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10 abril 2023

jacques brel / o último repasto



 

No meu último repasto
Quero ver os meus irmãos
E os meus gatos e os meus cães
E a beira do mar
No meu último repasto
Quero ver os meus vizinhos
E também alguns Chineses
Em jeito de primos
E quero que se lá beba
Além do vinho da missa
Aquele vinho tão bonito
Que se bebia em Arbois
Quero que se lá devore
Após umas tantas sotainas
Uma faisoa
Vinda do Périgord
Depois quero que me levem
Ao cimo da minha colina
Ver as árvores fechar os
Braços para dormir
E depois quero ainda
Atirar pedras ao céu
E gritar Deus morreu
Uma última vez
 
No meu último repasto
Quero ver o meu burro
As minhas galinhas e os meus gansos
As minhas vacas e as minhas mulheres
No meu último repasto
Quero ver essas desavergonhadas
De quem fui dono e senhor
Ou que foram minhas senhoras
Quando tiver na pança
Com que afogar a terra
Quebrarei o meu corpo
Para impor silêncio
E cantarei aos berros
Para a morte que chega
As canções libertinas
Que metem medo às freirinhas
Depois quero que me levem
Ao cimo da minha colina
Ver o crepúsculo que se encaminha
Lentamente para a planície
E aí ainda de pé
Insultarei os burgueses
Sem medo e sem remorsos
Uma última vez
 
Após o meu último repasto
Quero que se vão todos embora
Que continuem o festim
Mas não sob o meu tecto
Após o meu último repasto
Quero que me instalem
Sentado só como um rei
Acolhendo as suas vestais
No meu cachimbo queimarei
As recordações de infância
Os sonhos inacabados
Os restos de esperança
E apenas conservarei
Para vestir a minha alma
A ideia de uma roseira
E um nome de mulher
Depois olharei
O cimo da minha colina
Que dança que se adivinha
E acaba por se afundar
E entre o cheiro das flores
Que não tarda a extinguir-se
Sei que terei medo
Uma última vez
 
 
 
jacques brel
antologia poética
trad. eduardo maia
assírio & alvim
1997
 




 

04 fevereiro 2020

jacques brel / o moribundo



Adeus Emile sempre te quis bem
Adeus Emile sempre te quis bem sabes
Cantámos os mesmos vinhos
Cantámos as mesmas mulheres
Cantámos os mesmos desgostos
Adeus Emile vou morrer
Não é fácil morrer na Primavera sabes
Mas lá vou para o meu canteiro com a alma em paz
Porque já que és bom como o pão branco
Sei que cuidarás da minha mulher
E que todos riam
E que todos dancem
E que todos se divirtam como loucos
E que todos riam
E que todos dancem
No dia em que me meterem na cova

Adeus Cura sempre te quis bem
Adeus Cura sempre te quis bem sabes
Não líamos pela mesma cartilha
Não seguíamos as mesmas vias
Mas demandávamos o mesmo porto
Adeus Cura vou morrer
Não é fácil morrer na Primavera sabes
Mas lá vou para o meu canteiro com a alma em paz
Porque já que tu eras seu confidente
Sei que cuidarás da minha mulher
E que todos riam
E que todos dancem
E que todos se divirtam como loucos
E que todos riam
E que todos dancem
No dia em que me meterem na cova

Adeus Antoine sempre te quis bem
Adeus Antoine sempre te quis bem sabes
Estou lixado por morrer hoje
Ao passo que tu estás bem vivo
E até mais rijo que o tédio
Adeus Antoine vou morrer
Não é fácil morrer na Primavera sabes
Mas lá vou para o meu canteiro com a alma em paz
Porque já que eras seu amante
Sei que cuidarás da minha mulher
E que todos riam
E que todos dancem
E que todos se divirtam como loucos
E que todos riam
E que todos dancem
No dia em que me meterem na cova

