerado, a memória
do estrangeiro deposto sob
a tua vida, sobressalto do sangue,
do inquieto, imortal e solitário
sopro a que chamas alma.
 
E com uma pedra engastada
em cada gesto vais
matar o chacal dos teus sonhos,
dessa névoa em cerco imaginada.
 
 
 
fernando luís
num café de bolonha
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990





15 fevereiro 2025

regina guimarães / catalogue raisonné

 
 
 
Havia essas manhãs imaginárias
em que o sol passava debaixo da porta
como uma carta breve, um magro recado,
e essas outras
históricas
em que o sol arrombava a porta
sem historiador.
 
Saíamos mais cedo do que o costume
para confiar a palavra a um transeunte
embrulhada num pano muito branco.
 
E o primeiro com quem dávamos de cara
era mendigo e tão pedinte
que a nossa espinha se curvava
em jeito de amor envergonhado
porque outro sentimento não nos ocorria.
 
Corríamos contra o tempo.
Pela rua fora
aos encontrões
furávamos caminho por entre a multidão mole
e o ar duríssimo.
 
O que fazíamos pelas más razões
voltaríamos a fazer
a cometer
cada vez mais gratuitamente.
Sempre em nunca
ávidos de nunca
sem sempre.
 
 
 
regina guimarães
voo rasante
antologia de poesia contemporânea
mariposa azual
2015
 



14 fevereiro 2025

carlos saraiva pinto / farás do sono o abrigo

 
 
 
farás do sono o abrigo
dos anjos lentos.
 
a visão melancólica
dos rios obstinados.
 
ao menos uma vez
 
como a dimensão
dos pequenos passos
a caminho das mãos dissolvidas.
 
o rosto é meigo.
 
o lugar diante dos peixes
espalhará a neblina
tocada em mel a indiferença
que povoou de ausência
as libélulas interiores.
 
ó saliva inconsolável dos deuses.
no lado esquerdo do peito
o musgo dispersivo cobre o tempo
subtis pormenores
de gestos que escapam.
 
a minha memória parou.
o sofrimento vigia os mares
e na película dos amieiros
a noite cai árida e grave.
 
só o viajante da noite
contempla o mármore da face.
ouve a densa página das dunas,
 
os órfãos iluminados da chuva,
nas pegadas solitárias do outono
sobre os abismos do oeste.
 
descerás assim despido de luz
à verdura da terra
 
e a extensa morte
cobrirá de lama e sulcos
o teu reino.
 
 
 
carlos saraiva pinto
escrever foi um engano
o correio dos navios
2001
 




13 fevereiro 2025

jorge velhote / fria é a água na escuridão

 
 
 
.3.
 
Regressas um pouco ao teu corpo como
 
o crepúsculo cai nas sombras.
 
És uma erva seca ou uma cana
 
esquecida. E na tua boca restam
 
silvas e poeira. E búzios.
 
Depois, estendes o olhar como quem
 
abandona o território das palavras
 
as serpentes em suas mãos
 
ou os lugares vazios em cada manhã.
 
 
 
jorge velhote
âmago
edições sem nome
2018





 

12 fevereiro 2025

nuno júdice / retrato

 
 
 
Encosta-se à parede. A brancura
das pernas contra o negro da sombra. O
risco da meia no risco do papel; e
os dedos que furam a pele. Os olhos
fechados no excesso da luz. Entreabre
os braços, deixando que os seios
saltem para o sol. O rigor do vento
abranda nessa imagem.
 
