30 outubro 2025

rui lage / da limpeza das matas



 

 
Desconhecem os versos
que escreves na terra
a firmes golpes de enxada
ou que recolhes em cestos,
maçãs de sol,
rotundos pêssegos
 
líricos frutos para os quais
não há leitores.
 
Ignoram como te segues
no voo da perdiz
quando o machado abala o tronco
no coração da floresta.
 
 
 
rui lage
corvo
quasi
2008
 



 

29 outubro 2025

rui nunes / vésperas portuguesas



 

 
o dia corre de poente para nascente, a chuva
é um lençol tenso sobre os velhos que separam
as lembranças, com palavras que não chegam
a dizer: esquecem os subterfúgios do tempo
e avançam cambaleantes pelas grandes fissuras
entregues ao despovoamento alucinante
 
no interior dos carros, os crimes
são ligeiras confidências
 
 
 
rui nunes
ofício de vésperas
relógio d’ água
2007
 



 

28 outubro 2025

rui costa / o homem azul

  
 
Há muito que tento escrever um poema
sobre o canteiro de um homem azul no labor
das mãos. O homem seria cego porque a visão
não facultaria o modo de selecionar os minerais ou
a resistência das proteínas à fúria das ideias trazidas
pelo vento. Na verdade, as mãos deste homem não seriam
mãos como as de outros animais – dos corvos, por exemplo –
capazes de ouvir, do fundo intuído da sua genética
consciência, mesmo aqueles pequenos actos que ainda não
aconteceram. O homem azul já aprendeu, aliás, que cada
tentativa de despojamento traz consigo mais um
camião de areia
que acaba por ser demasiado sólida perante o orgulho das
pétalas mais breves.
Quando alguém volta a cabeça para baixo o céu começa
a duvidar e então, diz o azul do mundo, a planta que precisa
de atenção vê o bafo ainda quente do homem azul.
 
 
 
rui costa
«não sou quem era quando lhe mordi a orelha»
mike tyson para principiantes
antologia poética
assírio & alvim
2017





 

27 outubro 2025

ruy belo / em cima de meus dias

  
 
Muita gente me tem falado a meu respeito
como quem me chamasse pelo nome e eu me voltasse
e nesse nome dito nessa boca fosse toda a minha vida
e eu morresse quando entre pinhais quem me chamara a fechasse
 
Muita gente me tem falado a meu respeito
mas eu cresço e decresço não reparo e anoitece
e já nem sei ao certo quantos dias meço
Regresso com o gado contra o sol rasante
Mas é de névoa ou fumo o algodão que cobre as casas
aonde regressamos atraídos pela luz que já nos campos se consome?
 
Os ciprestes os pássaros saúdam-me e eu passo
com um olho vazado transpareço o meu passado
e tudo esqueço e peço mesmo a Deus que esqueça quanto sou
além dessa medida simples onde me vasou
Sabermos nós que a face de algum mar ao pôr-do-sol pode mudar
e nenhum dia-a-dia consentir ao homem mais que a morna superfície
dos gestos por que troca a mais íntima morte que merece
 
Nada na minha poesia é meu
juro por Deus dizer toda a verdade
Ponho a mão na cabeça o dia é escuro e vago e eu respiro
Espero pela manhã como quem nasce
Ninguém sabe o meu nome porque
eu já perdi ao longe alguns dos olhos
e fui feliz em cafés de província onde me vi sentar
 
Digam que foi mentira, que não sou ninguém,
que atravesso apenas ruas da cidade abandonada
fechada como boca onde não encontro nada:
não encontro respostas para tudo o que pergunto nem
na verdade pergunto coisas por aí além
Eu não vivi ali em tempo algum
 
É de manhã caminho nem meus passos oiço
oitenta passos diz-se que darei
Vão-se fechando os dois alinhamentos das moradas
arredonda-se o largo, alguns problemas camarários
Duvido de mim próprio: quem serei?
O carro rega coisas tão profundas como esta
Meu Deus meu Deus, que mal eu fiz?
Eu estive em Dinard e vou talvez casar
Acordo e transistorizo os dois ouvidos numa música abundante
 
Muita gente me tem falado a meu respeito
mas eu cresço e minguo certas vezes anoitece
Sou coisa que se molha encolhe e envelhece
tudo me aquece e tudo me arrefece
Dois pés e duas mãos, algumas pás de terra
E sabem mesmo que o meu nome é Rá, por isso me conhecem
Sou a doença e sou onde me dói
sou sítio onde se nega que se morre
Tem graça haver quem fale a meu respeito
 
 
 
ruy belo
todos os poemas I
sete coisas verdadeiras
assírio & alvim
2004





26 outubro 2025

rui knopfli / o velho

  
 
Não envelheço. Torno-me antigo.
O velho sempre viveu em mim,
sempre o pressenti no olhar
magoado demorando-se nas coisas,
em certa lentidão não premeditada
dos gestos e nas lembranças confusas
de uma outra recuada idade.
Sempre aflorou na mão e na estima
triste que se estende aos amigos,
na aresta de desconsolo que espreita
as minhas horas de amor.
O velho sempre viveu em mim.
Eis que, enfim, o reboco
se lhe começa a assemelhar.
 
