22 julho 2008

luto






atravessava a morte
com a lentidão rigorosa dos amantes

e voltava
voltava sempre

trazia em pedaços de papel
coisas cada vez maiores

que já só podia arrumar no coração






20 julho 2008

eu queria descrever







Eu queria descrever a mais simples das emoções
alegria ou tristeza
mas não como outros o fazem
invocando raios de sol ou chuva

Eu queria descrever a luz
que cresce dentro de mim
mas que não se assemelha
a nenhuma estrela
porque não é tão brilhante
nem tão pura
e é incerta.

Eu queria descrever a coragem
sem arrastar um leão de pó atrás de mim
e a ansiedade
sem agitar um copo cheio de água

dito de outro modo
daria todas as metáforas
em troca de uma só palavra
do meu peito arrancaria uma costela
por uma só palavra
sufocada dentro das fronteiras
da minha pele

mas aparentemente isso não é possível

e para dizer apenas – eu amo
ando às voltas como um louco
apanhando pássaros e pássaros com as mãos
e a minha ternura
que afinal não é feita de água
pergunta à água por um rosto

e a raiva
diferente do fogo
pede ao fogo
uma língua eloquente

e nada é nítido
e nada é inteiramente nítido
em mim
cavalheiro de cabelos brancos
separação de uma vez para sempre
e disse
isto está no poema
isto é o objecto

caímos no sono
com uma mão debaixo da cabeça
e a outra numa pilha de planetas

os nossos pés abandonam-nos
e provam a terra
com as suas raízes subtis
que despedaçamos dolorosamente
na manhã seguinte











zbigniew herbert
selected poems
ecco press
1986
tradução de miguel gonçalves
a partir da versão inglesa feita por czeslaw milosz e peter dale scott









17 julho 2008

andre breton e paul éluard / a morte







Um chamalote de campo esconde na sua trama uma fornalha de insectos. De mão em mão, o furão passa com a forma de escorpião na nassa da maldade. Vem florinha intraduzível, por aqui (ela esconde-se). Eh lá! motorista (ele desce do seu lugar e foge). Espere, lembrava-me porém de um nome… Uma pá de diamantes a quem me trouxer de volta ao cão que era!

E nada esqueço. Há ainda uma garrafa de sangue para quem se compromete a viver com as imagens que eu não quis.

Sinto-me terrivelmente melhor. As vãs palavras que me tinham posto na boca começam a fazer o seu efeito. Os meus semelhantes abandonam-me. Com a mão na juba dos leões, vejo o horizonte enganador que pela última vez me vai mentir. Tiro vantagem de tudo e das suas mentiras com forma de lixo e daquele pequeno rodeio que faz ao passar sempre por minha casa.
Nada me serve tão bem como quando ele me encontra.

Mesmo assim que exame estúpido! Ter-me-ia saído bem, com todo o rigor sem aquela pequena pergunta de história. Felizmente não me tinha apresentado.

As viagens sempre me levaram demasiado longe. A certeza de chegar nunca me pareceu mais do que a centésima campainhada a uma porta que não se abre.

O próprio sofrimento era possuído. Quando esta mulher com corpo de gelosia veio abanar-se no meu leito, compreendi que devia ter frio. Tive frio. Mas a juventude velava: na verdade ainda mal tinha sofrido. Devo confessar que fiquei com a sua cabeça sobre o meu peito. Além, aquela claridade, é a sua forma nocturna que não pode desaparecer e sustenta a noite e procura a luz onde já não existo.

De resto, o poço fica todo em superfície. O caracol do Verão nos cabelos da Primavera explicou-me demoradamente o que á a promessa. A chuva bestial trazia nas suas antenas o progresso que coxeia no musgo. E canta sempre o capricho taciturno e ameaçador que tudo deixa perecer. O som da sua voz é uma cicatriz.

Cá está a grande praça gaga. Os carneiros chegam a toda a velocidade, em andas.









andre breton e paul éluarda imaculada concepção
tradução franco de sousa
estúdios cor
1972

13 julho 2008

é o vento que conversa






é o vento que conversa
nos astrais rudes da tua voz.


o perfil é terra sem alma.


acuras as esperanças
inflamam-se em labirintos.


o abismo é ensejo
no sorriso da ironia


um nome estranho demove o grito
saído das costas coagidas.


puro é o espaço úbere
no silencioso vulto
que louco repete
supostas virtudes


o espanto é figura na voz
de rostos sem nomes
coroados de leveza


ermo na noite, o vento irrompe
e é o impulsor do corpo!







l.maltez






11 julho 2008

je vous écris d´un pays lointain




5

Escrevo-lhe do fim do mundo. É preciso que o saiba. Amiúde as árvores tremem. Apanham-se as folhas. Têm uma imensa quantidade de nervuras. Mas de que servem? Não há mais nada entre elas e a árvore, e dispersamo-nos, incomodados.
Será que a vida na terra não poderia prosseguir sem vento? Ou será preciso que tudo trema sempre, sempre?
Há também tumultos subterrâneos, e dentro de casa, como raivas que surgissem à nossa frente, como seres severos que quisessem arrancar confissões.
Não se vê nada, como se importasse muito pouco ver. Nada, e todavia treme-se. Porquê?








henri michaux
(escrevo-lhe de um país distante, 1942)
antologia
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
1999






10 julho 2008

giánnis ritsos / testamento


Disse: creio na poesia, no amor, na morte,
e por isso mesmo creio na imortalidade. Escrevo um verso,
escrevo o mundo; existo; existe o mundo.
Da ponta do meu dedo mínimo corre um rio.
O céu é sete vezes azul. Esta pureza
é de novo a primeira verdade, a minha última vontade.



giánnis ritsos
antologia
tradução de custódio magueijo
fora do texto
1993


08 julho 2008

o medo da loucura







1913, 4 de Dezembro

(…)

O medo da loucura. Ver a loucura em todas as emoções que se esforçam sempre para a frente e que nos fazem esquecer de tudo o resto. Que é, então, a não loucura? A não loucura é ficar parado, de pé, como um mendigo à soleira da porta, ficar ao lado da entrada, apodrecer e cair. Mas P. e O. são de facto loucos repugnantes. Deve haver loucuras maiores do que aquela que os imortaliza. O que é repugnante é, talvez, este inchar de pequenos loucos na grande loucura. Mas Cristo não apareceu aos fariseus precisamente á mesma luz?

(…)




franz kafka
diários (1910-1923)
trad. maria adélia silva melo
difel
1986







07 julho 2008

progressos na investigação do caos





Esteja à vontade,
trate-me só por eu
ou omita-me de todo.
Afinal ninguém sabe ao certo
onde começa o próximo.
Poderá dispersar-se,
mas permaneça deitado.
Feche os olhos
e não ouça nada.
Quando nada sentir,
tem de sentir o que sente.
Ou será que também é daqueles
que sangram a cada tiro?
O meu conselho é gorduras vegetais
e inteligência animal.
No entanto, tudo com medida
e sempre de cabeça inclinada.
O resto é bastante simples.






hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994





04 julho 2008

narração






Este homem caminha a chorar
ninguém sabe dizer porquê
às vezes pensam que são os amores perdidos
como aqueles que tanto nos atormentam
à beira-mar no verão com os gramofones.

A outra gente cuida dos seus trabalhos
papéis intermináveis crianças que crescem, mulheres
com dificuldades em envelhecer
ele tem dois olhos como papoilas
como primaveris papoilas cortadas
e duas pequenas fontes na cavidade dos olhos.

Caminha pelas estradas nunca se deita
galgando pequenos quadrados no dorso da terra
máquina de um tormento infindo
o qual acabou por não ter importância.

Alguns outros ouviram-no falar
sozinho enquanto passava
de espelhos quebrados anos antes
de figuras quebradas dentro de espelhos
que já ninguém pode juntar.
Outros ouviram-nos dizer do sono
imagens de horror no limiar do sono
rostos insuportáveis de ternura.

Habituámo-nos a ele bem arranjado e tranquilo
acontece apenas que caminha a chorar continuamente
como os salgueiros à beira do rio que vês do comboio
quando acordas mal disposto numa alba cheia de nuvens.

Habituámo-nos a ele não representa nada
como todas as coisas às quais vocês se habituaram
e falo-vos dele porque não encontro
nada a que vocês não estejam habituados;
as minhas vénias.








yorgos seferis
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães
e nikos pratisinis
relógio d´água
1993




03 julho 2008

edmund white

a vida privada de um rapaz




(...)