 
 
nuno júdice
50 anos de poesia
antologia pessoal (1972-2022)
dom quixote
2024
 



11 fevereiro 2025

gastão cruz / frio

 
 
 
Linguagem das estrelas incendeia
o céu da noite! Do
lugar vazio
choverão cinzas e da negra teia
 
descerá o cenário como um dia
para cegos que escutam a sombria
melodia do frio
o inimigo rio a escuridão
 
diurna da melancolia
As trevas serão teias recolhendo
os mortos Passará
 
nelas o pensamento
das estrelas extintas, o sentido
da vida
 
 
 
gastão cruz
as pedras negras
os poemas (1960-2006)
assírio & alvim
2009




10 fevereiro 2025

pedro tamen / minha secura agulha pela noite

 
 
 
Minha secura agulha pela noite
luminosa atravessa a estrada, o escuro,
procura-te na casa e na cadeira,
procura-te no meio
das ilusões, sentenças, lodo, esperas,
encontra-te no quente à minha volta,
reencontra o teu corpo, minha auréola,
a paz de ter morrido e de viver:
 
os teus olhos abertos juntos aos meus,
tuas mãos passeantes, teu cabelo
suado no esforço de me dares
orografias de serras e de mares,
teu lume, tua água, teu novelo,
a tua voz mais baixa que o meu braço,
nosso ar, nossa meta, sol, cansaço.
 
 
 
pedro tamen
escrito de memória
tábua das matérias
poesia 1956/1991
círculo de leitores
1995



 

09 fevereiro 2025

joaquim pessoa / alcácer que vier

 
 
 
Em Alcácer eram verdes
as aves do pensamento.
Eram tão leves tão leves
como as lanternas do vento.
 
Em Alcácer eram verdes
os cavalos encarnados.
Eram tão fortes tão negros
como os punhos decepados.
 
Em Alcácer eram verdes
as armas que eu inventei.
Eram tão leves tão leves
tão leves que nem eu sei.
 
Em Alcácer eram verdes
os homens que não voltaram.
Eram tão verdes tão verdes
como os campos que deixaram.
 
Em Alcácer eram verdes
as maçãs feitas de lume.
Eram tão frias tão frias
como as dobras do ciúme.
 
Em Alcácer eram verdes
estas palavras que agora
são tão caladas tão cernes
tão feitas desta demora.
 
Em Alcácer eram verdes
as flores da sepultura.
Eram tão verdes tão verdes
tão verdes como a loucura.
 
Em Alcácer era verde
meu amor o teu olhar.
Era tão verde tão verde
quase à beira de cegar.
 
 
Em Alcácer eram verdes
os lençóis onde morri.
Eram tão frios tão verdes
como os campos que eu não vi.
 
Em Alcácer eram verdes
as feridas do meu país.
Eram tão fundas tão verdes
como este mal de raiz.
 
 
 
joaquim pessoa
125 poemas
antologia poética
litexa
1982





08 fevereiro 2025

aram saroyan / a moer café

 
 
 
Moer café era o meu passatempo favorito
Quando tinha três ou quatro anos. Costumava sentar-me
No chão da cozinha com o moinho de café
Entre os meus joelhos, moendo e verificando
 
de vez em quando quanto já tinha na gaveta
Em baixo onde o café moído caía.
Quando tinha acabado e a gaveta estava cheia,
Alisava-o com o meu dedo, satisfeito.
 
 
 
aram saroyan
afagando a face de lorca
uma antologia
trad. francisco josé craveiro de carvalho
companhia das ilhas
2020




07 fevereiro 2025

jorge luís borges / um livro



 
Apenas uma coisa entre outras coisas
Mas também uma arma. Foi forjada
Na Inglaterra, em 1604,
E carregada com um sonho. Encerra
O som, a fúria, a noite e o escarlate.
A minha mão sopesa-a. Quem diria
Que contém o inferno: essas barbudas
Bruxas que são as parcas, os punhais
Que executam as duras leis da sombra,
O delicado ar desse castelo
Que te verá morrer, a delicada
Mão que é capaz de ensanguentar os mares,
O clamor e a espada da batalha.
 
Este tumulto silencioso dorme
No espaço de um só livro, na tranquila
Prateleira da estante. Dorme e espera.
 