 
 
rui knopfli
maxila triste
memória consentida
20 anos de poesia 1959/1979
imprensa nacional -casa da moeda
1982
 



25 outubro 2025

marta navarro; paola d´agostino / dos meus quartos de hotel

  
 
 
Dos meus quartos de hotel
relembro os objectos que fui deixando para trás
Em Granada um chapéu-de-chuva grená
em sítio incerto um soutien branco
em Andorra um gorro lilás
em Lyon a travessa de prata da avó
Lista cacofónica com que pretendia deixar a minha marca
uma forma antecipada de inscrição na pedra
e a aprendizagem lenta do desapego
 
 
 
 
marta navarro; paola d´agostino
dançam; dançam
edit. a tua mãe
2014




 

24 outubro 2025

ana paula inácio & sandra costa / menos uma hora nos açores

 

 
9.
 
Devia ter sido o último poema do ano.
Um sino na paisagem a marcar
as horas. Um desalinho momentâneo
como uma arritmia, demasiado breve
para ser sombra, não ousando ser
árvore para que nenhum pássaro
ali pouse e seja música.
 
Chegando sempre tarde,
é o primeiro, e nele ressoa
a enumeração de todos
os elementos que nos circundam
mas que, por inabilidade
semântica ou biológica,
são sempre distância.
 
 
 
ana paula inácio & sandra costa
menos uma hora nos açores
volta d´mar
2022








23 outubro 2025

paulo campos dos reis / a empregada do café



 

 
A empregada disse olá
acordando-me da distância.
Com a condescendência justa
para quem, como eu
ocupou a mesa
para não beber café.
 
O que deseja, disse.
Pergunta bonita.
Um café, respondi.
 
 
paulo campos dos reis
habilitações literárias
volta d´mar
2022
 




 

22 outubro 2025

sebastião belfort cerqueira / sexto poema sobre o mar

 


 

 
Quando eu morrer
Deitem-me as cinzas
Quais cinzas
Deitem-me inteiro ao rio
E deixem-me seguir
O trilho frio
Até ao mar
 
Quando eu morrer
E me acharem na margem
Só vos peço um empurrão ligeiro
 
Depois vou a boiar
Como um pau
 
Vou a dormir
Como uma pedra
 
Para encravar
A engrenagem do maior cargueiro.
 
 
 
sebastião belfort cerqueira
está um dia lindo
edições sempre-em-pé
2021
 




21 outubro 2025

joão miguel fernandes jorge / e tu perguntas

  
 
E tu perguntas
fechando o corpo e a casa
o que fazemos aqui
como saímos daqui?
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019






20 outubro 2025

egito gonçalves / outubro

  
 
Os mortos esperam o frio de Novembro
enquanto as pétalas dos crisântemos se vão definindo
neste meio de Outubro, hereditariamente mortiço.
Os mortos estão esperando! Os cardíacos, os fuzilados,
os arrogantes, os tuberculosos, os suicidas
estão esperando as sus flores, o seu pretexto
para se imporem ao coração dos existentes
e manejarem a saudade como um látego,
rasgando a carne dos joelhos que amaram.
É a hora de nos ditarem a contemplação de pequenos objectos
sepultados no fundo de gavetas incómodas…
é a hora de se transformarem em flechas
e apresentarem os retratos fidelíssimos
para serem salgados de lágrimas veementes.
Ridículo oferecer-lhes um passeio no rio,
constelações em marcha, conferências sobre o sexo,
magazines ilustrados, foguetes luminosos…
o choro é essencial; Novembro não esquece,
reforça os seus pilares, não tardará a erguer-se.
Com os relógios quebrados contra o tempo
os mortos aguardam embrulhados nas horas que não têm,
enquanto as pétalas dos crisântemos já se torcem, disformes,
como a dor que depositaremos sobre os túmulos.
 
 
egito gonçalves
o esperado fim do mundo já partiu
uma antologia
língua morta
2020





 

19 outubro 2025

ángél gonzález / o outono atravessava

  
 
O Outono atravessava
as colinas de frágeis
tremores. Cada
folha caída
fazia estremecer uma montanha.
 