Não, do que eu gostava era do budismo dos primeiros tempos
do Hinayana, daquelas austeras instruções que conduziam a
uma extinção do desejo (em sânscrito, nirvana significa «extinguir»,
como «extinguimos» a vela de uma chama). Sentia uma grande
afinidade com esta religião que odeia a vida de uma forma muito curiosa,
que nos ensina que não temos alma e que o eu não passa
de um depósito de bagagens onde foram guardados estes e
aqueles embrulhos ou pacotes (com as etiquetas de emoções,
sensações, memórias e assim por diante), os quais não tardarão
a ser recolhidos por diferentes proprietários, um esvaziamento
que deixará o depósito de bagagens ditosamente vazio.
Este esvaziamento, este aniquilamento, é o que o cristão mais teme,
mas o que o budista mais veementemente deseja - ou desejaria,
se o desejo não fosse precisamente aquilo que tem de ser extirpado.
O desejo - a ânsia de sexo, dinheiro, fama, segurança - acorrenta-nos
ao mundo e condena-nos à reencarnação , «o ciclo da reencarnação»,
que eu imaginava como uma roda a que o pecador era bem atado
e estirado, a roda que o esmagava à medida que rodava, mas que,
crueldade das crueldades, não o matava nunca.
Sentia a necessidade de me libertar do desejo. Não devia querer nada.
Não devia sentir afectos. Acima de tudo, nada de atracções.
Devia renunciar a toda a esperança, planos, felizes expectativas.
Devia estudar o esquecimento. Devia dar cama e mesa ao silêncio
e pagar propinas ao vazio. Mesmo a mais ténue luzinha de desejo
devia ser apagada. Todos os fios deviam ser arrancados
até que todos os mecanismos deixassem de funcionar
e todos os ponteiros apontassem para zero.




edmund white
a vida privada de um rapaz
trad. josé vieira de lima
publicações dom quixote
1996







29 junho 2008

manhã





Abracei a aurora de verão.


Ainda nada movia a entrada dos palácios. A água estava morta. As sombras não deixavam a estrada do bosque. Caminhei, acordando os hálitos vivos e tépidos, e as pedrarias olharam, e as asas ergueram-se sem ruído.

A primeira aventura foi, no caminho já pleno de frescos e lívidos clarões, uma flor que me disse o seu nome.

Ri-me para a wasserfall loura que se encaracolou através dos abetos: no cimo prateado estava a deusa.

Então, um a um, tirei-lhe os véus. Na alameda, agitando os braços. Através da planície, onde a denunciei ao galo. Ela fugia para a grande cidade, entre as torres e as cúpulas; correndo como um mendigo sobre os cais de mármore, persegui-a.

No alto da estrada, junto a um bosque de loureiros, cobri-a com os véus desordenadamente recuperados, e senti um pouco seu imenso corpo. A manhã e o menino tombaram na orla do bosque.


Ao acordar era meio-dia.









jean-arthur rimbaud
iluminações / uma cerveja no inferno
trad. de mário cesariny
estúdios cor
1972




27 junho 2008

formoso amigo meu, podes cantar à lua






formoso amigo meu, podes cantar à lua
e amar outros mais lestos do que eu,
roer um osso, admirar as estrelas,
seres sábio e humano, além de belo.
já vi que escreves um diário, com
as patas firmes, o pêlo luzidio,
e versos, onde porém há sempre
uma sílaba a mais, presa por fios.
pouco te importa se eu existo ou não,
e ignoras, das aranhas, o tormento
quando a teia se rasga e é urgente
tomar medidas, e tecer, à espreita
de alguma inócua presa imprevidente.
voas tão solto, lá no firmamento,
que te tomam por pássaro ou cometa;
e meditas em vastos pensamentos... só não sabes
que ao rasgares o meu leito aqui deixaste
uma gota de sangue, a que estás preso.





antónio franco alexandre
aracne
assírio & alvim
2004







26 junho 2008

mãe






Mãe, eu quero ir-me embora — a vida não é nada
daquilo que disseste quando os meus seios começaram
a crescer. O amor foi tão parco, a solidão tão grande,
murcharam tão depressa as rosas que me deram —
se é que me deram flores, já não tenho a certeza, mas tu
deves lembrar-te porque disseste que isso ia acontecer.

Mãe, eu quero ir-me embora — os meus sonhos estão
cheios de pedras e de terra; e, quando fecho os olhos,
só vejo uns olhos parados no meu rosto e nada mais
que a escuridão por cima. Ainda por cima, matei todos
os sonhos que tiveste para mim — tenho a casa vazia,
deitei-me com mais homens do que aqueles que amei
e o que amei de verdade nunca acordou comigo.

Mãe, eu quero ir-me embora — nenhum sorriso abre
caminho no meu rosto e os beijos azedam na minha boca.
Tu sabes que não gosto de deixar-te sozinha, mas desta vez
não chames pelo meu nome, não me peças que fique —
as lágrimas impedem-me de caminhar e eu tenho de ir-me
embora, tu sabes, a tinta com que escrevo é o sangue
de uma ferida que se foi encostando ao meu peito
como uma cama se afeiçoa a um corpo que vai vendo crescer.

Mãe, eu vou-me embora — esperei a vida inteira por quem
nunca me amou e perdi tudo, até o medo de morrer. A esta
hora as ruas estão desertas e as janelas convidam à viagem.
Para ficar, bastava-me uma voz que me chamasse, mas
essa voz, tu sabes, não é a tua — a última canção sobre
o meu corpo já foi há muito tempo e desde então os dias
foram sempre tão compridos, e o amor tão parco, e a solidão
tão grande, e as rosas que disseste que um dia chegariam
virão já amanhã, mas desta vez, tu sabes, não as verei murchar.









maria do rosário pedreira
o canto do vento nos ciprestes
gótica
2001






25 junho 2008

abertura







Eu abria o rádio
eu abria o aparelho
era uma flor branca que eu abria
de sopro
eu soprava e eu abria a flor
A flor tocava música com as várias mãos
das pétalas
A flor tocava uma simbolização dum tempo
caído podre de espera de cor branca
O tempo espera-se em pintar-se
de branco
para cegar uma cor
mas a minha flor abria-se de
pétalas
e as várias mãos escreviam um
piano por cima de teclas grãos vários
seguidos uns aos outros.
Era assim uma harmonia
entre flor
tempo a querer-se de cor branca em cegar
era assim umas teclas cantarem filhos de grãos
por dentro dos grãos mesmos
unidos que eram em dimensão de lado
era assim um cantar-me o tempo todo
não era assim um cantar-me o tempo todo
era assim um pairar-me
o tempo todo em Nijinsky
o tempo em um fazer-me ballet pelo quarto inteiro
quando eu tinha aberta a cabeça que imagino
da música
Abria a pétala favorita do harém
onde no centro um sultão da flor
no centro que era o amarelo da flor
abria a pétala favorita da flor
e então
e era então que me soava dentro da manhã
do quarto
uma música desfibrada de tempo serôdio
como se tudo me fosse em longe
como se a música levasse longe
o céu.




antónio gancho
o ar da manhã
assírio & Alvim
1995





18 junho 2008

dir-te-ei quem sou





Dir-te-ei quem sou,
houve um tempo,
tive um sonho,
lembro-me do teu rosto,
a tua voz já existia.

E ele atravessa a rua,
passando pelo tempo,
de pedra em pedra,
com um cigarro na mão
para pedir lume
ao cigarro alheio,
que brilha no outro lado,
ao cimo dos três degraus.

Vai ser assim:
dá-me lume, por favor?,
e o cigarro encostar-se-á ao seu,
o lume passará de um para outro,
de uma pessoa para outra pessoa,
e então,
no meio da eternidade deserta,
será sim o dia de hoje.

Mas a noite é imensa,
quer dizer:
a noite do lugar e do tempo,
a noite da nossa solidão
— é imensa,
e apenas um pequeno órgão vivo
palpita algures,
vibra rapidamente,
e amortece-se,
e desaparece.

Então,
uma vez mais
a noite se levanta de nós,
e o que estremece é a carne,
a nossa,
cega e desamparada
— mas fremente
na sua cegueira e desamparo.

Sabes que estás só?
— pergunta a carne à carne —,
sabes que a noite se ergueu de ti,
como se fosses o seu próprio
e único talento,
e que esse talento te cerca
como uma atmosfera,
o morto clima que transportas em ti,
de um lado para outro,
ao longo das pedras,
ao longo de todos os lugares
do homem?

Ela sabe,
ou pelo menos
sabe que sabe.

E
é demasiado.

Por isso,
olha
e espera.

E vê de novo
a brasa que estremece
na escuridão
como uma planta
que crescesse
e florescesse na terra negra,
ou um animal
cujo calor abrisse uma brecha
no tempo frio.

A carne embriaga-se
com imprecisas metáforas de salvação
— que salvação?!
com um movimento subterrâneo de analogias,
e ele diz:

vou pedir-lhe lume.

