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13 setembro 2025

virgínia woolf / voltamos de roma

  
 
(1926)
Domingo, 1 de Maio
 
 
Voltámos de Roma na quinta-feira à noite; daquela outra vida privada que agora tenciono ter para sempre. Há toda uma existência em Itália: à parte desta. Não se é ninguém em Itália, não se tem um nome, nem vocação, nem passado. E, depois, não há ali apenas a beleza, mas um relacionamento diferente. No conjunto, creio que nunca desfrutei um mês tanto. Que capacidade de desfrutar eu tenho! Gostei de tudo. Quem me dera não ser tão ignorante do italiano, da arte, da literatura, etc. Mas não me posso alargar agora sobre isto, ou penetrar na grande massa de sentimentos que se formou em mim. Quando regressámos, às 11 e meia, encontrámos a Nelly na cama, com uma misteriosa enfermidade dos rins. Isto foi um choque, o café foi um choque, tudo foi um choque. E depois lembrei-me de que o meu livro está prestes a sair. As pessoas dirão que sou irreverente – as pessoas dirão mil coisas. Mas creio, honestamente, que me importo muito pouco desta vez – mesmo em ralação à opinião dos meus amigos. Não tenho a certeza se é bom. Fiquei desiludida quando o li todo a primeira vez. Mais tarde, gostei. De qualquer modo, é o melhor que sei fazer. Mas será bom ler as minhas coisas quando estão impressas, criticamente? É encorajador que, apesar da obscuridade, afectação, etc., as minhas vendas cresçam constantemente. Já vendemos 1220 exemplares antes da publicação, e creio que atingirá os 1500, o que, para uma escritora como eu, não é mau. Mas, para mostrar que sou genuína, dou por mim a pensar noutras cisas, absorvida e esquecendo que sairá na quinta-feira. O Leonard nunca pensa no seu livro. a Vita volta na sexta-feira. Está agradável, frio, limpo, jantamos fora, fuma-se um charuto.
 
 
 
virgínia woolf
diários
trad. jorge vaz de carvalho
relógio d´água
2018





 

02 fevereiro 2024

virgínia woolf / muito bem. todos envelhecemos

 




 

(1923)
Terça-feira, 18 de Setembro
 
 
Muito bem. Todos envelhecemos; ficamos mais encorpados: perdemos a nossa flexibilidade e impressionabilidade. Até o Morgan me parece estar alicerçado nalguma rocha oculta. Falando de Proust e Lawrence, ele disse que preferia ser o Lawrence; mas preferia muito mais ser ele próprio. Discutimos os seus romances. Não julgo que seja um romancista, disse ele. De repente eu disse: “Não, não acho que seja.” Ah, exclamou ele avidamente, interessado, nada decepcionado. Mas o L. contestou isto. “Não estou de modo algum abatido por causa da minha carreira literária”, disse ele. Acho que decidiu que tem muito a que recorrer. É reservado, sereno, um snob, diz ele, que só lê obras-primas. Tivemos uma longa cavaqueira sobre criadas. Mas está a ficar frio e escuro. Vou sair para ir ao encontro do L.
 
 
 
virgínia woolf
diários
trad. jorge vaz de carvalho
relógio d´água
2018
 



02 outubro 2022

virgínia woolf / o oculista disse-me esta tarde

 
 
(1929)
Sexta-feira, 31 de Maio
 
 
 
O oculista disse-me esta tarde: “Talvez a senhora já não seja tão jovem como era”. Esta é a primeira vez que me dizem isto; pareceu-me uma afirmação espantosa. Significa que agora pareço a um estranho não uma mulher, mas uma senhora idosa. Porém, mesmo assim, embora me sentisse enrugada e envelhecida durante uma hora, e adoptasse uma atitude de grande sabedoria e tolerância, ao comprar um casaco, mesmo assim, depressa me esqueci; e volto a ser uma “mulher”.
 
