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01 fevereiro 2023

francis ponge / o pão



 

A superfície do pão é maravilhosa primeiro por causa desta impressão quase panorâmica que dá: como se se tivesse ao dispor, sob a mão, os Alpes, o Taurus ou a Cordilheira dos Andes.
 
Assim pois uma massa amorfa enquanto arrota foi introduzida para nós no forno estelar, onde, endurecendo, se afeiçoou em vales, cumes, ondulações, ravinas… E todos esses planos desde então tão nitidamente articulados, essas lajes finas em que a luz aplicadamente deita os seus lumes, – sem um olhar sequer para a flacidez ignóbil subjacente.
 
Esse lasso e frio subsolo que se chama o miolo tem o seu tecido semelhante ao das esponjas: folhas ou flores são aí como irmãs siamesas soldadas por todos os cotovelos ao mesmo tempo. Logo que o pão endurece essas flores murcham e contraem-se: destacam-se então umas das outras e a massa torna-se por isso friável.
 
Mas quebremo-la, calemo-nos: porque o pão deve ser na nossa boca menos objecto de respeito do que de refeição.
 
 
 
francis ponge
le parti pris des choses
alguns poemas
tradução de manuel gusmão
livros cotovia
1996


 



17 agosto 2020

francis ponge / o ciclo das estações




Cansadas de se terem contraído todo o inverno as árvores de repente gabam-se de ser enganadas: soltam as suas palavras, uma onda, um vómito de verde. Tentam alcançar uma folheação completa de palavras. Tanto pior! As coisas arranjar-se-ão como puderem! E, na realidade, arranjam-se! Nenhuma liberdade na folheação… As árvores lançam, pelo menos é o que pensam, não importa que palavras, lançam caules para neles suspenderem mais palavras: os nossos troncos, pensam elas, aqui estão para tudo assumirem. Esforçam-se por se esconderem, por se confundirem umas nas outras. Julgam poder dizer tudo, cobrir inteiramente o mundo com palavras variadas: mas não dizem senão «as árvores». Incapazes até de reter os pássaros que delas voltam a partir, embora se alegrassem por terem produzido tão estranhas flores. Sempre a mesma folha, o mesmo modo de desdobramento, e o mesmo limite, sempre folhas simétricas umas às outras, simetricamente suspensas! Tenta mais uma folha! — A mesma! Mais outra! A mesma! Em suma, nada poderia pará-las senão de súbito esta observação: «Não se sai das árvores por meios de árvore». Um novo cansaço, e uma nova mudança moral. «Deixemos tudo isto amarelecer, e cair. Que venha o taciturno estado, o despojamento, o OUTONO.»



francis ponge
le parti pris des choses
alguns poemas
tradução de manuel gusmão
livros cotovia
1996






16 janeiro 2020

francis ponge / o fogo



     O fogo classifica: primeiro, todas as chamas se dirigem num certo sentido…
     (Não se pode comparar o andar do fogo senão ao dos animais: é preciso que ele deixe um lugar para vir a ocupar um outro; anda ao mesmo tempo como uma amiba e como uma girafa, sacode o pescoço, rasteja de pé)…
     Depois, enquanto as massas metodicamente contaminadas desabam, os gases que se libertam vão sendo transformados numa única rampa de borboletas.


francis ponge
alguns poemas
tradução de manuel gusmão
livros cotovia
1996











27 janeiro 2019

francis ponge / doze pequenos escritos




I
Desculpem esta aparência de defeito nas nossas relações. Nunca saberei explicar-me.

Ser-vos-á impossível considerar-me a cada encontro como um bolo? Agora rio-me de falar disto tão a sério, varo Horatio! Tanto pior! Qualquer que seja vinda de mim a palavra guarda-me melhor que o silêncio. A minha cabeça de morto parecerá iludida pela sua expressão. Isso não acontecia a Yorick quando falava.

II
Forçado muitas vezes a fugir pela palavra, que ao menos eu tenha podido por vezes desfigurar um pouco, revirada por um golpe de estilo, essa bela linguagem, para que em suma ela renomeie Ponge segundo Paulhan.



francis ponge
alguns poemas
tradução de manuel gusmão
livros cotovia
1996






10 outubro 2018

francis ponge / fôssemos apenas um corpo




*
Fôssemos apenas um corpo e seguramente estaríamos em equilíbrio com a natureza.

Mas a nossa alma está do mesmo lado que nós na balança.

Leve ou pesada, não sei.

Memória, imaginação, afectos imediatos tornam-na mais pesada; todavia temos a palavra (ou qualquer outro meio de expressão); cada palavra que pronunciamos torna-nos mais leves. Na escrita, ela passa mesmo para o outro lado.

Leves ou pesados, não sei de facto, mas precisamos de um contrapeso.



francis ponge
alguns poemas

tradução de manuel gusmão
livros cotovia
1996