Vai através do bairro múltiplo,
o tempo que o escuro abafou,
e então
é como se fosse fora do tempo,
ou dentro de todo o tempo,
à procura do lume
para o seu cigarro.







herberto helder
apresentação do rosto
editora ulisseia
1968




12 junho 2008

tatuagem






Olhas para ele divertida e convidas-te a um copo.
Se a sua história fosse boa,
se tratasse de uns homenzecos sujos,
de drogas ou de hotéis vermelhos como um corno,
de uma morte não explicada
ou de uma vida inexplicável,
a coisa, querido, mudaria.
Mas não. O pacóvio palra e palra de Acapulco,
canta Aznavour com voz de franciscano.
Eu sou, atira-te, gémeos, e tu,
espera querida, espera, tu és touro.

Assim é como o gajo
consegue uma queca lá na tribo dele.

Com isto do amor, digo-lhe por coqueteria,
vai bem o bâton gretado,
os parques remotos, o cigarro sozinha,
as luas amolgadas,
os carros espatifados.

Levanto-me para comprar Gauloises.
Deixo-o com os olhos
afundados no copo
ainda mais turvo que os meus olhos.
Já na rua,
penduro-me de um catalão
E trauteio esta canção de Piquer:
E ele veio num baaarco…







violeta c. rangel
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000





07 junho 2008

outros mundos




Descobrir outro mundo não é apenas um facto imaginário. Pode acontecer aos homens. Aos animais também. Por vezes, as fronteiras resvalam ou interpenetram-se: basta estar presente nesse momento. Vi o facto acontecer a um corvo. Esse corvo é meu vizinho: nunca lhe fiz mal algum, mas ele tem o cuidado de se conservar no cimo das árvores, de voar alto e de evitar a humanidade. O seu mundo principia onde a minha vista acaba. Ora, uma manhã, os nossos campos estavam mergulhados num nevoeiro extraordinariamente espesso, e eu dirigia-me as apalpadelas para a estação. Bruscamente, à altura dos meus olhos, surgiram duas asas negras, imensas, precedidas por um bico gigantesco, e tudo isto passou como um raio, soltando um grito de terror tal que eu faço votos para que nunca mais oiça coisa semelhante. Esse grito perseguiu-me durante toda a tarde. Cheguei a consultar o espelho, perguntando a mim próprio o que teria eu de tão revoltante…
Acabei por perceber. A fronteira entre os nossos dois mundos resvalara, devido ao nevoeiro. Aquele corvo, que supunha voar à altitude habitual, vira de súbito um espectáculo espantoso, contrário, para ele, às leis da natureza. Vira um homem caminhar no espaço, mesmo no centro do mundo dos corvos. Deparara com a manifestação de estranheza mais completa que um corvo pode conceber: um homem voador…
Agora, quando me vê, lá do alto, solta pequenos gritos, e reconheço nesses gritos a incerteza de um espírito cujo universo foi abalado. Já não é, nunca mais será como os outros corvos…





loren eiseley
citado por louis pauwels
em o despertar dos mágicos
trad. gina freitas
livraria bertrand
1973



05 junho 2008

monet







Estou a ouvir música.
Debussy usa as espumas do mar a morrer na areia,
refluindo e fluindo.

Bach é matemático.
Mozart é o divino impessoal.
Chopin conta a sua vida mais íntima.
Schoenberg, através de seu eu, atinge o clássico eu de todo o mundo.
Beethoven é a emulsão humana em tempestade
procurando o divino
e só o alcançando na morte.

Quanto a mim,
que não peço música,
só chego ao limiar da palavra nova.
Sem coragem de a expor.

O meu vocabulário é triste
e às vezes wagneriano-polifônico-paranóico.

Escrevo muito simples e muito nu.
Por isso fere.
Sou uma paisagem cinzenta e azul.
Elevo-me na fonte seca e na luz fria.









clarice lispector
um sopro de vida: pulsações
ed. francisco alves
rio de janeiro
1991


02 junho 2008

terrível





Terrível
um cavalo à noite
de pé atrelado sozinho
na rua silenciosa
e relinchando

como se alguém nu montado nele
o tivesse cingido com pernas ardentes
e cantado
uma sílaba
doce estridente esfomeada única









lawrence ferlinghetti
pictures of the gone world
trad. josé palla e carmo
cadernos de poesia
dom Quixote
1972


29 maio 2008

a trégua






Havia uma desarrumação no cabelo, se tinha
Calções eles caíam; puxava-os para cima, não
Me penteava.
Se alguma trégua fiz com a infância foi esta:
Ainda não uso pente, os calções são calças,
mas continuam a cair. Por delicadeza,
Puxo-as para cima.






gonçalo m. tavares
1 poesia
relógio d´água
2004




28 maio 2008

a morte







A Morte

— a Morte de que eu falo —
não é a que segue logo a tua queda,
mas precede a tua aparição no fio.

Antes de subir é que morres.

O que dança já está morto
— decidido a todas as belezas, capaz de todas elas.

Quando apareces, vai uma palidez

— não, não estou a falar de medo mas do contrário,
de uma invencível audácia —
vai uma palidez cobrir-te de cima a baixo.

Apesar da pintura e das lantejoulas
serás pálido e de alma lívida.

E nessa altura

é que a tua precisão será perfeita.
Sem mais nada que te prenda ao chão,
podes dançar sem cair.

Mas trata de morrer antes de apareceres,

e seja um morto,
já,
a dançar no fio.

(...)








jean genet
o funâmbulo
trad. de aníbal fernandes
hiena editora
1984



26 maio 2008

pela tua natureza discorro




Como renasces ao amar. Que corpo te possui? Dimanam (crescem) de ti forças que ignoro ao transtornar-te, ao abateres nesta ondulação envolvente que é o acto de amarmos, uma guilhotina ascendente partindo do corpo para o espaço, contrariando a gravidade e por isso mesmo fixar-se como um olho severo e ciclópico, um sexo assexuado, pénis-vagina, hermafrodita florestal, animal vegetal, a longa experiência dos equinodermes, a solidão dos ciclóstomos, os primitivos placentários de corpo minúsculo.

Mas que imensidão quando emerge nos teus olhos esta recriação do procriar, a grandeza do prazer, a ferocidade da morte-viva, a imitação da vida, o desflorar da atmosfera dos pulmões que nos respiram, o sorvo cataléptico do teu orgasmo plasmado no meu, trevas e luzes que escorrem em denso liquido, um sangue contaminado e bebível no seu jorro ovariano, uma natureza que se contraria pura para te ter, agarrar com dedos enclavinhados os tecidos mais secretos do teu ser, fundir a matéria espermática do que sou e, construção escultórica de mãos, explodir no magma, crestar para enobrecer enobrecido, dissolver os contornos, transcender seus átomos.

Madrid, Janeiro de 1972







carlos eurico da costa
colóquio letras nr. 12
março 1973
fundação calouste gulbenkian
1973




25 maio 2008

cigarro






no dia
em que as luzes se apagaram
tinha um cigarro
na mão

um amigo

que me disse tudo
até à cinza








gil t sousa
falso lugar
2004






22 maio 2008

tristes passos






Tropeçando de volta à cama depois de uma mija
Afasto as grossas cortinas e surpreendo-me
Com as nuvens que correm, com a lua tão limpa.

Quatro da manhã: jardins de sombras oblíquas, jazendo
Sob um céu cavernoso e rasgado pelo vento.
Há nisto uma faceta ridícula,

Na lua a lançar-se através de nuvens fugazes
E soltas como fumo de canhão, para logo se apartar
(A luz pétrea aguçando, cá em baixo, os telhados)

Alta e soberba e separada –
Pastilha de amor! Medalhão de arte!
Ó lobos da memória! Imensidões! É certo,

Há um leve arrepio, quando se olha para o alto.
A dureza e a claridade e o alcance,
A singularidade de tão vasto e fixo olhar

É lembrança da força e da dor
De ser jovem; do que não se pode ter de novo,
Mas que é vivido por outros, em pleno, nalgum lugar.










philip larkin
janelas altas
trad. rui carvalho homem
cotovia
2004





20 maio 2008

andre breton e paul éluard / a vida





Da flor japonesa à coxa da rã galvanizada, vai ser preciso dormir muito para nos apercebermos da transformação. Da porta que é um corpo-a-corpo, à janela que é uma peleja, o soalho é um papagaio, o tecto um corvo que teve medo.

Há ainda a recordar do dia seguinte, a recordação de atrozes aventuras num nevoeiro de enforcado. Sabe que foi denunciado, que um parapeito está dali em diante à sua volta para o impedir de se lançar no relógio inútil que se pôs a indicar as horas. A aurora da tarde filtrada lembra-lhe a carne pura que, na proximidade dos homens, sempre desaparece num ruído de canaviais. Porque ele tocará a carne muito tempo sem a sentir e, quando a sentir, será à maneira daqueles animais encantadores que apenas sonham com a liberdade.
Toda uma rede de caretas e de contorções se opõe a que a jangada da sua idade regresse à secreta fonte do seu coração. A tarde em vão fecha a porta, uma estrada de passos, de sons, de esperança e de fadiga sempre lhe mostra aquelas grandes construções negras em que tudo para ele se compõe.

