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18 junho 2024

roland barthes / incidentes

 
 
 
 
 
Velho cego, mendigo de «djellaba» e de barba branca: imponente, impassível, antigo, sofocleano, odeonesco, enquanto o adolescente que mendiga para ele projecta no rosto toda a carga expressiva que uma situação assim justifica: a expressão torturada, repuxada por um esgar descendente, ostenta a dor, a miséria, a injustiça, a fatalidade: Vejam! Vejam!, diz a cara da criança, vejam aquele que já não pode ver.
 
 
 
roland barthes
incidentes
trad. tereza coelho e alexandre melo
quetzal
1987
 


05 dezembro 2023

roland barthes / incidentes

 




 

 
 
 
Na praça do pequeno Socco, de camisa azul ao vento, figura de Desordem, um rapaz encolerizado (o que significa, neste caso, com todos os traços da loucura) gesticula e invectiva um Europeu (Go home!). Desaparece. Segundos mais tarde, um canto anuncia que se aproxima um enterro; o cortejo aparece. Entre os carregadores (que se revezam) do caixão, o mesmo rapaz, provisoriamente sereno.
 
 
 
roland barthes
incidentes
trad. tereza coelho e alexandre melo
quetzal
1987
 




21 junho 2022

roland barthes / o coração

 
 
CORAÇÃO. Esta palavra vale por todas as espécies de movimentos e desejos, mas o que é constante é que o coração se constitui em objecto de um dom – ignorado ou rejeitado.
 
1.
O coração é o órgão do desejo (o coração incha, desfalece, etc., como o sexo), tal como este é retido, encantado, no campo do Imaginário. O que é que o mundo, o que é que o outro vai fazer do meu desejo? Eis a inquietação onde se concentram todos os movimentos do coração, todos os «problemas» do coração.
 
2.
Werther queixa-se do príncipe de X…: «Ele aprecia o meu espírito e os meus talentos mais do que este coração que, no entanto, é o meu único orgulho […] Ah, tudo o que sei, qualquer outro o pode saber – o meu coração, sou o único a tê-lo».
Esperais-me onde não quero ir: amais onde não estou. Ou ainda: o mundo e eu não nos interessamos pela mesma coisa; e, para minha infelicidade, esta coisa dividida sou eu; não me interesso (diz Werther) pelo meu espírito; não vos interessais pelo meu coração.
 
3.
O coração é o que julgo dar. Sempre que esta dádiva me é devolvida, torna-se insuficiente dizer, como Werther, que o coração é o que resta de mim uma vez desaparecido todo o espírito que me emprestam e que eu não quero: só o coração me fica, e este coração que me fica sobre o coração é o coração destroçado: destroço de um refluxo que o fez encher de si próprio (apenas ao apaixonado e à criança se lhes destroça o coração).
 
 
(X… deve partir por algumas semanas e talvez mesmo mais; quer, à última hora, comprar um relógio para a viagem; a empregada finge: «Deseja o meu? Devia ser bem nova quando os relógios custavam esse preço, etc.»; ela não sabe que tenho o coração destroçado. )
 
 
 
roland barthes
fragmentos de um discurso amoroso
trad. isabel pascoal
edições 70
2017




 

24 outubro 2020

roland barthes / o pobre e o proletário



 
 
O último gag de Charlot foi o de ter transferido metade do seu prémio soviético para a caixa do Padre Pierre. No fundo, isso equivale a estabelecer uma igualdade de natureza entre o proletário e o pobre. Charlot viu sempre o proletário sob a fisionomia do pobre: daí a força humana das suas representações, mas também a sua ambiguidade política. O que é bem visível nesse filme admirável que é Tempos Modernos. Charlot aflora aí sem cessar o tema proletário, mas nunca o assume politicamente; o que ele nos dá a ver é o proletário ainda de olhos fechados e mistificado, definido pela narureza imediata das suas necessidades, e a sua alienação total nas mãos dos seus senhores (patrões e polícias). Para Charlot, o proletário é ainda um homem que tem fome: as representações da fome são sempre épicas em Charlot: grossura excessiva das sanduíches, rios de leite, fruta que deita fora depois de uma mordidela: por uma atitude irrisória, a máquina de comer (de essência patronal) não fornece mais do que alimentos parcelares e notoriamente insípidos. Absorvido na sua fome, o homem-Charlot situa-se sempre imediatamente abaixo da tomada de consciência política: a greve é para ele uma catástrofe, porque ameaça um homem realmente cego pela fome; este homem não se integra na condição operária senão naquele momento em que o proletário e o pobre coincidem debaixo do olhar (e das pancadas) da polícia. Historicamente Charlot coincide mais ou menos com o operário da Restauração, o trabalhador revoltado contra a máquina, desamparado pela greve, fascinado pelo problema do pão (no sentido próprio do termo), mas ainda incapaz de aceder ao conhecimento das causas políticas e à exigência de uma estratégia colectiva.
 