Leve rumor de luzes e de brisas
rolava pelo vale, aproximava-se.
Os pássaros deixavam bruscamente
trémulos os ramos
caindo rumo ao céu, arrebatados
por uma força estranha.
 
As carnosas urtigas
comprimiam-se
como um rebanho
inquieto. Levantavam da água
a cabeça, os juncos.
As verdinegras silvas
cresciam.
Imperceptíveis, mais delgadas
pela tensa postura de quem espera,
as ervas, desejantes…
                                        E tu chegavas,
e uma amarelenta paz de folhas caídas
refazia o silêncio atrás de ti.
 
 
ángél gonzález
para que eu me chame ángel gonzález
uma antologia
selecção e tradução de miguel filipe mochila
língua morta
2018
 



18 outubro 2025

josé saramago / até ao fim do mundo

  
 
É tempo já, Inês, o mundo acaba
Em que amor foi possível e urgente;
A promessa talhada nessa pedra,
Ou é cumprida hoje, ou tudo mente.
 
 
 
josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018




17 outubro 2025

josé gomes ferreira / melodia

  
 
II
Há anos de raiva
que te busco em vão.
Melodia!
 
No sopro dos meus versos,
nas fontes com sede,
nas portas que rangem,
na cólera do mar aberto…
 
Mas quem te ouve, Melodia,
para além do contorno do silêncio?
 
Pobre voz que trago em mim
e há-de morrer ignorada
nas trevas sum sol profundo
sem luas de superfície.
 
 
 
josé gomes ferreira
melodia 1932
poesia I
portugália
1972




16 outubro 2025

jorge luís borges / a luís de camões

  
 
Sem cólera nem mágoa arromba o tempo
As heroicas espadas. Pobre e triste,
À nostálgica pátria regrediste
Pra com ela morrer nesse momento,
O capitão, no mágico deserto.
Tinha-se a flor de Portugal perdido
E o áspero espanhol, antes vencido,
Ameaçava o seu costado aberto.
Quero saber se aquém da derradeira
Margem compreendeste humildemente
Que o império perdido, o Ocidente
E o Oriente, o aço e a bandeira,
Perduraria (alheio a toda a humana
Mudança) em tua Eneida lusitana.
 
 
 
jorge luís borges
obras completas 1952-1972 vol. II
o  fazedor (1960)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998




15 outubro 2025

henri michaux / je vous écris d´un pays lointain

  
2
 
Quando se passeia no campo, confidencia-lhe ela ainda, é possível encontrar-se no caminho massas consideráveis. São montanhas e, mais cedo ou mais tarde, temos de vergar os joelhos. Não serve de nada resistir, não poderíamos avançar mais, nem que nos fizéssemos mal.
 
Não é para magoar que o digo. Poderia dizer outras coisas, se quisesse realmente magoar.
 
 
 
henri michaux
(escrevo-lhe de um país distante, 1942)
antologia
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
1999
 



14 outubro 2025

billy collins / como sempre

  
 
Depois de nos termos separado, os barcos
continuarão a sair do cais de madrugada.
O salmão batalhará até às piscinas*,
um mês seguir-se-á a outro na parede.
 
A magnólia florirá
e a abelha, a nobre abelha –
vi uma lá atrás na minha caminhada –
abrirá caminho para o botão.
 
*Penso nas piscinas como lugares onde os salmões vão para se repro-
duzir, para depositar os ovos depois da difícil viagem corrente acima.
(Billy Collins)

 
 
 
billy collins
a aranha irlandesa & outros poemas,
trad. francisco José craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2023


13 outubro 2025

paul éluard / fresco

  
 
V
 
Partiu de um belo Verão
Para celebrar os ramos mortos
De uma floresta preta e branca
Igual à noite destruída
 
Partiu forte e valente
Para descansar na praia
Com uma mão que descansa
Um trabalho demasiado bem feito
 
Partiu da sua infância
Do mais fundo da esperança
Para encontrar o seu próprio fim
Todo enrugado de remorsos.
 
 
paul éluard
a cama a mesa
tradução de luís lima
barco bêbado
2021




12 outubro 2025

manuel neto dos santos / terra firme, mar de anil



 
19
 
Quando um turbilhão, na alma, se desata
no ranger das vagas contra a barcaça anciã…
Aí na terra firme, dourada, pela manhã
a linha de um sorriso é curvatura ingrata.
 
 
manuel neto dos santos
terra firme, mar de anil
editora urutau
2021


 

11 outubro 2025

leonor castro nunes e marcos foz / a bifurcação dos ossos



 
16.
 
