24 novembro 2025

franz kafka / diários



 

 
1910, 15 de dezembro
 
 
Simplesmente não acredito nas consequências da minha presente situação que dura quase há um ano; a minha situação é demasiado séria para tal. Nem sequer sei se posso dizer que esta situação é nova. A minha opinião, porém, é a seguinte: esta situação é nova, vivi situações semelhantes, mas nenhuma igual. É como se eu fosse de pedra, sou a própria laje do meu túmulo, não há lugar para a dúvida nem para a crença, para o amor ou para a repugnância, para a coragem ou para o medo, em particular ou em geral, só viver uma vaga esperança, mas não é melhor do que a inscrição tumular. Quase não há palavras que eu escreva que estejam de harmonia com as outras, oiço o esfregar de lata das consoantes umas contra as outras, e o acompanhamento cantado das vogais, semelhante ao canto dos negros nos circos. As minhas dúvidas dispõem-se em círculo à volta de cada palavra, vejo-as primeiro, antes de ver a palavra, mas quê! Não vejo palavra nenhuma, invento-a. mas isso não seria a maior infelicidade, só que eu tinha de inventar palavras que fossem capazes de soprar o odor do cadáver numa direcção que não viesse dar à minha cara e à do leitor. Quando me sento à secretária, não me sinto melhor do que a pessoa que caiu no meio do trânsito na Place de L´Opera e que parte as duas pernas. Os carros, apesar do barulho, continuam a andar silenciosamente, vindos de todos os lados e indo para todos os lados, mas a dor daquela pessoa organiza melhor as coisas do que os polícias; ela fecha-lhe os olhos e despovoa a praça e as ruas, sem que os carros tenham de se desviar. O grande movimento magoa-a, porque é um empecilho no meio do trânsito, mas o vazio não lhe é menos penoso, porque liberta a sua dor real.
 
 
 
franz kafka
diários (1910-1923)
trad. maria adélia silva melo
difel
1986
 



 

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