O vago substitui pouco a pouco o determinado. Em vez do sangue estende-se o mata-borrão, o mata-borrao que se embebe nas suas cartas sempre maniacamente datadas de Creusot. Olhos puros de nuvens pousam sobre ele como a ave na sua sombra. Lâmpadas varrem com a sua saia de pedra a escadaria de prata que vai dar ao grande ar dos países sem janelas. Que procura então este homem que faz uma mancha na terra? Este pobre quebra-luz lá está sobre a lâmpada das estrelas cadentes. Debate-se com a sombra matizada que choca nas suas pregas ovos de galinha-d’água, donde nascerão em hora adiantada o dever, a oportunidade a pequena felicidade e o fracasso. Os poderes do desespero com as suas rosas de sabão, os seus afagos desencontrados, a sua dignidade mal vestida, as suas respostas fugidias a perguntas de granito apoderam-se dele. Levam-no à escola das escórias, depois de o terem trajado com um avental de fogo. Persuadem-no de que o cabo de vassoura das bruxas cai a pique numa eternidade grotesca de retaguardas brilhantemente esclarecidas. Bocejam-lhe na cara sobretudo, e o que tem de mais trágico, bocejam sobre a mulher sem sequer terem o cuidado de pôr a mão sobre a boca, bocejam dos frutos da mulher com aroma de amêndoas amargas, bocejam da beleza, bocejam da duração, bocejam da recusa desta beleza e desta duração.

Uma manhã, ele lá está, a ver respirar uma cabeleira de anémonas. A rua saúda com todas as suas rodas, Entre todos os astros este... entre todos os astros… este que se submete a este astro inesquecível... Está tão perfeitamente só que se exceptua do total. Fita o dorso dos livros que se arqueiam. Escuta a música que brilha nos sapatos. Por vezes, ao meio-dia, sorri doze vezes. Sorri também à noite, quando tem medo. Põe em todas as suas sensações as algemas do sorriso.








andre breton e paul éluarda imaculada concepção
tradução franco de sousa
estúdios cor
1972





avenida maio






gil t. sousa
avenida maio 2008


18 maio 2008

claro







claro que o moço na duna teve de notar
que eu o olhava intensamente.
claro que depois passou por perto de mim
com muitos movimentos dispensáveis
mesmo fazendo como quem diz que não me via.
claro que começou um ballet de primavera
com um miúdo amigo e uma bola,
claro que se fartou, em jeito demasiado à menina,
de passar a mão pelos longuíssimos cabelos
e olhou por cima do ombro ao fazê-lo,
dentes brilhando num rosto escuro.
claro que mais tarde se deitou
mastigando indolente um pé de erva
naquele tocante calção de banho desbotado
sozinho numa quente concavidade da duna.
claro que me afastei sem barulho e despercebido
e claro que passo o dia a arrepender-me disso.







hans warren
uma migalha na saia do universo
antologia da poesia neerlandesa do século vinte
selecção de gerrit komrij
tradução de fernando venâncio
assírio & Alvim
1996


16 maio 2008

morte






Que triângulo ou círculo poderá cercar-te
Para que te detenhas demorada e minha
Para que não desças toda pela escada






sophia de mello b. andresen
dual
(a casa)
caminho
2004





13 maio 2008

que sabes tu da mentira







(…)

Que sabes tu da mentira, que sabes tu das substâncias suportáveis?


Como entrareis na minha paciência? A minha língua é velha em
duas cascas. Amo e não desejo.



Como entrareis na minha paciência? Inclusive tu, se não envelhe-
ceres, como me entregarás a tua juventude?

(…)







antonio gamoneda
descrição da mentira
trad. vasco gato
quasi
2007



08 maio 2008

versos limpos







amei com palavras grandes
e secretas

amei com versos limpos









gil t sousa
falso lugar
2004





07 maio 2008

samuel beckett / what is the word






loucura -
loucura porque -
porque -
que palavra será -
loucura disto -
tudo isto -
loucura de tudo isto -
dado -
loucura dado tudo isto -
visto -
loucura visto tudo isto -
isto -
que palavra será -
isto isto -
isto isto aqui -
tudo isto isto aqui -
loucura dado tudo isto -
visto -
loucura visto tudo isto isto aqui -
porque -
que palavra será -
ver -
vislumbrar -
parecer vislumbrar -
precisar de parecer vislumbrar -
loucura porque precisar de parecer vislumbrar -
que -
que palavra será -
e onde -
loucura porque precisar de parecer vislumbrar que onde -
onde -
que palavra será -
ali -
ali mesmo -
além ali mesmo -
ao longe -
ao longe além ali mesmo -
a custo -
a custo ao longe além ali mesmo que -
que -
que palavra será -
visto tudo isto -
tudo isto isto -
tudo isto isto aqui -
loucura porque para ver o que -
vislumbrar -
parecer vislumbrar -
precisar de parecer vislumbrar -
a custo ao longe além ali mesmo que -
loucura porque precisar de parecer vislumbrar a custo ao longe além ali mesmo que -
que -
que palavra será -

que palavra será









samuel beckett
últimos trabalhos
tradução de miguel esteves cardoso
assírio & alvim
1996.




05 maio 2008

ficarão para sempre abertas as minhas salas negras







Ficarão para sempre abertas as minhas
salas negras.

Amarrado à noite,
eu canto com um lírio negro sobre a boca.

Com a lepra na boca,
com a lepra nas mãos.

Este mamífero tem sal à volta,
este mineral transpira, a primavera precipita-se.

Com a lepra no coração.

Mais de repente,
só chegar à janela e ver uma paisagem tremendo
de medo.

E uma vida mais lenta
só com uma estrela às costas,
uma tonelada de luz inquieta,
uma estrela respirando como um carneiro
vivo.

Igual a esta espécie de festa dolorosa,
apenas um ramo de cabelos violentos
e o seu odor a pimenta,
no lado escuro
como se canta que as salas vão levantar
o seu voo.

Ficarão para sempre abertas estas mãos exageradas
em dez dedos com sono,
como uma rosa acima do pénis.

Ao cimo do caule de sangue,
essa flor confusa.

Um equilíbrio igual,
só a estrela ao cimo do êxtase.

Só alguma coisa parada no cimo de uma visão
tremente.

A primavera, que eu saiba,
tem o sal como cor imóvel,

Por um lado entra a noite,
assim de súbito negra.

De uma ponta à outra enche-se o espaço
aplainando tábuas.

Rasga-se seda para aprender o ritmo.

Abraço um corpo com as camélias
a arder.

Abertas para sempre as negras partes
de mais uma estação.

Semelhante a isto
as mulheres andam pelas galerias transparentes,
e o palácio queima a noite onde estou
cantando.

É possível ainda cortar ao meio o ofício de ver —
e num lado há espelhos bêbedos,
no outro um cardume ilegível de sons
obscuros.

Sabe-se então pelo silêncio em volta,
sabe-se em volta que são lírios
sonoros.

Passando
as mulheres colhem estes sons irrompentes,
e as mãos ficam negras junto à beleza
insensata.

Elas sorriem depois com um talento
terrível.

Levamos às costas um carneiro palpitante.

Pesa tanto uma estrela
quando se acorda nas salas negras abertas de par em par,
e as mãos agarram um ramo de cabelos dolorosos,
e sobre a boca um lírio em brasa,
branco, branco,
que não nos deixa respirar.

A lepra na boca,
que não nos deixa respirar.


Um ramo de lepra contra o corpo,
como isto então só o movimento de águas obscuras
pelos canais de um canto,
como um palácio de salas negras abertas
para sempre.

Este animal respira como um espelho de pé,
no ar,
no ar.











herberto helder
apresentação do rosto
(as palavras)
editora ulisseia
1968






28 abril 2008

os nós da escrita





Escrever é, para mim, tentar desfazer nós, embora o que na realidade acabo sempre por fazer seja embrulhar ainda mais os fios. A própria caligrafia é sufocada.

Há, todavia, um momento em que as palavras são cuspidas, saem em borbotões, e o sangue e a saliva impregnam o sentido. É impossível separá-los.

Por trás talvez não haja mesmo nada. São palavras que não estão ginasticadas, que secam e encarquilham como folhas por que a seiva já não passe.

