
1910, 15 de dezembro
Simplesmente não acredito nas consequências da minha presente situação
que dura quase há um ano; a minha situação é demasiado séria para tal. Nem sequer
sei se posso dizer que esta situação é nova. A minha opinião, porém, é a
seguinte: esta situação é nova, vivi situações semelhantes, mas nenhuma igual. É
como se eu fosse de pedra, sou a própria laje do meu túmulo, não há lugar para
a dúvida nem para a crença, para o amor ou para a repugnância, para a coragem
ou para o medo, em particular ou em geral, só viver uma vaga esperança, mas não
é melhor do que a inscrição tumular. Quase não há palavras que eu escreva que
estejam de harmonia com as outras, oiço o esfregar de lata das consoantes umas
contra as outras, e o acompanhamento cantado das vogais, semelhante ao canto
dos negros nos circos. As minhas dúvidas dispõem-se em círculo à volta de cada
palavra, vejo-as primeiro, antes de ver a palavra, mas quê! Não vejo palavra
nenhuma, invento-a. mas isso não seria a maior infelicidade, só que eu tinha de
inventar palavras que fossem capazes de soprar o odor do cadáver numa direcção
que não viesse dar à minha cara e à do leitor. Quando me sento à secretária,
não me sinto melhor do que a pessoa que caiu no meio do trânsito na Place de L´Opera
e que parte as duas pernas. Os carros, apesar do barulho, continuam a andar
silenciosamente, vindos de todos os lados e indo para todos os lados, mas a dor
daquela pessoa organiza melhor as coisas do que os polícias; ela fecha-lhe os
olhos e despovoa a praça e as ruas, sem que os carros tenham de se desviar. O grande
movimento magoa-a, porque é um empecilho no meio do trânsito, mas o vazio não
lhe é menos penoso, porque liberta a sua dor real.
franz kafka
diários (1910-1923)
trad. maria adélia silva melo
difel
1986
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