 
 
jorge luís borges
obras completas 1975-1985 vol. III
história da noite (1977)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998



 

06 fevereiro 2025

paul éluard / identidades

 
 
 
                                                a Dora Maar

 
 
Vejo os campos e o mar cobertos por um dia igual
Não há diferenças
Entre a areia que dormita
O machado à beira da ferida
O corpo em feixe desatado
E o vulcão da saúde
 
Vejo mortal e boa
O orgulho que retira o seu machado
E o corpo que respira a plenos desdéns sua glória
Vejo mortal e desolada
A areia que volta ao leito de partida
E a saúde que tem sono
O vulcão palpitante como um coração desvendado
E as barcas respigadas pelos ávidos pássaros
As festas sem reflexos as dores sem eco
Frontes olhos atormentados pelas sombras
Risos como encruzilhadas
Os campos o mar o tédio torres silenciosas torres
                                                          [sem fim
Vejo leio esqueço
O livro aberto das minhas janelas fechadas
 
 
 
paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977




05 fevereiro 2025

paul bowles / canção

 
 
 
Sereis escravos num castelo.
Para cada beijo haverá um esgar.
Para cada garrafa haverá um discípulo.
Somos livres e podemos subir às montanhas.
Mas para cada passaporte há uma entrada
E para cada cálice uma gota.
Os relevos dos antigos mosaicos perseguiam-nos
E para cada fragmento havia um soluço
E para cada punhalada um silêncio.
A nossa liberdade era uma prisão,
Mas para cada riso havia uma carícia;
Para o amor havia um sorriso.
 
                                                           1929
 
 
paul bowles
poemas
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
2008




04 fevereiro 2025

paul auster / desenterrar

 
 
II
 
Manguais, a brancura, as flores
da terra prometida: tudo
vais arrebanhando, esboroando-te no limiar
da respiração. Por uma palavra apenas
no ar deixámos de respirar, por uma
pedra, fendendo-se com a fome
dentro de nós-fúria,
desde a desordem dos ossos, aparentando-nos
ao verme. Tua única
testemunha é a parede. Apartada
de mim, mas nada desperdiçando,
espalhas-te sobre cada página em branco,
como se a tua voz tivesse rastejado
para fora de ti: e entrado
na brancura do pranto.
 
 
 
paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002
 



03 fevereiro 2025

jack gilbert / talvez ninguém deva ser aberto

 
 
Sabes, eu levo a sério as baleias.
O seu vasto movimento através da escuridão,
mudo.
É insuportável.
Ou Crivelli, com a sua fruta.
Os japoneses.
Ou o miolo branco dos melões,
sempre na escuridão.
Essa escuridão inviolada desde o início.
O pequeno vazio no centro,
na escuridão.
Como virgens.
A paisagem às escuras.
Iluminada por mim.
Iluminada como as minhas mãos
na câmera-escura
prendendo a fita na bobina
na escuridão absoluta.
O árduo trabalho
e logo as minhas mãos enormes e brilhantes.
Virgens.
Baleias.
Escuridão e Laudes.
Mas talvez ninguém deva ser aberto.
Os veados voltam ao comedouro
na súbita época de caça.
As raparigas encontram segundos amores.
Sémele foi fulminada
enquanto olhava a baleia
mesmo na sua pior panóplia.
Foi o notável Sócrates a arruinar Atenas.
Agora enlouqueceste
e eu fugi.
Não são os sonhos.
É este teu amor
que cresce em mim,
maligno.
 
 
 
jack gilbert
deixem-me ser ambos
trad. leonor castro nunes e marcos pereira
destrauss
2020




02 fevereiro 2025

ricardo reis / manhã que raias sem olhar a mim,

 
 
 
Manhã que raias sem olhar a mim,
Sol que luzes sem querer saber de eu ver-te,
        É para mim que sois
        Reais e verdadeiros;
Porque é na oposição ao que eu desejo
Que sinto real a natureza e a vida.
        No que me nega sinto
        Que existe e eu sou pequeno.
E nesta consciência torno a grande
Como a onda, que as tormentas atiraram
        Ao alto ar, regressa
Pesada a um mar mais fundo.
 
