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04 setembro 2023

jacques prévert / para ti meu amor

 



 
 
Fui à feira dos pássaros
E comprei pássaros
Para ti
meu amor
Fui à loja das flores
E comprei flores
Para ti
meu amor
Fui à feira da sucata
E comprei correntes
Pesadas correntes
Para ti
meu amor
E depois fui à feira dos escravos
E procurei-te
Mas não te encontrei
meu amor
 
 
 
jacques prévert
palavras
trad. manuela torres
sextante editora
2007




03 março 2021

jacques prévert / vida em família

 
 
A mãe faz tricô
O filho faz a guerra
A mãe acha isso natural
E o pai? O que faz o pai?
Faz negócios
A mulher faz tricô
O filho a guerra
E ele negócios
O pai acha isso natural
E o filho e o filho
O que é que o filho acha?
Não acha nada absolutamente nada
Acha que a mãe faz tricô que o pai faz negócios e que ele faz a
      guerra
Depois de fazer a guerra
Fará negócios com o pai
A guerra continua a mãe continua a tricotar
O pai continua a fazer negócios
O filho foi morto já não continua
O pai e a mãe vão ao cemitério
O pai e a mãe acham isso natural
A vida continua com o tricô, com a guerra, com os negócios
Os negócios a guerra o tricô a guerra
Os negócios os negócios e os negócios
A vida com o cemitério.
 
 
 
jacques prévert
palavras
trad. manuela torres
sextante editora
2007





24 junho 2019

jacques prévert / paris at night





Três fósforos um a um acesos na noite
O primeiro para ver o teu rosto inteiro
O segundo para ver os teus olhos
O terceiro para ver a tua boca
E toda a escuridão para recordar tudo isso
Apertando-te nos braços.




jacques prévert
palavras
trad. manuela torres
sextante editora
2007






01 maio 2017

jacques prévert / canção na massa do sangue




Há grandes manchas de sangue no mundo
para onde vai todo esse sangue vertido
será a terra que o bebe e com ele se embebeda
estranha bebedeira então
tão ponderada… tão monótona…
Não a terra não se embriaga
a terra não gira ao contrário
vai arrastando a sua carripana as quatro estações
a chuva… a neve…
o granizo… o bom tempo…
nunca se embebeda
só muito de longe a longe ela se permite
um mísero vulcão
A terra gira
gira com as suas árvores… os seus jardins… as suas casas…
gira com as suas poças de sangue
e todas as coisas vivas giram com ela e sangram…
Mas a terra
pouco se importa
gira e todas as coisas vivas desatam a gritar
ela pouco se importa
vai girando
sem parar
e o sangue não pára de correr…
Para onde vai todo esse sangue vertido
o sangue dos crimes… o sangue das guerras…
o sangue da miséria…
e o sangue dos homens torturados nas prisões…
o sangue das crianças calmamente torturadas pelo pai e pela
     mãe…
E o sangue dos homens que sangram da cabeça
nas celas de isolamento…
 e o sangue do trolha
quando escorrega e cai do telhado
E o sangue que brota e que corre aos borbotões
com o recém-nascido… com o filho novo…
a mãe a gritar… a criança a chorar…
o sangue corre… a terra gira
a terra não pára de girar
o sangue não pára de correr
Para onde vai todo esse sangue vertido
o sangue dos espancados… dos humilhados…
dos suicidados… dos fuzilados… dos condenados…
e o sangue daqueles que morrem assim… por acidente
Na rua passa um vivo
com todo o seu sangue lá dentro
de repente ei-lo morto
e todo o seu sangue está cá fora
e os outros vivos fazem desaparecer o sangue
levam o corpo
mas o sangue é teimoso
e lá onde estava o morto
em breve já negro
vê-se ainda um pouco de sangue…
sangue coagulado
ferrete da vida ferrete dos corpos
sangue coalhado como leite
como o leite azeda
quando gira como a terra
como a terra que gira
com o seu leite… com as suas vacas…
com os seus vivos… com os seus mortos
a terra que gira com as suas árvores… os seus vivos… as suas
     casas…
a terra que gira com os casamentos…
os enterros…
os clarins…
os regimentos… a terra que não pára de girar
com os seus grandes rios de sangue.