As narrativas ideológicas fluem nas costas de um triste sozinho no café
– a salvação do mundo é uma ocorrência diária no meu bairro
cada vez mais marginalizado pelos forasteiros e pela minha sonolência.
 
À excepção de uma mão-cheia de baleias,
já há pouco para resgatar nesta liquidez
e mesmo essas não me parecem contentes com a minha intenção.
Estamos melhor assim, confortáveis na languidez larvar
de quem sabe que se subir tem que descer
 
mas deixemos estes assuntos para os de vanguarda.
A melancolia da sala está a pedir uma valsa fora de horas.
 
 
 
leonor castro nunes
marcos foz
a bifurcação dos ossos
do lado esquerdo
2016





 


 

10 outubro 2025

gil t. sousa / alguns poemas de verão

  
 
I
 
e nas
suas mãos tão belas
passavam como caravelas
 
a luva do tempo
e a do vento
 
 
 
gil. t. sousa
 




09 outubro 2025

gastão cruz / a ria

  
 
Sete horas da manhã, estampidos secos do outro lado da ria, sons de sempre, caçadores nos pinhais, bater da água, motores de aviões crescendo na manhã até esmaga-la. Somente o som dos tiros depois, o som da água é necessário quase adivinhá-lo. Há um passado, como um poço, roldana e balde. Bate o balde na água várias vezes até entrar.
 
 
gastão cruz
repercussão
os poemas (1960-2006)
assírio & alvim
2009




08 outubro 2025

artur do cruzeiro seixas / ao longo dos muros

 



 

 
Ao longo dos muros
a cal confirmava
que desceria uma ave
ao mais profundo de ti
e daí
incendiada no teu sangue
de todas as cores
a todas as palavras
enfim
daria asas.
 
Áfricas, 58
 
 
cruzeiro seixas
viagem sem regresso
tiragem limitada
2001
 



07 outubro 2025

antonio gamoneda / pássaros

  
 
Pássaros. Atravessam chuvas e países no erro dos
ímanes e dos ventos, pássaros que voavam entre a ira
e a luz.
 
Voltam incompreensíveis sob leis de vertigem e de
esquecimento.
 
 
 
antonio gamoneda
livro do frio
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999
 



06 outubro 2025

alberto pimenta / balada de gaudência

 




 
paciência
gaudência
nem sempre
o céu
tem clemência
e se a
violência
da cheia
levou a aldeia
lembra-te
de pompeia
e escuta
a melopeia
das ondas
batendo
na areia
 
e de futuro
seja escuro
ou haja
lua-cheia
vai com o
nascituro
para o monturo
celebrar
a última ceia
e cantar
com a sereia:
 


  
alberto pimenta
obra quase incompleta
fenda
1990





05 outubro 2025

fernando echevarría / o outono

  
 
O outono é, sobretudo, esse limite
que, esquecido do corpo dos seus frutos,
e até da luz, retém somente o timbre
que do palato deduziu o uso
da inteligência. A fim de
ficar um travo a reformar o luto
e a analisá-lo. Para instituir-se
luz dessa luz. ou sapiência, culto
de estações a mover-se. Nunca tristes,
mas transparências a irisar-se ao fundo.
O outono aí, declina sempre. Insiste
na inteligência desse timbre arguto.
 
 
 
fernando echevarría 
geórgicas
afrontamento
1998





04 outubro 2025

gonçalo m. tavares / esconderijo

  
 
Do teu esconderijo vê, e no teu esconderijo constrói,
sai dele apenas quando puderes dar algo aos outros.
Antes, é cedo demais, muito depois, é excessivo egoísmo.
Mas mesmo esta convicção não ajuda, não sei
Como viver, não sei o que é mais moral, mais ético,
Onde intervir, para onde olhar, ouvir o quê?
Há tantas coisas que falam ao mesmo tempo.
 
 
 
gonçalo m. tavares
1 poesia
relógio d´água
2004
 



03 outubro 2025

pedro tamen / os dias

  
1
 
Não há mais céu
se ele não cai
humilde acaso
no seu lugar.
Não há melhor
nem som mais puro
que o natural
dos nossos olhos.
Não vale a pena
fazer brinquedos
se as nossas mãos
são de criança.
 
 
 
pedro tamen
os dias
tábua das matérias
poesia 1956/1991
círculo de leitores
1995






02 outubro 2025

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

  
 
X GREEN GOD
 
Trazia consigo a graça
das fontes quando anoitece.
Era o corpo como um rio
em sereno desafio
com as margens quando desce.
 