Mas é precisamente porque Charlot personifica uma espécie de proletário em bruto, ainda exterior à Revolução, que a sua força representativa é imensa. Nenhuma obra socialista conseguiu, até agora, exprimir a condição humilhada do trabalhador com tanta violência e generosidade. Só Brecht, talvez, tenha entrevisto a necessidade, para a arte socialista, de surpreender sempre o homem em vésperas da Revolução, isto é, o homem só, ainda de olhos fechados, prestes a abrir-se à luz revolucionária pelo excesso «natural» dos seus sofrimentos. Ao mostrar o operário já empenhado num combate consciente, subsumido pela Causa e pelo Partido, as outras obras dão conta de uma realidade política necessária, mas sem força estética.
 
Ora Charlot, em conformidade com a ideia de Brecht, evidencia a sua cegueira perante o público, de tal modo que este vê, simultaneamente, o cego e o seu espectáculo; ver alguém não ver é a melhor forma de ver intensamente o que ele não vê: assim, são as crianças que denunciam ao Guignol aquilo que ele finge não ver. Por exemplo, Charlot, na sua cela, bem tratado pelos guardas, leva a vida ideal do pequeno-burguês americano: de pernas cruzadas, lê o seu jornal debaixo de um retrato de Lincoln, a suficiência adorável dessa postura desacredita-a completamente, fazendo com que não seja mais possível refugiar-se nela sem se dar conta da nova alienação que contém. As mais leves tentações tornam-se desse modo vãs, e o pobre é assim delas afastado. Em suma, é por isso mesmo que o homem-Charlot triunfa sempre de tudo: porque escapa a tudo, rejeita todas as ordens comanditadas, e nunca investe no homem senão o próprio homem. A sua anarquia, politicamente discutível, representa em arte a forma talvez mais eficaz da revolução.
 
 
 
 
roland barthes
mitologias
trad. josé augusto seabra
edições 70
1988






18 maio 2019

roland barthes / «mostrai-me alguém para desejar»




3.
Para te mostrar onde está o teu desejo, basta proibir-te um pouco (se é verdade que não há desejo sem proibição). X… deseja-me ali, perto dele, mas deixando-o um pouco livre: submisso, ausentando-me por vezes, mas permanecendo pouco afastado: é preciso, por um lado, que esteja presente, criando a proibição (sem a qual não haveria bom desejo), mas que também me afaste no momento em que, formado já este desejo, me arriscasse a estorvá-lo: é necessário que esteja a Mãe suficientemente boa (protectora e liberal) à volta da qual brinca a criança enquanto ela cose calmamente. Tal seria a estrutura do par «bem sucedido»: um pouco de proibição, muito jogo; designar o desejo e depois deixá-lo, à maneira destes indígenas amáveis que nos indicam o caminho certo sem, no entanto, se incomodarem em acompanhar-nos.


roland barthes
fragmentos de um discurso amoroso
trad. isabel pascoal
edições 70
2017





05 março 2019

roland barthes / a espera




6.
Um mandarim estava apaixonado por uma cortesã. «Serei vossa, diz ela, quando tiverdes passado cem noites à minha espera, sentado num tamborete, no meu jardim, debaixo da minha janela.» Mas, à nonagésima nona noite, o mandarim levantou-se, pôs o tamborete debaixo do braço e foi-se embora.


roland barthes
fragmentos de um discurso amoroso
trad. isabel pascoal
edições 70
2017











10 janeiro 2018

roland barthes / a conversa



1.
A linguagem é uma pele: esfrego a minha linguagem contra o outro. É como se tivesse palavras de dedos ou dedos na extremidade das minhas palavras. A minha linguagem treme de desejo. A emoção resulta de um duplo contacto: por um lado, toda uma actividade de discurso vem acentuar discretamente, indirectamente, um significado único, que é «eu desejo-te», e liberta-o, alimenta-o, ramifica-o, fá-lo explodir (a linguagem tem prazer em tocar-se a si própria); por outro lado, envolvo o outro nas minhas palavras, acaricio-o, toco-lhe, mantenho esse contacto, esgoto-me ao fazer durar o comentário ao qual submeto a relação.