Adeus mulher sempre te quis bem
Adeus mulher sempre te quis bem sabes
Vou tomar o comboio de ver a Deus
Vou tomar o comboio que sai antes do teu
Mas cada um toma o comboio que pode
Adeus mulher vou morrer
Não é fácil morrer na Primavera sabes
Mas lá vou para o meu canteiro de olhos fechados mulher
Porque já que por ti amiúde os fechei
Sei que cuidarás da minha alma
E que todos riam
E que todos dancem
E que todos se divirtam como loucos
E que todos riam
E que todos dancem
No dia em que me meterem na cova



jacques brel
antologia poética
trad. eduardo maia
assírio & alvim
1997






02 setembro 2019

jacques brel / a minha infância




A minha infância passou
Entre tédios e silêncios
Entre falsas mesuras
E batalhas que não houve
De Inverno no ventre
Daquela grande casa
Que tinha ancorado
A norte por entre os juncos
De Verão meio nu
Mas modesto por inteiro
Tornava-me índio
Embora já convicto
De que meus tios cevados
Me tinham roubado o Far West

A minha infância passou
As mulheres nas cozinhas
Onde eu sonhava com a China
Envelheciam em cozinhados
Os homens ao queijo
Envolviam-se em tabaco
Flamengos calados e ponderados
E não me conheciam
Eu que todas as noites
Ajoelhado por nada
Arpejava o meu desgosto
Aos pés da cama imensa
Queria apanhar um comboio
Que jamais apanhei

A minha infância passou
De criada em criada
Admirava-me já
Não serem elas plantas
Admiravam-me ainda
Essas rodas de família
Flanando de defunto em defunto
E que o luto cobre
Admirava-me sobretudo
Vir eu de tal rebanho
Que me ensinava a chorar
Que eu conhecia demais
O meu olhar era de pastor
Mas o coração de cordeiro

A minha infância estourou
Chegou a adolescência
E o muro do silêncio
Uma manhã ruiu
Foi a primeira flor
E a primeira namorada
A primeira gentil
E o primeiro medo
Eu até voei eu juro
Eu juro que até voei
O meu coração abria os braços
Era o fim da barbárie

E a guerra chegou

E eis-nos agora aqui



jacques brel
antologia poética
trad. eduardo maia
assírio & alvim
1997





08 novembro 2017

jacques brel / a canção dos velhos amantes




Sem dúvida entre nós houve tormentas
Vinte anos de amor é o amor louco
Mil vezes fizeste as malas
Mil vezes levantei voo
E neste quarto sem berço
Não há móvel que não se lembre
Do roncar das nossas tempestades
Já nada era como antes
Tinhas perdido o gosto pela água
E eu o gosto pela conquista

                Meu amor
                Meu meigo meu terno meu maravilhoso amor
                Da madrugada clara até ao fim do dia
                Amo-te ainda sabes amo-te

Eu sei todos os teus sortilégios
Tu sabes todos os meus encantamentos
Foste-me prendendo de cilada em cilada
Fui-te largando de vez em quando
Sem dúvida tiveste alguns amantes
Havia que passar o tempo
Havia que gozar o corpo
E finalmente finalmente
Muito talento nos foi preciso
Para sermos velhos sem sermos adultos

                Meu amor
                Meu meigo meu terno meu maravilhoso amor
                Da madrugada clara até ao fim do dia
                Amo-te ainda sabes amo-te

E do tempo o maior cortejo
Maior tormento nos faz
Mas não será viver em paz
A pior das ciladas para os amantes
Sem dúvida choras um pouco menos cedo
Eu despedaço-me um pouco mais tarde
Protegemos menos os nossos mistérios
Damos menos azo ao acaso
Desconfiamos das águas mansas
Mas a doce guerra não tem fim


                Meu amor
                Meu meigo meu terno meu maravilhoso amor
                Da madrugada clara até ao fim do dia
                Amo-te ainda sabes amo-te






jacques brel
antologia poética
trad. eduardo maia
assírio & alvim
1997