Oprimem toda a página, através da qual deixa de ser possível respirar. Tapam-lhe os poros. A própria chuva que neles caia não se escoa.








luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
rebentação
publicações dom quixote
2002




corridor in the asylum








vincent van gogh
(dutch, zundert 1853 - 1890 auvers-sur-oise)
dutch
corridor in the asylum, september 1889; 19th century
bequest of abby aldrich rockefeller, 1948 (48.190.2)
the metropolitan museum of art


24 abril 2008

noite de abril






hoje, noite de abril, sem lua,
a minha rua
é outra rua.


talvez por ser mais que nenhuma escura
e bailar o vento leste
a noite de hoje veste
as coisas conhecidas de aventura.


uma rua nova destruiu a rua do costume,
como se sempre nela houvesse este perfume
de vento leste e primavera,
a sombra dos muros espera
alguém que ela conhece.


e às vezes, o silêncio estremece
como se fosse a hora de passar alguém
que só hoje não vem.










sophia de mello b. andresen
obra poética I
caminho
1999


21 abril 2008

nesse dia






*

nesse dia ele parecia-se tanto consigo que se confundia,
tal como o dia se confundia consigo mesmo
e a confusão a ambos confundia


*






per aage brandt
livro da noite
trad. maria joão reynaud
poetas em mateus
quetzal
2004





17 abril 2008

a função do geógrafo





1.


Se quiseres que eu me perca
buscarei outra ilha.
Esperarei a sombra diante dos olhos,
o milhafre na ravina de crisântemos.
Ao longe, correndo para a primeira luz do dia,
estarei à tua espera,
acenando com a mão esquerda,
avançando sobre o mar.
Não te esqueças,
aprendi um dia como deus nos traz um sono
leve que nos cega.








rui coias
a função do geógrafo
quasi edições
2000





16 abril 2008

memória







e vinha a luz
e guardava-te

e eu guardava-te
também

num lugar mais seguro
que uma fotografia
ou um poema








gil t. sousa
água-forte
2007




10 abril 2008

há sede nos cantos da boca






há sede nos cantos da boca encerrada para obras
películas brancas brotam dos caminhos para o beijo
regos de águas paradas enxameiam as planuras
das aguarelas encaminhadas no sentido inverso
da nostalgia

a menina deixa a saia de tule branco
para usar uns calções de pele genuína
esganado que foi o animal da sua alma

saem-lhe perfumados chifres da cabeça
entontecida
os problemas respiratórios agravam-se
com a boca fechada para obras
os beijos perdem o norte
e enrolam-se nas palhas dos trigos ceifados
nas planuras aguareladas
repletas de nostalgias remanescentes







m.f.s.






09 abril 2008

carta da infância





Amigo Luar:


Estou fechado no quarto escuro
e tenho chorado muito.
Quando choro lá fora
ainda posso ver as lágrimas caírem na palma das
minhas mãos e brincar com elas ao orvalho
nas flores pela manhã.
Mas aqui é tudo por demais escuro
e eu nem sequer tenho duas estrelas nos meus olhos.
Lembro-me das noites em que me fazem deitar tão
cedo e te ouço bater, chamar e bater, na fresta
da minha janela.
Pelo muito que te tenho perdido enquanto durmo
vem agora,
no bico dos pés
para que eles te não sintam lá dentro,
brincar comigo aos presos no segredo
quando se abre a porta de ferro e a luz diz:
bons dias, amigo.







carlos oliveira
trabalho poético
sá da costa
1998





07 abril 2008

tu anseias?!






- Alguma vez anseias?
- Se anseio?!... Se eu anseio?
- Eu anseio.
- Tu anseias?!
- Anseio, pois!... Muitas vezes sento-me e anseio!... Já ansiaste?
- Recentemente, não. Suspirei. Passo o tempo a suspirar. Estou sempre a suspirar!... Mas não ansiei.
- Olha para ti.
- Kramer, não comeces.
- Estás a desperdiçar a tua vida.
- Não estou nada. Aquilo a que chamas desperdiçar eu chamo viver. Estou a viver a minha vida.
- Ah, estás?! Tudo bem. Diz lá!... Tens emprego?
- Não.
- Tens dinheiro?
- Não.
- Tens uma mulher?
- Não.
- Tens perspectivas?
- Não!
- Tens alguma coisa no horizonte?
- Não.
- És minimamente activo?
- Não!
- Tens alguma razão imaginável para te levantares de manhã?
- Gosto de comprar o Daily News.
- George, está na altura de crescermos… e de nos tornarmos homens. Deixarmos de ser catraios.
- Porquê?
- Vou para a Califórnia. Estou com o bichinho.
- Parece que também estou a sentir qualquer coisa.
- Com o bichinho de actor. Desde que entrei no filme do Woody Allen.
- “Estes pretzles dão-me sede” ?! Foi uma deixa. Foste despedido.
- Eu sei, eu sei, mas, caramba nunca me senti tão vivo. Vens comigo?
- Não, não vou.
- Certo, como queiras, mas isto que fique aqui entre nós. Agora, somos irmãos de chave.
- Não vais mesmo para a Califórnia, pois não?
- Aqui… na cabeça, já fui.






seinfeld
diálogo entre kramer e george costanza
episódio 23
jerry seinfeld, carry charles
trad. Isabel monteiro, ideias & letras
sic radical


31 março 2008

andre breton e paul éluard / o nascimento



O cálculo das probabilidades confunde-se com a criança, negro como a mecha de uma bomba posta na passagem de um soberano que é o homem por um anarquista individualista da pior espécie que é a mulher. O nascimento, tirando isto, não é mais que uma rotunda. Uma tal auréola aplicada ao filho do homem e da mulher não corre o risco de que possam parecer menos insípidos os cueiros de rato que lhe prepararam e o berço como um esgoto onde o despejam com a água suja e o sal da tolice que permitiu esperar a sua vida como a de uma fénix obediente.
O vizinho afirma que ele é feito à imagem do fogo de lenha, a vizinha que não o podem comparar melhor que ao aspecto dos aeroplanos e a fada degenerada que fixou domicílio na cave inclina-se a dar-lhe como antepassado o gipso em ferro de lança que tem um pé na ociosidade e o outro no trabalho.
Para todos, ele traz em si as suas promessas. Cada um quer aprender a sua língua filial e interpreta o seu silêncio. Diz-se em toda a parte que com a sua presença favorece um mundo que já não podia passar sem ele. É o agulheiro de gatinhas, aquele que provoca com certeza o descarrilamento com panorama de ponte, celebrado pelo Petit Journal Illustrè. Traz em medalhão o salvamento, «Papá» é um disco em forma de lua, «Mamã» é côncava agora como a baixela.
Para suspender o efeito de uma presença tão obstinada como a do vaso de latão sobre a chaminé de salitre, um raio de mel veio esconder-se no quarto. Todos os cumprimentos do uso foram inúteis. Não há ninguém aqui. Nunca aqui existiu alguém.






andre breton e paul éluard
a imaculada concepçãotradução franco de sousa
estúdios cor
1972



26 março 2008

esta folha que eu abro não é para ti






Esta folha que eu abro não é
para ti. Veio dos imaginados desertos
da memória, trouxe-a a esta claridade
como quem a não queria aguar.
Folhas de deserto: o acaso das palavras
feriu-a nas gaiolas urbanas.







helder moura pereira
sião
antologia
org. al berto, paulo da costa domingos e rui baião
frenesi
1987






25 março 2008

o meu tempo (1960-1993)






Agora as pessoas
não sabem morrer
estar doentes
sofrer
ter prazer
tocar-se
dantes também não
(Ó mais nu
e branco dos homens)









adília lopes
caras baratas
antologia
relógio d´água
2004




15 março 2008

hugo van hofmannsthal / balada da vida exterior






E crianças crescem com olhos fundos,
Que nada sabem, crescem e logo morrem,
E toda a gente segue o seu caminho.

E frutos doces saem dos amargos
E caem de noite, pássaros mortos,
E ali ficam uns dias e apodrecem.

E o vento sopra sempre, e sempre nós
Ouvimos, dizemos muitas palavras
E sentimos prazer, membros cansados.

E estradas cortam campos, e lugares
Há-os aqui e ali, com luzes, árvores, lagos,
E ameaçadores, secos, já mortos…

Quem os ergueu? Para quê? Nenhum é igual
Aos outros. E são tantos, não têm fim…
Que mão nos manda riso, choro, pavor?

De que serve tudo isso e estes jogos,
A nós, já grandes e eternamente sós
E sem buscar um fim nesta jornada?

