24 outubro 2020

roland barthes / o pobre e o proletário



 
 
O último gag de Charlot foi o de ter transferido metade do seu prémio soviético para a caixa do Padre Pierre. No fundo, isso equivale a estabelecer uma igualdade de natureza entre o proletário e o pobre. Charlot viu sempre o proletário sob a fisionomia do pobre: daí a força humana das suas representações, mas também a sua ambiguidade política. O que é bem visível nesse filme admirável que é Tempos Modernos. Charlot aflora aí sem cessar o tema proletário, mas nunca o assume politicamente; o que ele nos dá a ver é o proletário ainda de olhos fechados e mistificado, definido pela narureza imediata das suas necessidades, e a sua alienação total nas mãos dos seus senhores (patrões e polícias). Para Charlot, o proletário é ainda um homem que tem fome: as representações da fome são sempre épicas em Charlot: grossura excessiva das sanduíches, rios de leite, fruta que deita fora depois de uma mordidela: por uma atitude irrisória, a máquina de comer (de essência patronal) não fornece mais do que alimentos parcelares e notoriamente insípidos. Absorvido na sua fome, o homem-Charlot situa-se sempre imediatamente abaixo da tomada de consciência política: a greve é para ele uma catástrofe, porque ameaça um homem realmente cego pela fome; este homem não se integra na condição operária senão naquele momento em que o proletário e o pobre coincidem debaixo do olhar (e das pancadas) da polícia. Historicamente Charlot coincide mais ou menos com o operário da Restauração, o trabalhador revoltado contra a máquina, desamparado pela greve, fascinado pelo problema do pão (no sentido próprio do termo), mas ainda incapaz de aceder ao conhecimento das causas políticas e à exigência de uma estratégia colectiva.
 
Mas é precisamente porque Charlot personifica uma espécie de proletário em bruto, ainda exterior à Revolução, que a sua força representativa é imensa. Nenhuma obra socialista conseguiu, até agora, exprimir a condição humilhada do trabalhador com tanta violência e generosidade. Só Brecht, talvez, tenha entrevisto a necessidade, para a arte socialista, de surpreender sempre o homem em vésperas da Revolução, isto é, o homem só, ainda de olhos fechados, prestes a abrir-se à luz revolucionária pelo excesso «natural» dos seus sofrimentos. Ao mostrar o operário já empenhado num combate consciente, subsumido pela Causa e pelo Partido, as outras obras dão conta de uma realidade política necessária, mas sem força estética.
 
Ora Charlot, em conformidade com a ideia de Brecht, evidencia a sua cegueira perante o público, de tal modo que este vê, simultaneamente, o cego e o seu espectáculo; ver alguém não ver é a melhor forma de ver intensamente o que ele não vê: assim, são as crianças que denunciam ao Guignol aquilo que ele finge não ver. Por exemplo, Charlot, na sua cela, bem tratado pelos guardas, leva a vida ideal do pequeno-burguês americano: de pernas cruzadas, lê o seu jornal debaixo de um retrato de Lincoln, a suficiência adorável dessa postura desacredita-a completamente, fazendo com que não seja mais possível refugiar-se nela sem se dar conta da nova alienação que contém. As mais leves tentações tornam-se desse modo vãs, e o pobre é assim delas afastado. Em suma, é por isso mesmo que o homem-Charlot triunfa sempre de tudo: porque escapa a tudo, rejeita todas as ordens comanditadas, e nunca investe no homem senão o próprio homem. A sua anarquia, politicamente discutível, representa em arte a forma talvez mais eficaz da revolução.
 
 
 
 
roland barthes
mitologias
trad. josé augusto seabra
edições 70
1988






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