Votámos em Rodmell. Vi uma senhora de luvas brancas a ajudar um velho casal de lavradores a descer do Daimler dela. comprámos uma máquina de cortar relva a motor. Tudo parece um pouco estranho e simbólico quando regresso. Estava com uma disposição estranha, achando-me muito velha: mas agora volto a ser uma mulher – como sou sempre quando escrevo. Dispersa-me e acalora-me este viajar de automóvel de um lado para o outro.
 
 
 
virgínia woolf
diários
trad. jorge vaz de carvalho
relógio d´água
2018
 




27 março 2021

virgínia woolf / está uma noite lindíssima

 
 
(1921)
Quinta, 15 de Setembro
 
 
Está uma noite lindíssima – serena; o cavalo branco e o cavalo baio pastam juntos; as mulheres saem de casa sem motivo e ficam a olhar: ou a tricotar; o galo debica no prado no meio das galinhas; há estorninhos nas duas árvores, os campos de Asheham depois da ceifa ficaram da cor da belbutina branca; o Leonard está a armazenar maçãs por cima da minha cabeça. E o sol entra por uma cortina de pérolas de vidro; de modo que o vermelho e o verde das maçãs que ainda estão nas árvores fica pálido; a torre da igreja, uma mão-de-judas em prata erguendo-se entre as árvores. Irá isto evocar alguma coisa? Estou tão ansiosa por guardar este retalho, sabes. (…)
 
 
virgínia woolf
diário primeiro volume 1915-1926
trad. maria josé jorge
bertrand editora
1985

 




23 novembro 2019

virgínia woolf / calor, calor, calor



(1940)
Quinta-feira, 5 de Setembro



Calor, calor, calor. Uma onda de calor que bate recordes, um Verão de recordes, se mantivéssemos um registo este Verão. Às 2 e meia um avião zumbe; passados 10 minutos sereias de ataque aéreo; 20 minutos depois, fim do alerta. Calor, repito; e tenho dúvidas que seja uma poetisa. Uma ideia. Todos os escritores são infelizes. A imagem do mundo nos livros é por isso demasiado negra. Os que não têm palavras são os felizes. Não é uma imagem verdadeira do mundo; apenas uma imagem de escritor. São felizes os músicos, os pintores? É o seu mundo mais feliz? Agora, em camisa de dormir, vou passear nos pauis.



virgínia woolf
diários
trad. Jorge vaz de carvalho
relógio d´água
2018





17 outubro 2018

virgínia woolf / shakespeare




1930
Domingo, 13 de Abril

Li Shakespeare imediatamente após ter acabado de escrever, quando a minha mente está boquiaberta, ao rubro e fogosa. Então é assombroso. Nunca tinha percebido ainda quão surpreendente é o seu alcance, velocidade e capacidade de cunhar palavras, até sentir como me deixa completamente para trás e vence a minha, parecendo começar a par, e depois vejo-o adiantar-se e fazer coisas que não poderia imaginar na minha mais desenfreada agitação e máxima pressão mental. Mesmo as menos conhecidas e piores das suas peças são escritas a uma velocidade que é mais rápida do que a mais rápida de qualquer outra pessoa; e as palavras derramam-se tão depressa que não nos é possível recolhê-las. Evidentemente a flexibilidade da sua mente era tão completa que ele podia polir qualquer sequência de pensamentos; e, ao relaxar, deixar cair uma chuva dessas flores desconsideradas, para quê, então, qualquer outra pessoa tentar escrever? Isto não é “escrever” de todo. De facto, podia dizer que Shakespeare supera completamente a literatura, que soubesse o que queria dizer.