De que serve ter visto tanta coisa?
E afinal muito diz quem só diz «noite»,
Palavra de onde escorre triste melancolia

Como mel espesso de favos vazios.







hugo van hofmannsthaláustria (1874-1929)
trad. joão barrento
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001






11 março 2008

tranches de savoir



*

Não se vêem vírgulas entre as casas, o que torna tão difícil a sua leitura e as ruas tão cansativas de percorrer.
A frase nas cidades é interminável. Mas fascina, e os campos são abandonados pelos trabalhadores outrora corajosos que agora querem inteirar-se por si próprios do texto admiravelmente retorcido, de que toda a gente fala, tão difícil de seguir, não raro impossível.
Embora tentem fazê-lo, esses trabalhadores opiniosos, andando sem cessar, lambem à passagem as doenças dos esgotos e a lepra das fachadas, mais do que o sentido que continua oculto. Drogados de miséria e de fadiga, deambulam em frente das montras, desviando-se por vezes do seu intuito, a sua busca nunca… e assim se perdem os nossos bons campos.







henri michaux
(fatias de sabedoria, 1950)
antologia
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
1999


de cima, de antes, de mais fundo






de cima, de antes, de mais fundo
me suspendo, de um jardim, de um espelho
em reflexão, de um automóvel em corrida,
de mais fundo me suspendo, internamente,
de antes, de cima. do mais fundo estado,
como um dente a entrar no alimento,
como um rio a entrar no estado sólido,
reconditamente entro, reconcentro
os vários sítios do meu centro,
em reflexão.






luiza neto jorge
o seu a seu tempo
poesia
assírio & alvim
1993




08 março 2008

as origens da arte moderna




Foi no Salão dos Recusados de 1863, à margem do Salão oficial da Academia, que alguns pintores jovens, que viriam a ser os impressionistas, tiveram consciência das suas aspirações comuns. O Almoço na Relva de Manet, tinha causado escândalo. O público indignava-se perante essa arte viva que, todavia, se limitava a retomar moderadamente um velho tema clássico querido a Giorgione e a Ticiano. Se o termo «impressionismo» surgiu na boca dum jornalista trocista a propósito duma tela de Claude Monet, Impressão, Sol Nascente, pode realmente definir a estética que corresponde aos acontecimentos sociais, culturais e científicos cerca de 1870. O futuro pertencia à ciência; as grandes invenções sucediam-se: Bell descobria o telefone, Edison, a lâmpada de incandescência, Pasteur, as leis da assepsia; as linhas de caminho de ferro multiplicavam-se. Uma vez que a invenção da fotografia punha ao alcance de todos a reprodução fiel do mundo visível, tornava-se necessário ir mais longe do que o realismo de Courbet. Por outro lado, as pesquisas de Chevreul no domínio da óptica e da cor mostravam que a luz se dividia em cores fundamentais, as quais eram registadas na retina segundo determinadas leis, pois os olhos apenas detectam manchas luminosas modeladas pela cor.

Assim, os pintores impressionistas, para captarem melhor a realidade óptica essencialmente luminosa e momentânea, acabaram por se interessar principalmente pela natureza, pela luz incessantemente mutável da paisagem, pelos espectáculos mais fugidios: as reverberações da água, as nuvens. Abandonando o atelier, instalando-se ao ar livre, aplicam a cor pura com pequenas manchas separadas, reconstituindo assim toda a luminosidade e movimento das coisas. Entretanto, Manet desconfia do «ar-livi-ismo»; já sabemos que ele gosta do jogo dos negros e dos brancos, dos mistérios da sombra e da luz, dos cinzentos. A procura dos tons puros feita pelos seus amigos impressionistas nunca o afastará dessas preferências. A Olímpia é uma variação sobre o claro-escuro; a pincelada fluida brinca nos brancos quentes da pele, no marfim do xaile e no branco azulado do lençol. As diversas texturas são apenas sugeridas; o artista não procurava indicar todos os fios do tecido. Uma pintura tão fresca, tão clara e tão directa teria que ofuscar a Academia, a qual considerava o quadro apenas como um esboço.

Contudo, esta obra-prima tratava um assunto frequentemente exposto nos Salões, o nu; mas os nus oficiais eram adocicados e idealizados, enquanto o de Manet é duro e realista; a carne parece viva e sólida, ao passo que os pintores tradicionais parecia que enchiam os modelos com algodão. Além disso, os nus académicos, sempre alegóricos, eram impessoais, pretendendo representar a Verdade, a Primavera ou a Alvorada, enquanto o de Manet é individualizado e, nessa época, identificável, pois é o retrato dum modelo profissional muito conhecido.

Vinte anos depois, n’ O Bar do Folies Bergére, Manet leva mais longe a simplificação das formas. As garrafas do bar são indicadas com uma série de pinceladas ousadas; Manet mostra apenas o essencial. O seu realismo óptico nunca é fotográfico. Implica uma selecção, uma escolha de pormenores vaporosos que não tem nada de comum com a precisão, forçosamente objectiva, da fotografia dessa época. Por maior que seja o interesse de Manet pelos fenómenos ópticos, o artista nunca se esquece de que é pintor, dispondo-se a sacrificar a realidade visual à composição. Atrás da criada, um espelho reflecte a sua imagem e a dos clientes sentados. Ora, sob o ponto de vista do realismo, é evidente que ninguém que se encontrasse diante da criada poderia ver todas essas imagens. Manet escolheu, pois, arbitrariamente, várias ópticas diferentes para intensificar a impressão que nos quis dar.

Separadamente, os temas tratados pelos impressionistas não têm talvez importância, mas, considerados em conjunto, traduzem a vida da época. Pessoalmente, Manet era bastante venturoso. Preferiu muitas vezes reconstruir os modestos divertimentos campesinos dos parisienses; mas retratou também outros, mais mundanos. As diversões campestres, como actualmente os fins-de-semana no campo, faziam na altura a alegria de muitos citadinos. Os pintores evocavam esses pequenos prazeres junto do rio, os passeios de barco e o sossego dos campos. Manet e outros gostavam também de mostrar os teatros, os passeios públicos, as salas de dança e os hipódromos, divertimentos preferidos da boa burguesia.

Claude Monet (1840-1926) é o verdadeiro corifeu do movimento impressionista. Formou-se junto de Boudin, Jongkind e Courbet. Em 1870, refugiou-se da guerra em Londres, na companhia de Pissarro e Sisley. A qualidade particular da luz londrina exerceu nos três artistas uma fascinação extraordinária que determinou o destino do Impressionismo. A luz brumosa e difusa que dilui os contornos correspondia às suas pesquisas. Apesar da sua precisão atmosférica, as paisagens de Monet têm uma grande beleza lírica. Um profundo amor à natureza impregna a sua obra, transcendendo o aspecto objectivo . A composição é tão livre que parece fortuita, e a rapidez da pincelada fez com que as pessoas da época dissessem que eram apenas esboços. Monet acabou por não ver no mundo senão um efeito de perpétuos movimentos luminosos .

Ninguém levou tão longe o estudo da luz como Monet. Pierre Auguste Renoir (1841-1919) divide os tons nas suas paisagens, mas parece estar menos apaixonado pelos problemas da atmosfera e da luz. Importa-lhe, principalmente, a figura humana, de preferência feminina. N’ O Baile no Moulin de la Galette, representando um lugar onde se dança ao ar livre, utiliza-se pouco a cor dividida. Todavia, encontra-se o gosto impressionista pela luz nos raios de sol filtrados pelas folhas das árvores e salpicando as caras e os vestidos azuis das mulheres. E o que desconcerta toda a gente, em 1876, pela sua novidade, é as sombras terem uma tonalidade violeta, o que todavia se pode verificar na realidade, olhando atentamente.

Com o tempo, Renoir continuou a estudar a mulher, de preferência gorda como a Banhista, uma das numerosas versões dum mesmo tema. Se utilizou a técnica impressionista até ao fim da vida, foi para poder obter tonalidades brilhantes com pequenas pinceladas vivas de vermelho, amarelo, violeta e azul. A expressão do volume tornou-se o centro das suas preocupações. Embora as figuras sensuais sejam um pouco estilizadas, a estrutura e o movimento delas continuam a ser primordiais. Encontra-se nas suas telas algo característico de Rubens, reelaborado pela imaginação fecunda de Renoir, tornando-se mais delicado, tipicamente francês. É que este pintor, mais do que os outros impressionistas, conservou alguns elementos da tradição francesa que o ligam espiritualmente a alguns grandes artistas franceses do passado, como Delacroix, Fragonard ou Boucher.

Edgar Hilaire Germain Degas (1834-1917) não pode ser considerado como um verdadeiro impressionista. Conservou o desenho delicado de Ingres, e mesmo o seu estilo linear. Muito rico, Degas criava para seu próprio prazer; desprezava tudo o que era banal; apreciava, pelo contrário, o inesperado e o que contrariasse os hábitos. As cores de algumas das suas cenas de bailado ou das suas banhistas podem espantar o espectador ou chocá-lo. É que Degas não hesita em associar um verde arsénico com manchas vermelho-tijolo ou malva; estas combinações parecia destoarem, quando na realidade dão muito sabor à sua pintura. Nessa época, considerou-se essa paleta discordante; os nossos olhos habituaram-se a esses efeitos, assim como o ouvido se habituou também há muito tempo à música de Wagner, que na mesma época se considerava cacofónica.