23-11-1918
 
 
fernando pessoa
poemas de ricardo reis
imprensa nacional-casa da moeda
1994




01 fevereiro 2025

bernardo soares / e assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos...

 
 
 
L. do D.
 
E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista, nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da alma. Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa: uma impaciência da alma consigo mesma, como com uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei. Assim, muitas vezes, repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe de novo aquilo a que ele já me respondeu; mas posso descrever, em quatro palavras fotográficas, o semblante muscular com que ele disse o que me não lembra, ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância — irmãos siameses que não estão pegados.
 
s.d.
 
 
fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982




31 janeiro 2025

lawrence ferlinghetti / três donzelas foram de viagem

 
 
 
 
Três donzelas foram de viagem
Uma levava um pedaço de pão
                                      na mão
Uma disse
                Cortemo-lo e dividamo-lo
 
E chegaram a uma floresta vermelha
e no meio da floresta vermelha
                  encontraram uma igreja vermelha
e na igreja vermelha
                  havia um altar vermelho
e em cima do altar vermelho
                  estava uma faca vermelha
e agora chegamos à parábola
                                                     Elas
pegaram na faca vermelha e feriram
                                                      o pão
e onde o golpearam com a
                                       faca vermelha
                                       o pão era vermelho
 
 
 
lawrence ferlinghetti
pictures of the gone world
trad. josé palla e carmo
cadernos de poesia
dom quixote
1972
 

30 janeiro 2025

saint-john perse / para festejar uma infância

 
 
 
I
 
    Palmeiras…!
    Então banhavam-te na água-de-folhas-verdes; e a água era também sol verde; e as criadas da tua mãe, grandes raparigas luzentes, moviam as pernas quentes perto de ti, que tremias…
    (Falo de uma alta condição, dantes, entre os vestidos, no reino de claridades revoluteantes.)

    Palmeiras! e a doçura
    de uma velhice de raízes…! A terra
  desejou então ser mais surda, e o céu mais profundo, onde árvores demasiado grandes, cansadas de um obscuro desígnio, urdiam um pacto inextricável…
   (Tive este sonho, dentro da estima: uma estadia segura entre os tecidos entusiastas.)
               
    E as altas
    raízes curvas celebravam
    o pôr-se a caminho das vias prodigiosas, a invenção das abóbadas e das naves,
   e aluz, então, em mais puras proezas fecunda, inaugurava o branco reino para onde levei, talvez, um corpo sem sombra…
  (Falo de uma alta condição, outrora, entre os homens e as suas filhas, que mastigavam certa folha.)

    Os homens tinham então
    uma boca mais grave, as mulheres tinham braços mais lentos;
   então, alimentando-se como nós de raízes, grandes animais taciturnos enobreciam-se;
    e mais longas sobre mais sombra se erguiam as pálpebras…
    (Tive este sonho, ele consumiu-nos sem relíquias.)
 
 
 
saint-john perse
para festejar uma infância
habitarei o meu nome
antologia
tradução de joão moita
assírio & alvim
2016
 

29 janeiro 2025

roger wolfe / o tinteiro

 
 
 
Em toda a parte
há poemas.
Muitas vezes
os melhores
são os que deixas ficar
onde estão.
 
 
 
roger wolfe
fazer o trabalho sujo
tradução de luís pedroso
língua morta
2020




28 janeiro 2025

rené char / que viva!