(Falar apaixonadamente é gastar sem termo, sem crise; é manter uma relação sem orgasmo. Existe talvez uma forma literária para este coitus reservatus: é a afectação.)



roland barthes
fragmentos de um discurso amoroso
trad. isabel pascoal
edições 70
2017








14 novembro 2017

roland barthes / um pequeno ponto no nariz



5.
O discurso de amor é, normalmente, um envelope liso colado à Imagem, uma luva macia que rodeia o ser amado. É um discurso devoto, cheio de bons sentimentos. Quando a Imagem se altera, dilacera-se a capa de devoção; um tremor modifica a minha própria linguagem. Ferido por uma motivação que surpreende, Werther encara de repente Carlota como uma espécie de comadre, incluindo-a no grupo das companheiras com quem ela tagarela (ela já não é a outra mas sim uma outra entre outras) e diz então desdenhosamente: «minhas mulherzinhas» (meine Weibchen). Uma blasfémia assoma bruscamente aos lábios do sujeito e vem destruir a bênção do apaixonado; está possesso de um demónio que fala pela sua boca, de onde saem, como nos contos de fadas, não flores, mas sapos. Horrível refluxo da Imagem. (o horror da destruição é a angústia de perder.)


roland barthes
fragmentos de um discurso amoroso
trad. isabel pascoal
edições 70
2017




03 agosto 2011

roland barthes / incidentes

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Hoje, 17 de Julho, está um tempo esplêndido. Sentado no banco, pisco os olhos, por brincadeira, como fazem as crianças, e vejo uma margarida do jardim, com todas as proporções alteradas, estender-se sobre a planície em frente, do outro lado da rua.
A rua corre como uma ribeira tranquila; atravessada de quando em quando por uma motocicleta ou um tractor (são estes, hoje em dia, os verdadeiros sons do campo, não menos poéticos, afinal, que o cantar dos pássaros: sendo raros, fazem sobressair o silêncio da natureza e imprimem-lhe a marca discreta de uma actividade humana), a rua lá vai irrigar uma zona mais afastada da aldeia. Já que esta aldeia, apesar de modesta, tem as suas zonas periféricas. Não será sempre a aldeia, em França, um espaço contraditório? Restrita, centrada, ela não deixa de se prolongar até bastante longe; a minha, muito clássica, tem apenas um largo, uma igreja, uma padaria, uma farmácia e duas mercearias (hoje em dia, devia dizer dois self-services); mas tem também, por uma espécie de capricho que perturba as leis aparentes da geografia humana, dois cabeleireiros e dois médicos. França, país de medida? Digamos antes — e isto a todos os níveis da vida nacional: país das proporções complexas.

Do mesmo modo, o meu Sudoeste é extensível, como aquelas imagens que mudam de sentido consoante o nível da percepção em que decido captá-las. Conheço assim, subjectivamente, três Sudoestes.

O primeiro, muito vasto (uma quarta parte da França), é-me designado instintivamente por um sentimento tenaz de solidariedade (pois estou longe de o ter visitado na sua totalidade): qualquer notícia que me chegue desse espaço toca-me de uma forma pessoal. Ao pensar nisto, parece-me que a unidade desse grande Sudoeste é para mim a língua: não o dialecto (pois não conheço nenhuma langue d’oc); mas o sotaque, porque não há dúvida que o sotaque do Sudoeste formou os modelos de entoação que marcaram a minha primeira infância. Este sotaque gascão distingue-se para mim do outro sotaque meridional, o do Sul mediterrânico; este tem, na França de hoje, algo de triunfante: sustentado por todo um folclore cinematográfico (Raimu, Fernandel), publicitário (azeites, limões) e turístico; o sotaque do Sudoeste (talvez mais pesado, menos cantante) não tem esses títulos de modernidade; para se ilustrar tem apenas as entrevistas dos jogadores de rugby. Eu próprio não tenho sotaque; no entanto, ficou-me da infância um «meridionalismo»: digo «socializmo» e não «socialismo» (quem sabe se assim não serão dois socialismos?).