A rejeição de convenções não se encontra apenas nas composições de Degas, mas também na escolha dos temas. O pintor evita os tipos e as atitudes amáveis, preferindo o que então se considerava deselegante. Por outro lado, a Bailarina exprime, com muita felicidade, mais a beleza passageira do bailado do que a personagem, e é realmente por este aspecto fugidio do momento fixado na tela que o artista se vincula ao Impressionismo. Poderá notar-se que a bailarina se encontra à direita do quadro. Todavia, a composição está perfeitamente equilibrada, porque o artista contrabalançou a mancha clara da bailarina com a mancha escura do chefe do corpo de dança, junto aos bastidores. Verifica-se assim que a pintura, quando o assunto se torna secundário, adquire significação e qualidades a partir da disposição, cuidadosamente composta, dum certo número de superfícies e de volumes coloridos que são como outras tantas acentuações. Até então, a pintura ocidental tinha-se quase sempre baseado num conjunto de linhas ou de movimentos que conduziam o olhar dum ponto para outro e que ligavam as formas umas às outras, criando a unidade da composição. Esta podia ser geométrica, como nos pintores do Renascimento italiano, ou livre, como nos mestres holandeses, mas uma certa ligação visual existia sempre entre as diversas partes. Pelo contrário, a arte extremo oriental tende a basear a composição na reunião dum certo número de acentuações gráficas e coloridas. Os Orientais conhecem, por exemplo, o valor dos brancos, formando espaços abertos, e tiram partido disso: dispõem algumas flores ou frutos num rectângulo e é essa disposição que cria a composição e sugere o espaço.

Precisamente, os impressionistas descobriram as estampas japonesas, assim como tinham descoberto Velásquez, não só porque estavam preparados para as compreender, mas também, mais directamente, porque se efectuou uma exposição de estampas dessas em Paris nos anos 6o. Degas não vai buscar os temas à arte oriental; mas as suas composições são influenciadas por ela, assimilando-a a ponto de a integrar no próprio estilo. É por isso que lhe acontece omitir uma parte dum objecto, e mesmo a parte mais importante, desde que a parte restante cumpra a função plástica procurada. Por exemplo, o chefe do corpo de dança fornece a mancha escura necessária para estabelecer um equilíbrio assimétrico; mas a cabeça não acrescentaria nada e por isso Degas esconde-a atrás dum pano do décor. Em vez de respeitar o ângulo de visão habitual, o pintor prefere olhar as personagens dum ponto de vista inédito, ora de cima, como se estivesse no balcão, ora de baixo, como se o espectáculo fosse observado do fosso da orquestra. Esta óptica explica-se facilmente, porque Degas era um frequentador assíduo da Ópera de Paris. Desde então, a fotografia e principalmente o cinema multiplicaram os enquadramentos e os ângulos de visão deste género, de modo que estamos actual e perfeitamente familiarizados com eles.

Como Degas, Toulouse-Lautrec (1864-1901) tem uma lucidez notável. Observa os costumes e os vícios dos seus contemporâneos e, com uma linha firme e expressiva, fixa-os numa cruel verdade.

Os inovadores do fim do século não tardaram a pôr em dúvida as próprias premissas do Impressionismo. A finalidade da pintura seria efectivamente registar o momentâneo, uma atmosfera sempre em mudança, uma ambiência luminosa efémera e fortuita? Não deveria o pintor procurar uma significação mais permanente? Não deveria estudar, antes de mais nada, a estrutura e a forma em vez das aparências? Alguns pintores pós-impressionistas testemunham estas inquietações. Entre eles, citemos em primeiro lugar Georges Seurat (1859-1891). Um Domingo na Grande-Jatte é impressionista pelo assunto: parisienses «de boa sociedade» vêm tomar ar à beira de água. Seurat, conservando inicialmente a divisão da pincelada impressionista, leva-a mais longe, fragmentando metodicamente essa pincelada em pontos coloridos, e é por isso que a sua técnica foi denominada pontilismo. Com efeito, consiste numa justa-posição de pequenas manchas de cor cuja intensidade é graduada para criar uma certa profundidade. Enquanto o método de Monet era parcialmente instintivo, o de Seurat é rigoroso e fundamentado.

As formas, de novo mais nítidas, estão de tal modo estilizadas que parecem quase abstractas, O artista não pinta nenhum pormenor supérfluo. Interessa-se principalmente pelos contornos, reduzidos ao essencial, que transformam as massas em figurações quase geométricas, representem elas o que representarem. As formas já não são um pretexto para exprimir os volumes e estabelecer o seu lugar no espaço. Não há movimento neste quadro e as personagens, rígidas, lembram as figuras monumentais de Piero della Francesca; tudo se passa de facto como se se encontrasse uma síntese da vida, imobilizada num instante altamente significativo e não apanhada repentinamente num momento passageiro. A isto chama-se Neo-impressionismo. Seurat morreu jovem. A sua obra marca um dos pontos de partida da arte moderna.

Também Paul Gauguin (1848-1903) exerceu uma influência determinante. Tornou-se pintor relativamente tarde, depois de ter sido marinheiro e empregado bancário. De ascendência peruana pelo lado materno, revoltou-se contra todas as convenções da sua época, tanto na vida privada como na vida artística. Primeiramente influenciado pelas cores luminosas dos impressionistas, depressa ficou fascinado — consequência das suas viagens marítimas — pelas civilizações primitivas, pouco marcadas pelo Ocidente. Foi sempre um visionário panteísta. Logo de início, a fé quase infantil das aldeãs da Bretanha inspirou-lhe O Cristo Amarelo, em que a figura distorcida do Redentor, tal como a mostram os calvários bretões, lembra as crucificações dos pintores italianos dos séculos doze e treze. Gauguin mostrou-se pouco preocupado com o realismo; o seu grafismo e as cores lisas anunciam já de certo modo o Expressionismo e, evidentemente, o Simbolismo. As toucas brancas das mulheres formam um arabesco sem relevo; lembram a arte do vitral, com zonas duma só cor delimitadas por contornos.

Este período bretão foi a primeira etapa do regresso de Gauguin ao primitivismo. Em 1891, instalou-se no Taiti. Este retorno às origens da arte revela-se bem em Manao Tupapau: a composição é bidimensional; cada forma ou zona colorida está delimitada por um contorno e pintada com uma só cor, sem modelado (designado, aliás mais sistematicamente, noutros artistas da mesma época, por cloisonnisme (termo que define a compartimentação das zonas coloridas nos quadros de Gauguin e seus continuadores. De cloison, tabique)). Para conseguir uma obra altamente decorativa, Gauguin não hesita em deformar as proporções das figuras, em modificar a perspectiva ou em sacrificar as cores da realidade. Os seus tons vigorosos são agora efectivamente os das tapeçarias e vitrais medievais. Apesar da intensidade das cores, os valores luminosos são pouco contrastantes no conjunto, sendo a riqueza das cores devida à sua profundidade.

Gauguin, tanto pelas pessoalíssimas concepções da arte, como pelas suas ideias sobre a religião, foi muito atraído pela arte primitiva, cujo carácter linear e ausência de perspectiva são em parte consequência da indiferença em relação a qualquer realismo e, por outro lado, são também consequência da interpretação mágico-religiosa das formas. Preferir isso à vida parisiense, era nessa época muito chocante para as pessoas, que, como bons burgueses conformistas, não lhe perdoaram. Com o tempo, a sua obra — a única coisa que conta, como em qualquer criador — triunfou dos preconceitos sociais. Gauguin extraiu dos povos primitivos tudo o que correspondia à sua estética pictural, sem os imitar todavia. Porque, apesar de pouco realistas, as suas formas não têm de modo algum uma concepção polinésica. Os assuntos têm muitas vezes uma inspiração ocidental, mas as personagens, o décor, grande número de símbolos e os títulos dos quadros do último período são neozelandeses.

Mais literalmente simbolista é a arte poética e misteriosa de Odilon Redon (1840-1916). Durante toda a vida, Redon teve talvez mais a companhia dos poetas do que a dos pintores. Foi amigo de Mallarmé e de Valéry. Sensível ao fabuloso, ao mágico, submeteu-se ao inconsciente, encontrando imagens próximas das «correspondências» de Baudelaire.

O místico ardente que era Vincent van Gogh (1853-90) lançou-se com uma paixão quase incontrolada em tudo o que fez. Como Gauguin, teve outras actividades antes de se consagrar unicamente à pintura. Empregado durante muito tempo na loja de Goupil, marchand d’art internacional — primeiro em Haia, depois em Londres e finalmente em Paris —, esse holandês visionário abandonou a profissão em 1876 para se tornar evangelizador protestante e trabalhar como missionário nos bairros pobres de Whitechapel, em Londres, e depois junto dos mineiros de Boridage. Mais pobre que os miseráveis a quem se dedica de corpo e alma, esse iluminado inquieta de tal modo os seus superiores religiosos que estes despedem-no. Em i88o, decide pintar, entregando-se à arte com uma energia feroz, produzindo uma grande quantidade de obras notáveis, principalmente durante os últimos cinco anos da sua vida, como se quisesse dizer tudo antes que a loucura e a morte o levassem.