 
 
 
Esta terra não passa duma esperança do espírito, dum
                                                       contra-sepulcro.
Na minha terra, as ternas provas da primavera e os
                              pássaros mal enfarpelados são
preferidos às metas longínquas.
A verdade espera pela aurora junto a uma vela acesa.
A vidraça da janela é desleixada. Isso que importa a
                                                     quem é atento?
Na minha terra não se interroga um homem emocionado.
Não há sombra maligna sobre a barca que mete água.
Bom dia sem mais, é coisa desconhecida na minha terra.
Só se pede emprestado o que se pode devolver aumentado.
Há folhas, muitas folhas nas árvores da minha terra.
Os ramos são livres de não carregarem frutos.
Não se acredita na boa fé do vencedor.
Na minha terra agradece-se.
 
 
 
rené char
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021




27 janeiro 2025

billy collins / budapeste

 
 
 
A minha caneta move-se pela página
como o focinho de um estranho animal
com a forma de um braço humano
enfiado na manga de uma camisola larga e verde.
 
Vejo-a farejando incessantemente o papel,
determinada como se pensasse apenas
em forragear as larvas e os insectos
que lhe permitirão viver mais um dia.
 
Apenas quer estar aqui amanhã,
enfiada, talvez, na manga de uma camisa de xadrez,
com o nariz encostado à página,
obrigando-se a escrever mais umas poucas linhas,
enquanto eu espreito pela janela e imagino Budapeste
ou qualquer outra cidade onde nunca estive.
 
 
 
billy collins
rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução josé alberto oliveira
assírio & alvim
2001



26 janeiro 2025

charles bukowski / a cara de um candidato político num cartaz de rua

 
 
 
lá está ele:
poucas ressacas
poucas discussões com mulheres
poucos pneus furados
nunca pensou em suicídio
 
não mais de três dores de dentes
nunca falhou uma refeição
nunca esteve na cadeia
nunca se apaixonou
 
7 pares de sapatos
 
um filho na faculdade
 
um carro com um ano
 
apólices de seguros
 
uma relva muito verde
 
caixotes do lixo bem fechados
 
será eleito.
 
 
 
charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018




 

25 janeiro 2025

bob dylan / agora acabou-se tudo, baby blue

 
 
 
Deves partir agora, leva o que precisas, o que pensas que há-de durar
Mas o que quer que desejes guardar, é melhor agarrá-lo depressa
Além está o teu órfão com a sua arma
Chorando como uma fogueira ao sol
Cuidado que os santos estão a passar
E agora acabou-se tudo, Baby Blue
 
A estrada é para os jogadores, é melhor usares o teu bom senso
Leva tudo o que juntaste da coincidência
O pintor de mãos-vazias das tuas ruas
Está a desenhar padrões loucos nos teus lençóis
Também este céu se está a dobrar debaixo de ti
E agora acabou-se tudo, Baby Blue
 
Todos os teus marinheiros enjoados, eles estão a remar para casa
Todos os teus exércitos de renas, estão todos a ir para casa
O apaixonado que acabou de sair pela tua porta
Tirou todos os seus cobertores do chão
Também o tapete se está a mover debaixo de ti
E agora acabou-se tudo, Baby Blue
 
Deixa o trilho de pedras para trás, algo chama por ti
Esquece os mortos que abandonaste, eles não te seguirão
O vagabundo que bate levemente à tua porta
Está com as roupas que dantes usavas
Acende outro fósforo, vai e começa de novo
E agora acabou-se tudo, Baby Blue
 
 
 
bob dylan
canções 1962-2001
volume 1 (1962-1973)
bringing it all back home
trad. angelina barbosa e pedro serrano
relógio d´água
2008
 



24 janeiro 2025

roland barthes / o corpo do outro



 

 
CORPO. Todo o pensamento, toda a emoção, todo o interesse suscitados no sujeito apaixonado pelo corpo amado.
 