Andava como quem passa
sem ter tempo de parar.
Ervas nasciam dos passos
cresciam troncos dos braços
quando os erguia no ar.
 
Sorria como quem dança.
E desfolhava ao dançar
o corpo, que lhe tremia
num ritmo que ele sabia
que os deuses devem usar.
 
E seguia o seu caminho,
porque era um deus que passava.
Alheio a tudo o que via,
enleado na melodia
duma flauta que tocava.



eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000
 



01 outubro 2025

antónio franco alexandre / dos jogos de inverno

  
 
5
 
eu a morrer debaixo do sol e eles sentados
apreciando coxas e mármores pendentes
no verão seco ao fim de nenhuma tarde, eu
desalinhavado pelo vento, crescido no meio das chamas,
correndo pelas ruas paralelas e sórdidas da antiguidade clássica,
eu também eu de guia e asno e cabriola na duna encardida de sol
e a agreste sabedoria das mãos cortadas rente eu e eles
apreçando o remate
 
 
dormir dormidos nas esteiras, a corda
presa nos dentes, que surpresa quando me tomaste,
pela primeira vez era uma noite de algum vento e das
esquias chaminés subia a chuva como uma nuvem
caída na memória e para nunca mais
então acaricio-te as orelhas distraidamente como quem
está duvidoso de comprar e sabe que não deve
apressar o remate
 
 
eu a morrer como se fosse coisa nenhuma cheia de pressa
esmorecida pelo sol eu e eles sentados como se fosse
uma pressa vazia de coisas uma opressão às portas
do grande mercado demasiadamente silencioso e atento
acaricio-te as mãos bem cortadas, o reflexo do
melhor mármore antigo,
eu a morrer como se fosse o menor preço e eles
sentados com os olhos na cara a boiar!
 
 
 
antónio franco alexandre
dos jogos de inverno
poemas
assírio & alvim
1996





 

30 setembro 2025

nuno júdice / setembro

  
A poesia dá-se bem com este mês,
cuja medida se assemelha à do verso – dias
partidos ao meio, deixando a alma indecisa
numa evocação de gastos sentimentos. Mas é
no campo, ao poente, saboreando o cheiro doce
dos frutos que apodrecem na terra, como algas
mortas, que uma voz insistente chama – poe-
sia? Quem, por detrás do seu rosto sonoro e
abstracto? Memória que a noite depressa apaga…
 
 
 
nuno júdice
50 anos de poesia
antologia pessoal (1972-2022)
dom quixote
2024




 

29 setembro 2025

albano martins / solfejo

  

De algumas pedras também às vezes necessitas. Boleadas, como os seixos, são elas que dão consistência à arquitectura do poema. Porque nelas, como no solfejo das algas, resiste ainda, ou é somente o seu resíduo, a música das águas.
 
 
 
albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999




 

28 setembro 2025

al berto / doze moradas de silêncio

  
 
6
 
hoje é o sexto dia,
sexta morada de silêncio
 
anotar os nomes das flores e
suas significações emblemáticas
     absintio / amargura, tristeza
     asfódelo / coração abandonado
     cinerária / dor de coração
     glicínia / ternura
     junquilho / melancolia
     silindra / recordações
anotar os nomes das areias e das argilas mais profundas
os nomes dos insectos e dos minerais
as marcas discretas das coisas cortantes
e recopiar algumas palavras de Amers:
 
          … Tol que j'ai vu dormir dans ma tièdeur de
          femme, comme un nomade roulé dans son étroite
          laine, qu'il te souvienne, ô mon amant, de toutes
          chambres ouvertes sur la mer où nous avons aimé.
 
manter a imobilidade absoluta dos rochedos
recear as falésias onde a lua abriu um sulco
tactear teu rosto disperso pelos ventos
recolher a dor na penumbra do entardecer
 
anunciar a noite com a ponta dum punhal de veludo
espiar o frémito súbito das estrelas… reler tudo
mantendo o corpo em surdina
 
 
al berto
doze moradas de silêncio 1978/1979
o medo
assírio & alvim
1997




 

27 setembro 2025

amadeu baptista / prisão


 

Recebo a mão sobre o ombro que aqui me vem
prender como a mão de um amigo.
Seque a figueira e o fruto prometido,
estaque o vento para todo o sempre,
não seja nunca mais o mar o mar.
Recebo a mão sobre o ombro que aqui me vem
Prender como a mão de um amigo.
 
