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02 fevereiro 2024

virgínia woolf / muito bem. todos envelhecemos

 




 

(1923)
Terça-feira, 18 de Setembro
 
 
Muito bem. Todos envelhecemos; ficamos mais encorpados: perdemos a nossa flexibilidade e impressionabilidade. Até o Morgan me parece estar alicerçado nalguma rocha oculta. Falando de Proust e Lawrence, ele disse que preferia ser o Lawrence; mas preferia muito mais ser ele próprio. Discutimos os seus romances. Não julgo que seja um romancista, disse ele. De repente eu disse: “Não, não acho que seja.” Ah, exclamou ele avidamente, interessado, nada decepcionado. Mas o L. contestou isto. “Não estou de modo algum abatido por causa da minha carreira literária”, disse ele. Acho que decidiu que tem muito a que recorrer. É reservado, sereno, um snob, diz ele, que só lê obras-primas. Tivemos uma longa cavaqueira sobre criadas. Mas está a ficar frio e escuro. Vou sair para ir ao encontro do L.
 
 
 
virgínia woolf
diários
trad. jorge vaz de carvalho
relógio d´água
2018
 



02 outubro 2022

virgínia woolf / o oculista disse-me esta tarde

 
 
(1929)
Sexta-feira, 31 de Maio
 
 
 
O oculista disse-me esta tarde: “Talvez a senhora já não seja tão jovem como era”. Esta é a primeira vez que me dizem isto; pareceu-me uma afirmação espantosa. Significa que agora pareço a um estranho não uma mulher, mas uma senhora idosa. Porém, mesmo assim, embora me sentisse enrugada e envelhecida durante uma hora, e adoptasse uma atitude de grande sabedoria e tolerância, ao comprar um casaco, mesmo assim, depressa me esqueci; e volto a ser uma “mulher”.
 
Votámos em Rodmell. Vi uma senhora de luvas brancas a ajudar um velho casal de lavradores a descer do Daimler dela. comprámos uma máquina de cortar relva a motor. Tudo parece um pouco estranho e simbólico quando regresso. Estava com uma disposição estranha, achando-me muito velha: mas agora volto a ser uma mulher – como sou sempre quando escrevo. Dispersa-me e acalora-me este viajar de automóvel de um lado para o outro.
 
 
 
virgínia woolf
diários
trad. jorge vaz de carvalho
relógio d´água
2018
 




27 março 2021

virgínia woolf / está uma noite lindíssima

 
 
(1921)
Quinta, 15 de Setembro
 
 
Está uma noite lindíssima – serena; o cavalo branco e o cavalo baio pastam juntos; as mulheres saem de casa sem motivo e ficam a olhar: ou a tricotar; o galo debica no prado no meio das galinhas; há estorninhos nas duas árvores, os campos de Asheham depois da ceifa ficaram da cor da belbutina branca; o Leonard está a armazenar maçãs por cima da minha cabeça. E o sol entra por uma cortina de pérolas de vidro; de modo que o vermelho e o verde das maçãs que ainda estão nas árvores fica pálido; a torre da igreja, uma mão-de-judas em prata erguendo-se entre as árvores. Irá isto evocar alguma coisa? Estou tão ansiosa por guardar este retalho, sabes. (…)
 
 
virgínia woolf
diário primeiro volume 1915-1926
trad. maria josé jorge
bertrand editora
1985

 




23 novembro 2019

virgínia woolf / calor, calor, calor



(1940)
Quinta-feira, 5 de Setembro



Calor, calor, calor. Uma onda de calor que bate recordes, um Verão de recordes, se mantivéssemos um registo este Verão. Às 2 e meia um avião zumbe; passados 10 minutos sereias de ataque aéreo; 20 minutos depois, fim do alerta. Calor, repito; e tenho dúvidas que seja uma poetisa. Uma ideia. Todos os escritores são infelizes. A imagem do mundo nos livros é por isso demasiado negra. Os que não têm palavras são os felizes. Não é uma imagem verdadeira do mundo; apenas uma imagem de escritor. São felizes os músicos, os pintores? É o seu mundo mais feliz? Agora, em camisa de dormir, vou passear nos pauis.