O meu segundo Sudoeste não é uma região; é apenas uma linha, um trajecto vivido. Quando, vindo de Paris de automóvel (uma viagem que fiz mil vezes), passo Angoulême, um sinal avisa-me que passei o limiar da casa e que entro no país da minha infância; um pequeno bosque de pinheiros de um dos lados, uma palmeira no pátio de uma casa, uma determinada altura das nuvens que dá ao terreno a mobilidade de um rosto. Então começa a grande luz do Sudoeste, nobre e subtil ao mesmo tempo; nunca é cinzenta, nunca é baixa (mesmo quando o sol não brilha), é uma luz-espaço, definida menos pelas cores com as quais afecta as coisas (como no outro Sul) do que pela qualidade eminentemente habitável que dá à terra. Não encontro outra forma de o dizer; é uma luz luminosa. É preciso vê-la, a essa luz (eu diria quase ouvi-la, de tal modo é musical), no Outono, que é a estação soberana deste país; líquida, brilhante, dilacerante porque é a última luz bela do ano, iluminando cada coisa na sua diferença (o Sudoeste é um país de micro-climas), preserva este país de toda a vulgaridade, de toda a gregaridade, torna-o impróprio para turismo fácil e revela a sua aristocracia (não é uma questão de classe, mas de carácter). Dizendo isto de uma maneira tão elogiosa, sinto um certo escrúpulo: não haverá nunca momentos ingratos, neste clima do Sudoeste? Há certamente, mas, para mim, não são os momentos de chuva ou de tempestade (frequentes, no entanto); não são apenas os momentos em que o céu está cinzento; os acidentes da luz, aqui, parece-me, não provocam qualquer «spleen»; não afectam a alma, mas apenas o corpo, por vezes viscoso de humidade, embriagado de clorofila, ou fatigado, extenuado pelo vento de Espanha que torna os Pirinéus muito próximos de um tom violeta: sentimento ambíguo, em que o cansaço acaba por ter algo de delicioso, como acontece sempre que é o meu corpo (e não o meu olhar) a perturbar-se.

O meu terceiro Sudoeste é ainda mais reduzido: é a cidade onde passei a minha infância, e depois as minhas férias de adolescente (Bayonne), é a aldeia onde volto todos os anos, é o trajecto que liga uma à outra e que eu percorri tantas vezes, para ir à cidade comprar charutos ou artigos de papelaria, ou à estação buscar um amigo. Posso escolher entre várias estradas; uma, mais longa, passa pelo interior das terras, atravessa uma paisagem em que se misturam o Béarn e o país Basco; outra, uma deliciosa estrada de campo, segue o cume das encostas que dominam o Adour; do outro lado do rio, vejo uma fileira contínua de árvores, escuras por estarem longe: são os pinheiros das Landes; uma terceira estrada, muito recente (data deste ano), corre ao longo do Adour, na sua margem esquerda: não tem qualquer interesse, a não ser o da rapidez do trajecto e, por vezes, de fugida, o rio, muito largo, muito suave, ponteado pelas pequenas velas brancas de um clube náutico. Mas a estrada que eu prefiro e que de vez em quando escolho seguir por prazer, é a que acompanha a margem direita do Adour; antigamente, servia para rebocar barcos, e vêem-se algumas quintas e casas bonitas. Certamente gosto dela por ter, pela sua natureza, essa dosagem de nobreza e familiaridade que é própria do Sudoeste; poder-se-ia dizer que, ao contrário da sua rival da outra margem, é ainda uma verdadeira estrada, não uma via funcional de comunicação, mas como uma experiência complexa, onde têm simultaneamente lugar um espectáculo contínuo (o Adour é um belo rio desconhecido) e a memória de uma prática ancestral, a de andar, a penetração lenta e como que ritmada da paisagem, que imediatamente adquire outras proporções; retoma-se neste ponto o que ficou dito no princípio, e que é no fundo o poder que tem este país de frustrar a imobilidade e a rigidez dos postais; não vale a pena fotografar; para avaliar, para amar, é preciso vir e ficar, de modo a poder percorrer todas as variações dos lugares, das estações, dos climas, das luzes.