 
 
amadeu baptista
paixão 2003
caudal de relâmpagos
antologia pessoal 1982-2017
edições esgotadas
2017



 

26 setembro 2025

anna akhmatova / para a poesia

  
 
Tu guiaste-nos através do inexplorado
como uma estrela cadente na escuridão.
Foste a amargura e a mentira.
Nunca o consolo.

 
*
 
A fama nadou como um cisne
através da neblina dourada
e tu, meu amor, foste sempre
o meu desespero.
 
 
 
anna akhmatova
é por isso que a alegria é mais alta
poemas russos dos séculos vinte e vinte um
versões de luís filipe parrado
contracapa
2022




 

25 setembro 2025

leonard cohen / não há tempo para mudar

  
 
Não há tempo para mudar
O olhar para trás
É demasiado tarde
Meu doce livro
 
Demasiado tarde para
Que os homens se envergonhem
Daquilo que eles fazem
Com chamas nuas
 
Demasiado tarde para
Cair sobre a minha espada
Nem sequer tenho espada
Estamos em 2005
 
Como ouso preocupar-me
Com o que tenho a fazer
Ó doce livro
Vens demasiado tarde
 
Não percebeste nada
Da poesia
É toda sobre eles
Não sobre mim
 
 
 
leonard cohen
a chama
poemas
tradução de inês dias
relógio d´agua
2019




24 setembro 2025

wislawa szymborska / os dois macacos de brueghel

  
 
Sonhei assim com o meu exame do fim do liceu:
amarrados por correntes, dois macacos estão sentados à janela,
voa o céu, banha-se o mar
para além dela.
 
É a oral de história humana.
Eu gaguejo, vou-me atolando.
 
Um macaco fixo em mim, irónico vai escutando,
o outro quase dormita –
e no silêncio que se segue à questão posta,
este sussurra-me em segredo uma resposta,
no som baixo da sua trela tilintando.
 
 
 
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998
 



23 setembro 2025

primo levi / as estrelas negras

  
 
Não mais um canto de amor ou de guerra.
 
 
A ordem de onde o cosmos trazia o nome desfez-se;
As legiões celestes são um emaranhado de monstros,
O universo assedia-nos cego, violento e estranho.
O céu está cheio de horríveis sóis mortos,
Sedimentos densíssimos de átomos triturados.
Deles nada emana, senão uma gravidade desesperada,
Nem energia, nem mensagens, nem partículas, nem luz;
A própria luz deixa-se cair, quebrada pelo seu próprio peso,
E todos nós, semente humana, vivemos e morremos para nada,
E os céus revolvem-se perpetuamente em vão.
 
30 de Novembro, 1974
 
 
 
primo levi
a uma hora incerta
trad. rui miguel ribeiro
edições do saguão
2024
 



22 setembro 2025

zbigniew herbert / fragmento de um vaso grego

  

Em primeiro plano vê-se
o corpo formoso de um jovem
 
a barba recai-lhe sobre o peito
um joelho dobrado
os braços como ramos secos
 
fechou os olhos
até a Eros renuncia
 
cujos dedos mergulhados no ar
cabelos soltos
e contornos da túnica
formam três círculos de tristeza
 
ele fechou os olhos
renuncia à armadura de bronze
 
ao belo elmo
adornado com sangue e crista negra
ao escudo quebrado
à lança
 
fechou os olhos
renuncia ao mundo
 
as folhas pairam no ar silente
um ramo treme com a sombra de pássaros em debandada
e somente um grilo escondido
nos cabelos ainda vivos de Mémnon
canta com convicção
o elogio da vida
 
 
 
zbigniew herbert 
poesia quase toda
tradução de teresa fernandes swiatkiewicz
cavalo de ferro
2024
 



21 setembro 2025

joão rebocho / eu pensei



 

 
eu pensei,
no meu livre arbítrio,
trazer-te a este livro
em versos abreviados;
fazer-te o pequeno almoço
escolher música para ti
bravio, a desnivelar:
vai embora liberdade de escolha,
um revólver para eu
aceitar a tua opção
ou dar um tiro no ouvido?
 
 
 
joão rebocho
obrigado é sozinho
edições fantasma
2025
 


 

20 setembro 2025

catarina costa / viagem à tua terra

 


 

 
Procurei-te no cemitério local pelo teu nome e foto
e não te encontrei –
 
a tua ausência era sinal de que ainda estavas vivo
 
não precisei de te ver
para voltar em paz
 
acabara de visitar uma terra misteriosa
com a sua necrópole histórica
e intacta
 
 
 
catarina costa
nervo/25 setembro / dezembro 2025
colectivo de poesia
2025
 



19 setembro 2025

paul auster / meridiano

  
 
Pelo verão afora,
junto ao declive de luz erodida
das nossas mãos, escuras parteiras de dunas:
as tuas pedras
ruindo de volta à vida
à tua volta.
 