virgínia woolf
diários
trad. Jorge vaz de carvalho
relógio d´água
2018





17 outubro 2018

virgínia woolf / shakespeare




1930
Domingo, 13 de Abril

Li Shakespeare imediatamente após ter acabado de escrever, quando a minha mente está boquiaberta, ao rubro e fogosa. Então é assombroso. Nunca tinha percebido ainda quão surpreendente é o seu alcance, velocidade e capacidade de cunhar palavras, até sentir como me deixa completamente para trás e vence a minha, parecendo começar a par, e depois vejo-o adiantar-se e fazer coisas que não poderia imaginar na minha mais desenfreada agitação e máxima pressão mental. Mesmo as menos conhecidas e piores das suas peças são escritas a uma velocidade que é mais rápida do que a mais rápida de qualquer outra pessoa; e as palavras derramam-se tão depressa que não nos é possível recolhê-las. Evidentemente a flexibilidade da sua mente era tão completa que ele podia polir qualquer sequência de pensamentos; e, ao relaxar, deixar cair uma chuva dessas flores desconsideradas, para quê, então, qualquer outra pessoa tentar escrever? Isto não é “escrever” de todo. De facto, podia dizer que Shakespeare supera completamente a literatura, que soubesse o que queria dizer.



virgínia woolf
diários
trad. de jorge vaz de carvalho
relógio d´água
2018









06 julho 2018

virgínia woolf / o passado




(1925)
Quarta, 18 de Março


(…) Neste momento (sete e meia, antes do jantar) apenas posso anotar que o passado é belo porque uma pessoa nunca se apercebe de uma emoção na altura. Expande-se mais tarde e assim não temos emoções completas sobre o presente, apenas sobre o passado. Isto ocorreu-me na gare de Reading ao ver a Nessa e o Quentin darem um beijo, ele aproximando-se timidamente, contudo com uma certa emoção. Isto vou lembrar, e hei-de valorizar, quando estiver separado de toda aquela trapalhada que é atravessar a gare, procurar o autocarro, etc. É por isso que damos importância ao passado, acho eu. (…)


virgínia woolf
diário primeiro volume 1915-1926
trad. maria josé jorge
bertrand editora
1985








11 julho 2011

virgínia woolf / mrs. dalloway

 
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(…)

Uma terrível confissão (pôs novamente o chapéu), mas a verdade é que, agora, aos cinquenta e três anos, quase que não se precisa dos outros. A vida em si, cada momento da vida, cada gota sua, aqui, neste instante, agora, ao Sol, era suficiente. Demasiado, até. Uma vida inteira, agora que está adquirido o poder, era demasiado curta para se lhe gozar todo o sabor; para extrair-lhe cada grama de prazer, cada sombra de sentido; uma e outra coisa muito mais consistentes que antes, muito menos pessoais. Impossível que ele pudesse sofrer de novo como Clarisse o fizera sofrer. Passava horas e dias sem pensar em Daisy.

Amaria, então? Mas onde a desolação, a tortura, a extraordinária paixão daqueles dias? Era uma coisa completamente diversa – uma coisa muito mais agradável – pois a verdade era que ela agora estava enamorada dele. Foi talvez por isso que, quando o navio zarpou, sentiu um extraordinário alívio e o que mais desejara era estar sozinho, e aborrecera-lhe achar na cabina todas as atenções dela – cigarros, papel, uma manta de viagem. Todos, se fossem sinceros, diriam o mesmo, não se precisa dos outros depois dos cinquenta; não se precisa andar a dizer às mulheres que são lindas; eis o que a maioria dos cinquentões devia confessar, pensou Peter, se fossem sinceros.
(…)





virgínia woolf
mrs. dalloway
trad. mário quintana
livros do brasil
1954
 
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24 julho 2008

citações - virgínia woolf





(1920)
Segunda, 25 de Outubro (primeiro dia da hora de Inverno)