virgínia woolf
diários
trad. de jorge vaz de carvalho
relógio d´água
2018









06 julho 2018

virgínia woolf / o passado




(1925)
Quarta, 18 de Março


(…) Neste momento (sete e meia, antes do jantar) apenas posso anotar que o passado é belo porque uma pessoa nunca se apercebe de uma emoção na altura. Expande-se mais tarde e assim não temos emoções completas sobre o presente, apenas sobre o passado. Isto ocorreu-me na gare de Reading ao ver a Nessa e o Quentin darem um beijo, ele aproximando-se timidamente, contudo com uma certa emoção. Isto vou lembrar, e hei-de valorizar, quando estiver separado de toda aquela trapalhada que é atravessar a gare, procurar o autocarro, etc. É por isso que damos importância ao passado, acho eu. (…)


virgínia woolf
diário primeiro volume 1915-1926
trad. maria josé jorge
bertrand editora
1985








11 julho 2011

virgínia woolf / mrs. dalloway

 
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(…)

Uma terrível confissão (pôs novamente o chapéu), mas a verdade é que, agora, aos cinquenta e três anos, quase que não se precisa dos outros. A vida em si, cada momento da vida, cada gota sua, aqui, neste instante, agora, ao Sol, era suficiente. Demasiado, até. Uma vida inteira, agora que está adquirido o poder, era demasiado curta para se lhe gozar todo o sabor; para extrair-lhe cada grama de prazer, cada sombra de sentido; uma e outra coisa muito mais consistentes que antes, muito menos pessoais. Impossível que ele pudesse sofrer de novo como Clarisse o fizera sofrer. Passava horas e dias sem pensar em Daisy.

Amaria, então? Mas onde a desolação, a tortura, a extraordinária paixão daqueles dias? Era uma coisa completamente diversa – uma coisa muito mais agradável – pois a verdade era que ela agora estava enamorada dele. Foi talvez por isso que, quando o navio zarpou, sentiu um extraordinário alívio e o que mais desejara era estar sozinho, e aborrecera-lhe achar na cabina todas as atenções dela – cigarros, papel, uma manta de viagem. Todos, se fossem sinceros, diriam o mesmo, não se precisa dos outros depois dos cinquenta; não se precisa andar a dizer às mulheres que são lindas; eis o que a maioria dos cinquentões devia confessar, pensou Peter, se fossem sinceros.
(…)





virgínia woolf
mrs. dalloway
trad. mário quintana
livros do brasil
1954
 
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24 julho 2008

citações - virgínia woolf





(1920)
Segunda, 25 de Outubro (primeiro dia da hora de Inverno)


Porque será a vida tão trágica?, tão semelhante a uma pequena faixa de passeio sobre um abismo. Olho para baixo; sinto vertigens; não sei se vou conseguir caminhar até ao fim. Mas porque sentirei eu isto? Agora que o digo já não o sinto. Tenho a lareira acesa, vamos à Beggar’s Opera. Só que isto paira em mim; não posso fechar os olhos a isto. É uma sensação de impotência: a sensação de não estar a realizar nada. Aqui estou eu, em Richmond, e, como uma lanterna no meio de um campo, a minha luz esfuma-se na escuridão. A melancolia diminui à medida que vou escrevendo. Então porque não escrevo eu mais vezes sobre isto? Bom, a vaidade proíbe-mo. Quero ser um êxito até aos meus próprios olhos. Contudo, este não é o fulcro da questão. É que não tenho filhos, vivo afastada dos amigos, não consigo escrever bem, gasto muito dinheiro em comida, envelheço – dou demasiada importância aos quês e porquês; dou demasiada importância a mim mesma. Não gosto que o tempo esmoreça. Se assim é, então trabalha. Pois é, mas o trabalho cansa-me logo – só posso ler um bocadinho, uma hora a escrever e já não posso mais. Ninguém vem para aqui entreter-se um bocado. Se isso acontece, zango-me. Ir a Londres é um esforço enorme. Os filhos da Nessa crescem e não posso tê-los cá para o lanche, nem levá-los ao Jardim Zoológico. O dinheiro para os meus alfinetes não dá para muito. Contudo, tenho a certeza de que estas coisas são triviais: é a própria vida, penso eu por vezes, que é assim tão trágica para esta nossa geração – não há um cabeçalho de jornal que não tenha um grito de agonia de alguém. Esta tarde foi o MeSwiney, e a violência na Irlanda; ou então é uma greve. Há infelicidade em todo o lado; está mesmo atrás da porta; ou há estupidez, o que é pior. Mesmo assim, não consigo arrancar este espinho. Sinto que voltar a escrever o Jacob’s Room me vai fazer recuperar a fibra. Acabei o Evelyn: mas não gosto do que escrevo agora. E apesar de tudo isto como sou feliz – se não fosse esta sensação de haver uma faixa de passeio sobre um abismo.