Atrás da minha translúcida pálpebra de ébano,
uma estrela prematura,
expurgada de um inferno de bolbos,
ergue-te, inocente,
rumo à manhã, e povoa a tua sombra
de nomes.
 
Rimada de noite. Funda de arado.
Próxima.
 
 
 
paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002
 



18 setembro 2025

paul bowles / ed djouf

  
Chegamos
Em nove etapas, de sete dias cada uma.
Amamo-nos a pontapés.
Morremos de insolação.
Pó de ouro, melodia de cinzas
Confiai-me um dia de silêncio.
Vendi-lhe escorpiões ao longo de trinta e oito milhas.
No desenho animado do horizonte
Irrompem novamente as loucas cristas.
Aqui sente-se a gasolina, o progresso, a agonia.
Em nove etapas, de oito dias cada uma
Chegamos ao silêncio.
 
                                                    1934
 
 
paul bowles
poemas
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
2008





 

17 setembro 2025

john updike / televisão

  
 
Ligo-a como se fosse uma torneira,
nem frio nem quente, só tépido infotenimento,
e dela jorram as provas cintilantes
de conflitos, misérias, concupiscência,
desatrelados pouco a pouco, em remissões
de publicidade ansiosa que antecipa
para nosso bem a melhor vida dependente
de uma compra, de alguma aquisição indispensável.
 
Um carro lustroso dá curvas na chuva murmurante,
uma praia de alvura óssea acolhe peles bronzeadas,
um toalhete acalma as rugas de uma bela enrugada,
um unguento consola a dor sedentária,
dentes falsos resplandecem, a cerveja provoca alegria,
e cabelos pintados arremessam a cor pelo ecrã:
erupções de luz bebidas pelo meu cérebro,
que depressa se cansa, até ficar sequioso outra vez.
 
 
 
john updike
ponto último e outros poemas
trad. ana luísa amaral
civilização editora
2009




16 setembro 2025

paul celan / na selva do sangue

  
 
NA SELVA DO SANGUE, aí
está a despedida, de dedos
finos, em
cada ponta, em forma de
coração, uma
lente, aí
os tigres caçam
o dia.
 
 
 
paul celan
a morte é uma flor
trad. de joão barrento
relógio d´água
2022





15 setembro 2025

cesare pavese / as gerações não envelhecem

  
 
19 de Abril 1940
 
As gerações não envelhecem. Todos os jovens, de qualquer época e civilização, têm as mesmas possibilidades de sempre.
O Império Romano não caiu por causa da decadência da raça (tanto assim é que as gerações contemporâneas, que se sucederam às que tinham visto cair o edifício político, construíram um outro, espiritual – a Igreja Católica), mas pela mudança de condições económicas e sociais, que deslocaram as forças (anquilose económica, descentralização provincial, invasões bárbaras, etc.).
 
 
 
cesare pavese
o ofício de viver - diário (1935-1950)
trad. alfredo amorim
relógio d´água
2004




 

14 setembro 2025

salvador dali /diário de um génio



 
12 de agosto, 1953
 
 
À noite grande largada de balões. Um deles tem a forma de um camponês catalão. Quase que se incendeia e em seguida perde-se no infinito. Quando já está do tamanho de uma pulga, alguns dizem: «Ainda o vejo!», outros: «Perdeu-se!». Alguém julga sempre que pode vê-lo ainda. Isso faz-me pensar na dialéctica de Hegel que é tristíssima porque nela tudo se perde no infinito: cada dia teremos mais necessidade do espaço finito.
 
Vemos cair do céu uma estrela verde-veronese, a maior que já vi e comparo-a a Gala que foi para mim a mais bem visível estrela cadente, a mais bem delimitada, a mais perfeita.
 
 
 
salvador dali
diário de um génio
tradução de josé luís luna
ulisseia
1965
 




 

13 setembro 2025

virgínia woolf / voltamos de roma

  
 