Dir-me-ão: limita-se a falar do tempo, de impressões vagamente estéticas, em todo o caso puramente subjectivas. Mas os homens, as relações, as indústrias, os comércios, os problemas? Mesmo como simples residente, não se apercebe de nada disso? — Entro nestas regiões da realidade à minha maneira, quer dizer, com o meu corpo; e o meu corpo é a minha infância, exactamente como a fez a história. Essa história proporcionou-me uma juventude provincial, meridional, burguesa. Para mim, estas três componentes são indistintas; a burguesia é para mim a província, e a província é Bayonne; o campo (da minha infância), é sempre o interior de Bayonne, rede de excursões, de visitas e de histórias. Por isso, na idade em que a memória se forma, das «grandes realidades» só aproveitei a sensação que me provocavam: alpercheiros, cansaços, sons de vozes, passeios, luzes, tudo aquilo que, do real, é de certo modo irresponsável e não tem mais nenhum sentido a não ser o de mais tarde formar a recordação do tempo perdido (completamente diferente foi a minha infância parisiense: cheia de dificuldades materiais teve, se assim se pode dizer, a abstracção severa da pobreza, e não tenho quaisquer «impressões» do Paris dessa época). Se falo deste Sudoeste exactamente como a sua recordação é refractada em mim, é por acreditar na fórmula de Joubert: «Não devemos exprimir-nos como sentimos, mas como recordamos».

Estas insignificâncias são, portanto, como as portas de entrada dessa vasta região de que se ocupam o saber sociológico e a análise política. Nada, por exemplo, tem mais importância nas minhas recordações do que os cheiros desse bairro antigo, entre Nive e Adour, a que se chama o Petit-Bayonne: todos os objectos do pequeno comércio ali se misturam, compondo uma fragância inimitável; a corda das sandálias (aqui, não se diz «alpergatas»), trabalhada por velhos Bascos, o chocolate, o azeite espanhol, o ar confinado das lojas obscuras e das ruas estreitas, o papel envelhecido dos livros da biblioteca municipal, tudo isso funcionava como a fórmula química de um comércio desaparecido (ainda que este bairro conserve um pouco desse encanto antigo), ou, mais exactamente, funciona hoje como a fórmula dessa desaparição. Através do cheiro, é a própria mudança de um tipo de consumo que eu apreendo: as sandálias (de sola tristemente forrada a borracha) já não são artesanais, o chocolate e o azeite compram-se fora da cidade, num supermercado. Acabaram os cheiros, como se, paradoxalmente, os progressos da poluição urbana expulsassem os perfumes domésticos, como se a «pureza» fosse uma forma pérfida da poluição.

Outra introdução: conheci, na minha infância, muitas famílias da burguesia de Bayonne (Bayonne, nessa época, tinha algo de balzaquiano); conheci os seus hábitos, os seus ritos, as suas conversas, o seu modo de vida. Essa burguesia liberal era cheia de preconceitos, e não de capital; havia uma espécie de distorção entre a ideologia dessa classe (francamente reaccionária) e o seu estatuto económico (por vezes trágico). Esta distorção, nunca a reteve a análise sociológica ou política, que funciona como um passador largo e deixa fugir as «subtilezas» da dialéctica social. Ora essas subtilezas — ou esses paradoxos da História — mesmo não sabendo formulá-los, sentia-os: já «lia» o Sudoeste, percorria o texto que vai da luz de uma paisagem, do peso de um dia enlanguescido sob o vento de Espanha, a todo o tipo de discurso, social e provincial. Porque «ler» um país é antes de mais nada descobri-lo através do corpo e da memória, segundo a memória do corpo. Penso que é a esse vestíbulo do saber e da análise que está destinado o escritor: mais consciente dos próprios interstícios da competência. É por isso que a infância é a via real para através dela conhecermos um país da melhor maneira. No fundo, só há País se for o da infância.