virgínia woolf
diário primeiro volume 1915-1926
trad. maria josé jorge
bertrand editora
1985






20 junho 2006

citações

“Quinta, 22 de Novembro

(...) Fui jantar com o Roger [ Fitzroy Street] e encontrei-me com o Clive. Sentámo-nos à volta da mesa quadrada e baixa, coberta com uma bandana, e comemos de travessas, cada uma com uma espécie diferente de feijão ou alface: comida deliciosa, para variar. Bebemos vinho, e a terminar comemos um queijo branco e macio, com açúcar. Depois, pairando esplendidamente acima de personalidades, falou-se de literatura e de estética.
“Sabe, Clive, descobri um pouco mais acerca do que é essencial a qualquer arte: sabe, a arte é representativa. Diz-se a palavra árvore e vê-se uma árvore. Muito bem. Ora todas as palavras têm uma aura. A poesia combina as diversas auras numa sequência…” Foi mais ou menos assim. Eu disse que se pode, e é o que se faz realmente, escrever com frases, e não apenas com palavras; o que não fez avançar muito a discussão. O Roger perguntou-me se eu baseava a minha escrita numa textura ou numa estrutura; associei estrutura com enredo e portanto disse: “textura”. Depois discutimos o significado de estrutura e de textura na pintura e na literatura. Depois discutimos Shakespeare, e o Roger disse que a ele Giotto o entusiasmava precisamente da mesma maneira. Isto continuou até que me forcei a sair, precisamente às dez. E discutiu-se também poesia chinesa; o Clive disse que era demasiado longínqua para se poder compreender. O Roger comparou a poesia com as pinturas. Gostei muito de tudo aquilo (isto é, gostei da conversa). Há sem dúvida muita coisa que é perfeitamente vaga, e que não é para se levar a sério, mas esta atmosfera faz urna pessoa ter ideias e, em vez de se ter de as abreviar ou de as desenvolver em muitíssimas palavras, pode-se simplesmente dizê-las que há logo quem as entenda - ou melhor, quem discorde. O nosso velho Roger tem uma visão deprimente, não da nossa vida, mas do futuro do mundo; mas creio ter detectado a influência de Trotter e das massas, de modo que não lhe dei crédito . Mas quando saí para Charlotte Street, onde se deu o crime do Bloomsbury há uma ou duas semanas, e vi uma multidão atropelando-se na estrada e ouvi mulheres a insultarem-se e outras que, atraídas pelo barulho, acorriam, deliciadas — toda esta sordidez me fez pensar que ele era bem capaz de ter razão.
Hoje o dia tem estado perfeitamente quente e muito sereno, e nós só tivemos tempo, depois de acabar de imprimir uma página, de chegar até ao rio e ver tudo reflectido perfeitamente a direito na água. O telhado vermelho de uma casa tinha a sua nuvenzinha de vermelho no rio – as luzes acesas da ponte desenhavam longas listas em amarelo – muito tranquilo, e como se fosse o coração do Inverno. “


Virgínia Woolf,
Diário primeiro volume 1915-1926, trad. Maria José Jorge, Bertrand Editora, 1985