(1926)
Domingo, 1 de Maio
 
 
Voltámos de Roma na quinta-feira à noite; daquela outra vida privada que agora tenciono ter para sempre. Há toda uma existência em Itália: à parte desta. Não se é ninguém em Itália, não se tem um nome, nem vocação, nem passado. E, depois, não há ali apenas a beleza, mas um relacionamento diferente. No conjunto, creio que nunca desfrutei um mês tanto. Que capacidade de desfrutar eu tenho! Gostei de tudo. Quem me dera não ser tão ignorante do italiano, da arte, da literatura, etc. Mas não me posso alargar agora sobre isto, ou penetrar na grande massa de sentimentos que se formou em mim. Quando regressámos, às 11 e meia, encontrámos a Nelly na cama, com uma misteriosa enfermidade dos rins. Isto foi um choque, o café foi um choque, tudo foi um choque. E depois lembrei-me de que o meu livro está prestes a sair. As pessoas dirão que sou irreverente – as pessoas dirão mil coisas. Mas creio, honestamente, que me importo muito pouco desta vez – mesmo em ralação à opinião dos meus amigos. Não tenho a certeza se é bom. Fiquei desiludida quando o li todo a primeira vez. Mais tarde, gostei. De qualquer modo, é o melhor que sei fazer. Mas será bom ler as minhas coisas quando estão impressas, criticamente? É encorajador que, apesar da obscuridade, afectação, etc., as minhas vendas cresçam constantemente. Já vendemos 1220 exemplares antes da publicação, e creio que atingirá os 1500, o que, para uma escritora como eu, não é mau. Mas, para mostrar que sou genuína, dou por mim a pensar noutras cisas, absorvida e esquecendo que sairá na quinta-feira. O Leonard nunca pensa no seu livro. a Vita volta na sexta-feira. Está agradável, frio, limpo, jantamos fora, fuma-se um charuto.
 
 
 
virgínia woolf
diários
trad. jorge vaz de carvalho
relógio d´água
2018





 

12 setembro 2025

joão miguel aragão / planos para a noite

  
 
Compor, decompor madrigais
em madrugadas a ferro e fogo.
Demorar o olhar no ser amado,
armado de amor até aos dentes.
 
 
 
joão miguel aragão
pacto
poética edições
2025



11 setembro 2025

miguel oliva teles / por todo o lado

  
 
os frutos
descem da árvore
as raízes abrem
e o amor
entorna
 
por todo
o lado.
 
 
 
miguel oliva teles
errando
editora urutau
2021




10 setembro 2025

pedro de queirós tavares / fulminantes (em vilar do paraíso)

  
 
Na minha rua brincávamos à roleta-russa
com pistolas de fulminantes
Não era carnaval nem dia das bruxas
em Vilar do Paraíso tímpanos para quê
 
 
pedro de queirós tavares
se tens fósforos
fresca / poetria
2023





09 setembro 2025

miguel bonneville / livro do daniel

  
 
LIV.
 
poder dizer:
aquilo que me dás ao amar-me
é a possibilidade de desaparecer –
 
estou a redescobrir o amor através das palavras.
 
as outras uniões
terão de vir depois.
 
 
 
miguel bonneville
livro do daniel e outros textos
editora urutau
2024




 

08 setembro 2025

izidro alves / metanoia

  
Se fosse hoje
Tinha tirado um curso superior
Talvez de latim e grego
Para falar com os deuses
E nunca nunca nunca
Esta maneira tosca de fazer versos
Este jeito de arquear as mãos
De alimentar os pombos
Nos jardins públicos
Com flores amarelas nos passeios.
 
 
 
izidro alves
cédula do mundo
labirinto
2025




07 setembro 2025

filipe marinheiro / porque nos prendemos a um lugar seguro?




 

 
porque nos prendemos a um lugar seguro?
se o mais importante é a calma, a pureza, a unidade e o modo
como as árvores de mar se enraízam no solo.
– luminoso solo em potência.
 
 
 
filipe marinheiro
a morte do amor
cordel d’ prata
2025
 


 

06 setembro 2025

joão rebocho / a morte

  
 
a morte
caminha ao nosso lado,
carregamo-la às costas,
a vida toda
alimentada na boca,
debruçados no poço;
a de quem nos interessa e amamos,
 
sempre a morte,
do profundo sono
ao cume do Everest,
e também pesa o
medo dela,
trinta vezes mais,
e não peses que é só tédio
repetido
 
 
 
joão rebocho
altas temperaturas
fernando dos santos
2024
 


05 setembro 2025

herberto helder / aberto por uma bala

 



 

 

Aberto por uma bala
de fora para dentro. Como um olhar de Deus,
ou da paisagem,
até à raiz do nervo de que vivo todo.
Aberto, descoberto.
Ou fechado inteiro para sempre.
E ao furo imaginário queimado
reflui o sangue do mundo.
O nó mais duro, o puro nó da carne
– o centro.
Furioso fulcro do espírito.
É aí que penso.
Por onde falo ainda tão depressa
que ressuscito, ardido.
 
 
 
herberto helder
flash
a cura di carlo vittorio cattaneo
empira
roma
1987