Porque será a vida tão trágica?, tão semelhante a uma pequena faixa de passeio sobre um abismo. Olho para baixo; sinto vertigens; não sei se vou conseguir caminhar até ao fim. Mas porque sentirei eu isto? Agora que o digo já não o sinto. Tenho a lareira acesa, vamos à Beggar’s Opera. Só que isto paira em mim; não posso fechar os olhos a isto. É uma sensação de impotência: a sensação de não estar a realizar nada. Aqui estou eu, em Richmond, e, como uma lanterna no meio de um campo, a minha luz esfuma-se na escuridão. A melancolia diminui à medida que vou escrevendo. Então porque não escrevo eu mais vezes sobre isto? Bom, a vaidade proíbe-mo. Quero ser um êxito até aos meus próprios olhos. Contudo, este não é o fulcro da questão. É que não tenho filhos, vivo afastada dos amigos, não consigo escrever bem, gasto muito dinheiro em comida, envelheço – dou demasiada importância aos quês e porquês; dou demasiada importância a mim mesma. Não gosto que o tempo esmoreça. Se assim é, então trabalha. Pois é, mas o trabalho cansa-me logo – só posso ler um bocadinho, uma hora a escrever e já não posso mais. Ninguém vem para aqui entreter-se um bocado. Se isso acontece, zango-me. Ir a Londres é um esforço enorme. Os filhos da Nessa crescem e não posso tê-los cá para o lanche, nem levá-los ao Jardim Zoológico. O dinheiro para os meus alfinetes não dá para muito. Contudo, tenho a certeza de que estas coisas são triviais: é a própria vida, penso eu por vezes, que é assim tão trágica para esta nossa geração – não há um cabeçalho de jornal que não tenha um grito de agonia de alguém. Esta tarde foi o MeSwiney, e a violência na Irlanda; ou então é uma greve. Há infelicidade em todo o lado; está mesmo atrás da porta; ou há estupidez, o que é pior. Mesmo assim, não consigo arrancar este espinho. Sinto que voltar a escrever o Jacob’s Room me vai fazer recuperar a fibra. Acabei o Evelyn: mas não gosto do que escrevo agora. E apesar de tudo isto como sou feliz – se não fosse esta sensação de haver uma faixa de passeio sobre um abismo.







virgínia woolf
diário primeiro volume 1915-1926
trad. maria josé jorge
bertrand editora
1985






20 junho 2006

citações

“Quinta, 22 de Novembro

(...) Fui jantar com o Roger [ Fitzroy Street] e encontrei-me com o Clive. Sentámo-nos à volta da mesa quadrada e baixa, coberta com uma bandana, e comemos de travessas, cada uma com uma espécie diferente de feijão ou alface: comida deliciosa, para variar. Bebemos vinho, e a terminar comemos um queijo branco e macio, com açúcar. Depois, pairando esplendidamente acima de personalidades, falou-se de literatura e de estética.
“Sabe, Clive, descobri um pouco mais acerca do que é essencial a qualquer arte: sabe, a arte é representativa. Diz-se a palavra árvore e vê-se uma árvore. Muito bem. Ora todas as palavras têm uma aura. A poesia combina as diversas auras numa sequência…” Foi mais ou menos assim. Eu disse que se pode, e é o que se faz realmente, escrever com frases, e não apenas com palavras; o que não fez avançar muito a discussão. O Roger perguntou-me se eu baseava a minha escrita numa textura ou numa estrutura; associei estrutura com enredo e portanto disse: “textura”. Depois discutimos o significado de estrutura e de textura na pintura e na literatura. Depois discutimos Shakespeare, e o Roger disse que a ele Giotto o entusiasmava precisamente da mesma maneira. Isto continuou até que me forcei a sair, precisamente às dez. E discutiu-se também poesia chinesa; o Clive disse que era demasiado longínqua para se poder compreender. O Roger comparou a poesia com as pinturas. Gostei muito de tudo aquilo (isto é, gostei da conversa). Há sem dúvida muita coisa que é perfeitamente vaga, e que não é para se levar a sério, mas esta atmosfera faz urna pessoa ter ideias e, em vez de se ter de as abreviar ou de as desenvolver em muitíssimas palavras, pode-se simplesmente dizê-las que há logo quem as entenda - ou melhor, quem discorde. O nosso velho Roger tem uma visão deprimente, não da nossa vida, mas do futuro do mundo; mas creio ter detectado a influência de Trotter e das massas, de modo que não lhe dei crédito . Mas quando saí para Charlotte Street, onde se deu o crime do Bloomsbury há uma ou duas semanas, e vi uma multidão atropelando-se na estrada e ouvi mulheres a insultarem-se e outras que, atraídas pelo barulho, acorriam, deliciadas — toda esta sordidez me fez pensar que ele era bem capaz de ter razão.
Hoje o dia tem estado perfeitamente quente e muito sereno, e nós só tivemos tempo, depois de acabar de imprimir uma página, de chegar até ao rio e ver tudo reflectido perfeitamente a direito na água. O telhado vermelho de uma casa tinha a sua nuvenzinha de vermelho no rio – as luzes acesas da ponte desenhavam longas listas em amarelo – muito tranquilo, e como se fosse o coração do Inverno. “


Virgínia Woolf,
Diário primeiro volume 1915-1926, trad. Maria José Jorge, Bertrand Editora, 1985