1977, L’Humanité





roland barthes 
incidentes
trad. tereza coelho e alexandre melo
quetzal
1987
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05 abril 2006

book zapping #006 roland barthes


O ROSTO DE GARBO

Garbo pertence ainda a essa fase do cinema em que a percepção do rosto humano lançava a maior perturbação no meio das multidões, em que as pessoas se sentiam literalmente perdidas numa imagem humana como num filtro, em que o rosto constituía uma espécie de estado absoluto da carne, que não podia ser atingido nem abandonado. Alguns anos antes, o rosto de Valentino provoca suicídios; o de Garbo participa ainda do mesmo reinado do amor cortês, em que a carne gera sentimentos místicos de perdição.
Trata-se, indubitavelmente, de um admirável rosto-objecto; na Rainha Cristina, filme que foi reposto em Paris nos últimos anos, a caracterização tem a espessura de uma camada de neve, como se fosse uma máscara; não é um rosto pintado, é um rosto de gesso, defendido pela superfície da cor e não pelas suas linhas; por sobre toda esta neve ao mesmo tempo frágil e compacta, só os olhos, negros como uma polpa bizarra, mas de maneira nenhuma expressivos, são como duas nódoas um pouco trémulas. Mesmo em toda a sua extrema beleza, esta face, que não é desenhada, mas antes esculpida numa matéria lisa e esfarelável, o que quer dizer que é simultaneamente perfeita e efémera, aproxima-se da face enfarinhada de Charlot, dos seus olhos de vegetal sombrio, do seu rosto de tóteme.
Ora, a tentação da máscara total (a máscara antiga, por exemplo) implica talvez não tanto o tema do oculto (caso das mascarilhas italianas) como o de um arquétipo do rosto humano. Garbo dava a ver uma espécie de ideia platónica da criatura, e é isso que explica que o seu rosto seja quase assexuado, sem todavia ser ambíguo. Ë verdade que o filme se presta a essa indeterminação (a rainha é sucessivamente uma mulher e um jovem cavaleiro); mas a Garbo não realiza nenhuma proeza de disfarce; ela é sempre igual a si mesma, ostentando sem fingimento, debaixo da coroa ou dos seus grandes chapéus de feltro de abas caídas, o mesmo rosto de neve e de solidão. O seu apelido de Divina visava, sem dúvida, menos a expressão de um estado superlativo da beleza do que a essência dia sua pessoa corpórea, caída de um céu em que as coisas são criadas e acabadas na maior das claridades. Ela própria tinha consciência disso: quantas actrizes consentiram em deixar entrever à multidão o amadurecimento inquietante da sua beleza! Ela, não: era preciso que a sua essência se não degradasse, que o seu rosto não conhecesse nunca outra realidade além da perfeição intelectual, mais ainda do que plástica. A Essência foi-se obscurecendo pouco a pouco, progressivamente recoberta pelo véu dos óculos, dos chapéus e dos exílios; mas não se alterou nunca.
E, contudo, sobre este rosto divinizado, algo de mais agudo do que uma máscara se desenha: uma espécie de relação voluntária, e portanto humana, entre a curva das narinas e a arcada das sobrancelhas, uma função pouco vulgar, individual, entre essas duas zonas da face; a máscara não é senão a adição das linhas, o rosto é antes de mais uma referência temática de umas às outras. O rosto da Garbo representa esse momento frágil em que o cinema vai extrair de uma beleza essencial uma beleza existencial, em que o arquétipo vai ser inflectido para a fascinação dos rostos transitórios, em que a claridade das essências carnais vai dar lugar a uma lírica da mulher.
Enquanto momento de transição, o rosto da Garbo concilia duas idades iconográficas, assegura a passagem do terror ao encanto. Como se sabe, encontramo-nos hoje no outro pólo desta evolução: o rosto de Audrey Hepburn, por exemplo, é individualizado, não só pela sua temática particular (a mulher infantil, a mulher felina), mas também pela sua própria pessoa, por uma especificação quase única do rosto, que nada mais tem de essencial, mas é constituído por uma complexidade infinita de funções morfológicas. Como linguagem, a singularidade da Garbo era de natureza conceptual, a de Audrey Hepburn de natureza substancial, O rosto da Garbo é a incarnação da Ideia, o de Hepburn a do Acontecimento.



Mitologias
Roland Barthes
Edições 70
1988