1.
O seu corpo estava dividido: de um lado, o próprio corpo – a pele, os olhos –, terno, caloroso, e, do outro, a voz, breve, moderada, sujeita a momentos de afastamento, uma voz que não oferecia o que o corpo oferecia. Ou então: de um lado, o seu corpo macio, morno, débil na sua justa medida, protector, fingindo-se acanhado, e, do outro, a voz – a voz, sempre a voz – sonora, bem definida, mundana, etc.
 
2.
Assalta-me, por vezes, uma ideia: ponho-me a examinar longamente o corpo amado (como o narrador diante do sono de Albertina). Examinar quer dizer revistar: revisto o corpo do outro, como se quisesse ver o que há lá dentro, como se a causa mecânica do meu desejo estivesse no corpo adverso (pareço-me com esses miúdos que desmontam um despertador para saber o que é o tempo). essa operação processa-se de um modo frio e surpreso; estou calmo, atento, como se estivesse diante de um estranho insecto que subitamente deixo de recear. Certas partes do corpo são particularmente adequadas a esta observação: as pestanas, as unhas, a raiz dos cabelos, os objectos muito específicos. É evidente que estou então a fazer de um morto um fetiche. A prova está em que, se o corpo que examino sai da sua inércia, se põe a fazer qualquer coisa, o meu desejo se modifica; se, por exemplo, vejo o outro pensar, o meu desejo deixa de ser perverso, torna-se imaginário, regresso a uma Imagem, a um Todo: amo novamente.
 
(Via tudo do seu rosto, do seu corpo, friamente: as pestanas, a unha do dedo do pé, a finura das sobrancelhas, dos lábios, o brilho dos olhos, um determinado sinal, uma maneira de estender os dedos ao fumar; estava fascinado – não sendo o fascínio, em suma, senão a extremidade do desprendimento – por essa espécie de figura colorida, de faiança, vitrificada, onde podia ler, sem nada compreender, a causa do meu desejo.)
 
 
 
roland barthes
fragmentos de um discurso amoroso
trad. isabel pascoal
edições 70
2017
 



 

23 janeiro 2025

sylvia plath / os anos

 
 
 
Entram como animais vindos
Do espaço de azevinho onde os espinhos
Não são os pensamentos que eu ateio, como um praticante
     de Ioga
Mas apenas, o verde, pura escuridão
Nela gelam e são.
 
Ó meu Deus, não sou como tu
Na tua vaga obscuridade,
As estrelas coladas por todo o lado, estúpidos confeitos brilhantes.
A eternidade aborrece-me,
Eu nunca a quis.
 
Do que eu gosto
É do pistão em movimento –
A minha alma morre só de o ver.
E os cascos dos cavalos,
Esse desapiedado ruído de cascos no chão.
 
E tu, Estase maior –
O que há de importante nisso?
Será um tigre este ano, este rugido ao pé da porta?
É o de um Christus,
O terrível.
 
Freio de Deus nele
Morto por voar e acabar assim?
As bagas do sangue são elas mesmas, estão muito quietas.
 
Os cascos não o vão ter,
Na distância do azul, os pistões assobiam.
 
 
 
sylvia plath
ariel
trad. maria fernanda borges
relógio d´ água
1996




22 janeiro 2025

ron padgett / voz



 

 

Sempre me ri
quando dizem acerca de um jovem escritor
que «procura a sua voz». Eu interpretei
literalmente: teria ele perdido a voz?
Tê-la-ia projectado e ela
Não voltou? Ou talvez
se referissem ao jornal
The Village Voice? Ele está a tentar
encontrar a sua Voz.
                             O que não tem
graça é que tantos jovens escritores
tenham considerado esta ideia
credível: eles partem em busca
da sua voz, como se
fosse uma coisa independente, um tesouro
difícil de encontrar mas que merece
o esforço. Nunca pensei
que tal coisa existisse. Até
recentemente. Agora sei que existe.
Espero nunca encontrar a minha.
Espero continuar a ser uma fraude o resto da vida.
 
 
ron padgett
poemas escolhidos
trad. rosalina marshall
assírio & alvim
2018