1936


jacques prévert
palavras
trad. manuela torres
sextante editora
2007




05 outubro 2015

jacques prévert / na minha casa



Hás-de vir a minha casa
Aliás não é a minha casa
Não sei de quem ela é
Um dia entrei por aqui
Não estava ninguém
Só uns pimentos vermelhos pendurados na parede branca
Durante muito tempo fiquei nesta casa
Ninguém apareceu
Mas todos todos os dias
Fiquei à sua espera

Não fazia nada
Quer dizer nada de importante
Às vezes de manhã
Soltava gritos de animais
Zurrava como um burro
Com quanta força tinha
E era uma coisa que me dava prazer
E depois brincava com os pés
São muito inteligentes os pés
Levam-nos muito longe
Quando queremos ir muito longe
E quando não queremos sair
Ficam ali a fazer-nos companhia
E quando há música dançam
Não se pode dançar sem eles
É preciso ser estúpido como o homem tantas vezes é
Para dizer coisas tão estúpidas
Como estúpido como um pé alegre como um pardal
O pardal não é alegre
Só é alegre quando está alegre
E triste quando está triste ou nem alegre nem triste
Será que alguém sabe o que é um pardal
Aliás nem sequer se chama realmente assim
O homem é que chamou aquele pássaro assim
Pardal pardal pardal pardal

É muito curioso isto dos nomes
Martin Hugo Victor de seu nome
Bonaparte Napoleão de seu nome
Porquê assim e não assim
Um rebanho de bonapartes passa no deserto
O imperador chama-se Dromedário
Há um cavalo caixa e gavetas de corrida
Ao longe galopa um homem que só tem três nomes
Chama-se Tim-Tam-Tom sem outros apelidos
Ainda mais ao longe está sabe-se lá quem
E muitíssimo mais ao longe está sabe-se lá o quê
Mas afinal que é que tudo isto importa

Hás-de vir a minha casa
Penso noutra coisa mas é só nisso que penso
E quando entrares em minha casa
Despes a roupa toda
E ficas imóvel nua em pé com a tua boca vermelha
Como os pimentos vermelhos pendurados na parede branca
E depois deitas-te e eu deito-me junto a ti
É isso
Hás-de vir a minha casa que não é a minha casa



jacques prévert
traduzido por zé lima
diversos nr. 3




13 fevereiro 2014

jacques prévert / o cábula



  Com a cabeça diz não  
    mas com o coração diz que sim
  diz que sim ao que aprecia  
    e que não ao professor
  cá o temos nós de pé  
    em pleno interrogatório
  a cairem-lhe em cima problemas  
    mas súbito um riso destravado
  toma conta dele  
    e põe-se a apagar tudo
  numerais e palavras  
    as datas e os nomes
  frases e ratoeiras  
    e apesar das ameaças do mestre
  sob a gritaria das crianças encantadas  
    ali naquele quadro negro da desgraça
  com giz de todas as cores  
    põe-se a desenhar 
  o rosto da felicidade  



  jacques prévert




21 fevereiro 2008

café da manhã





pôs café
na chávena
pôs leite
na chávena com café
pôs açúcar
no café com leite
e com a colher
mexeu
tomou o café com leite
e pôs a chávena no pires
sem me dar uma palavra
acendeu
um cigarro
fez rodinhas
com o fumo
pôs a cinza
no cinzeiro
sem me dar uma palavra
sem olhar para mim
levantou-se
pôs
o chapéu na cabeça
vestiu
o impermeável
porque chovia
e saiu
debaixo de chuva
sem uma palavra
sem me olhar
quanto a mim, meti
a cabeça entre as mãos
e chorei.






jacques prévert
paroles
trad. g.s.
éditions gallimard
folio
2003





10 junho 2007

pour faire le portrait d´un oiseau





a elsa henriques





se quiseres pintar o retrato de um pássaro
primeiro pinta uma gaiola
com a porta aberta.
depois pinta
algo engraçado
algo simples
algo bonito
qualquer coisa útil
para o pássaro.
depois encosta a tela a uma árvore
num jardim
num bosque
ou numa floresta
e esconde-te atrás da árvore
muito calado
sem te mexeres…
às vezes o pássaro aparece logo
mas também pode levar muitos anos
até decidir aparecer.
não desistas
espera
espera durante anos, se preciso for
a pressa ou a demora do pássaro
não tem influência no resultado
do quadro.
quando o pássaro aparecer
se ele aparecer
guarda o mais profundo silêncio
até ele entrar na gaiola
e quando ele entrar
delicadamente, fecha a porta com o pincel
depois
apaga uma a uma todas as grades
tendo o cuidado de não tocar a plumagem do
pássaro
em seguida, pinta uma árvore
e escolhe o ramo mais bonito
para o pássaro
pinta a folhagem e a frescura do
vento
pinta o dourado do sol
e o alarido das criaturas na relva sob o calor do
verão
e depois espera até que o pássaro se decida a cantar
se ele não cantar
é mau sinal
é sinal de que o quadro é mau
mas se ele cantar é bom sinal
é sinal de que o podes assinar
e então arrancas delicadamente
uma pena do pássaro
e escreves o teu nome num canto do quadro












jacques prévert
paroles
trad. g.s.
éditions gallimard
folio
2003