02 setembro 2019

jacques brel / a minha infância




A minha infância passou
Entre tédios e silêncios
Entre falsas mesuras
E batalhas que não houve
De Inverno no ventre
Daquela grande casa
Que tinha ancorado
A norte por entre os juncos
De Verão meio nu
Mas modesto por inteiro
Tornava-me índio
Embora já convicto
De que meus tios cevados
Me tinham roubado o Far West

A minha infância passou
As mulheres nas cozinhas
Onde eu sonhava com a China
Envelheciam em cozinhados
Os homens ao queijo
Envolviam-se em tabaco
Flamengos calados e ponderados
E não me conheciam
Eu que todas as noites
Ajoelhado por nada
Arpejava o meu desgosto
Aos pés da cama imensa
Queria apanhar um comboio
Que jamais apanhei

A minha infância passou
De criada em criada
Admirava-me já
Não serem elas plantas
Admiravam-me ainda
Essas rodas de família
Flanando de defunto em defunto
E que o luto cobre
Admirava-me sobretudo
Vir eu de tal rebanho
Que me ensinava a chorar
Que eu conhecia demais
O meu olhar era de pastor
Mas o coração de cordeiro

A minha infância estourou
Chegou a adolescência
E o muro do silêncio
Uma manhã ruiu
Foi a primeira flor
E a primeira namorada
A primeira gentil
E o primeiro medo
Eu até voei eu juro
Eu juro que até voei
O meu coração abria os braços
Era o fim da barbárie

E a guerra chegou

E eis-nos agora aqui



jacques brel
antologia poética
trad. eduardo maia
assírio & alvim
1997





1 comentário:

ana p disse...

Este poema é tão bonito!