Foi durante algum tempo amigo de Gauguin, que o influenciou um pouco, mas apenas exteriormente. O cloisonnisme e as cores lisas de Gauguin encontram-se, por exemplo, em A Ama, de Chicago (um dos cinco retratos que Van Gogh fez da Senhora Roulin), mas o sentido dos volumes é mais pronunciado em Van Gogh; antes de mais nada, é um retrato apaixonado e ardente que traduz o carácter do modelo, reflectindo simultaneamente a personalidade do artista. Van Gogh não se interessa pela beleza abstracta; procura principalmente valorizar o que lhe parece significativo ou expressivo (de facto, é um precursor do Expressionismo). Assim, viu a Senhora Roulin mormente como uma mãe; por isso aumenta as ancas e os seios. Como o pescoço se lhe apresentava desprovido de interesse, colocou a cabeça directamente em cima dos ombros. Quanto aos traços fisionómicos, bastante pesados e um pouco grosseiros, desprezou-os relativamente para dar maior importância aos olhos e à boca, aumentando-os para valorizar mais as características essenciais da cara.

Apesar da intensidade plástica desta tela, Van Gogh mostra-se nele muito decorativo, o que não está nos seus hábitos. A sua energia incandescente transforma em chamas A Estrada dos Ciprestes, em que o mais pequeno pormenor adquire uma vida atormentada. As cores foram aplicadas com violência em estrias onduladas, por vezes com o pincel, mas, mais frequentemente, com a espátula; a luminosidade e a pureza dos tons mostram que Van Gogh utilizava as cores tal como saíam dos tubos, sem as misturar. Toda a paisagem está em movimento; as árvores parecem chamas verdes e a terra é semelhante a uma vaga; céu e sol reduzem-se a turbilhões. Esta orgia visual, como muitas outras do mesmo artista, é sem dúvida produto dum espírito delirante, mas literalmente possuído pela necessidade de criar.

Se a Gauguin interessa principalmente o aspecto decorativo e a Van Gogh a grande intensidade dramática, Paul Cézanne atribui uma importância primordial à estrutura. Inicialmente, Cézanne (1839-1906), que era mais velho do que os outros dois, mas atingiu mais lentamente a maturidade artística, expôs com os impressionistas; todavia, a sua pincelada não tinha em nada a fluidez e a virtuosidade que Manet apreciava. Este, aliás, falando das telas de Cézanne, qualificava-as de «pintura suja», porque nessa altura elas estavam cheias duma pasta espessa, brutalmente triturada. Cézanne não negava algumas conquistas do Impressionismo, principalmente no domínio da cor, mas não podia admitir o seu gosto pelo momento transitório. Assim, procurou combinar as suas teorias da luz com a estrutura sólida que tinha observado nos museus, nos quadros dos mestres antigos.

A sua Natureza-Morta com Cesto merece um estudo profundo. Como Chardin, Cézanne dá à sua composição um certo equilíbrio arquitectónico. Ano após ano, estudou cada vez com mais cuidado a disposição das coisas que queria pintar. Escolhe objectos muito simples, que coloca frequentemente numa mesa de cozinha, como acontece neste caso. A disposição desta natureza-morta é subtil, na sua aparência despretensiosa. A parte da frente da mesa está paralela ao plano do quadro, o que é acentuado pelos objectos colocados horizontalmente na mesa e pelos frutos alinhados dentro do cesto. A cadeira que se vê ao fundo e o canto da outra mesa, à direita, põem fim a esta série de planos paralelos. Poderá notar-se, de resto, que esta composição é um conjunto de figuras geométricas. Assim, as maçãs são esferas e, para sublinhar esta forma, várias pinceladas concêntricas repetem a sua silhueta circular. Os contemporâneos censuravam Cézanne, dizendo que desenhava mal, e apresentavam como exemplo este género de naturezas-mortas. Mas Cézanne quis que, ela fosse assim mesmo, para obter um efeito de composição: o que ele fez foi submeter os dados do real ao fim artístico que queria atingir. De facto, com Cézanne começa uma das grandes aventuras da arte moderna: submeter as formas da natureza às necessidades da composição.

A aparências da realidade tiveram pois uma importância cada vez mais relativa para Cézanne. Por muito bela que seja a textura duma maçã ou a luz incidindo no fruto, são factores insignificantes para o artista, em comparação com a natureza fundamental do fruto e as possibilidades picturais que apresenta. Em geral, as maçãs são quase esféricas. É isso que ele retém e não os acidentes que possam deformá-las ou alterar-lhes a cor. Cézanne tenta dar o aspecto permanente e universal da maçã, tal como o imaginamos quando pronunciamos a palavra «maçã». Desde Giotto, a reprodução do volume numa superfície plana tornara-se uma das principais finalidades da arte ocidental. Cézanrne tentou também sugerir o volume, mas apenas com a cor, e não com os jogos de luz. Aí estava algo de novo! Efectivamente, Cézanne tinha reparado que algumas cores parece fazerem avançar as superfícies no espaço, enquanto outras as fazem recuar; este fenómeno visual permitiu-lhe modelar as massas apenas com a ajuda da cor e estabelecer uma sucessão de planos servindo-se unicamente de tonalidades diferentes. Cézanne abria assim um caminho novo para a pintura. Disse-se muitas vezes que foi, como inovador, o Giotto do século XIX. Primitivo do seu tempo, na medida em que tinha — como ele próprio dizia — «uma pequena sensação» da existência de possibilidades ainda inexploradas.

Esta «modulação modelante» pela cor pura, e a importância atribuída à estrutura, constituem os fundamentos da pintura de Cézanne e explicam o lugar importante que ocupa na história da arte. Reencontram-se estas concepções nas suas paisagens, como A Montanha Sainte-Victoire, de Washington (uma das suas numerosas variações sobre esse tema). Esta paisagem foi primeiro dividida em «tramas», ou seja num certo número de rectângulos, cada um deles desempenhando uma função na composição total, devido à ordenação dos pormenores e dos planos. Tem-se inicialmente a impressão de que estas composições inspiradas na natureza não têm nenhuma relação com a realidade, que são imaginárias. Ora, acontece que foram fotografados os lugares pintados por ele em Aix-en-Provence e arredores; as fotografias são evidentemente mais pormenorizadas do que os quadros, mas os elementos essenciais destes encontram-se surpreendentemente nas fotografias. Cézanne aplica aqui o mesmo método das naturezas-mortas; analisa o que vê diante de si com grande cuidado de modo a reter os elementos susceptíveis de formar uma composição pictural perfeitamente arquitectada rejeitando todo o acessório. No primeiro plano, o ramo de pinheiro, que tem o mesmo movimento da silhueta da montanha no horizonte, é um exemplo excelente disto. Tudo nos leva a pensar que esse paralelismo existia realmente, mas o pintor descobriu-o e tirou partido disso para criar uma relação entre o primeiro plano e o fundo, para nos fazer sentir uma impressão de espaço e conferir uma unidade maior à composição. E, tal como nas naturezas-mortas, prefere o geral ao particular, valorizando por exemplo a massa cilíndrica do tronco da árvore e a silhueta característica da montanha.

Voltamos a encontrar os mesmos princípios nas composições com figuras humanas. Agora, o problema é todavia mais complexo, uma vez que há seres vivos. Nas paisagens e naturezas-mortas, Cézanne podia não considerar o movimento. Era-lhe pois mais fácil tratar na tela apenas alguns elementos da realidade. Abordando a figura humana, a deformação torna-se mais perigosa, especialmente em relação às ideias da época. Contudo, na obra de Cézanne, não é bem de deformação que se trata, mas antes de selecção e estilização. Em suma, o artista modificou principalmente as dimensões e as proporções das diferentes partes do corpo. As Grandes Banhistas, do Museu de Filadélfia, são um exemplo extremo disso. Uma das ambições de Cézanne era fazer «Poussin diante da natureza», quer dizer, reencontrar a estrutura pictural do mestre antigo e associá-la com a paleta dos impressionistas. A composição das banhistas é geométrica. As árvores inclinam-se para a frente, formando com o grupo um triângulo equilátero. Por sua vez, os dois grupos de mulheres nuas formam dois triângulos no interior do precedente. Neste exemplo, a exactidão anatómica tem pouca importância em comparação com as exigências da composição. As figuras humanas surgem-nos como formas geométricas, tal como o tronco da árvore se torna cilíndrico n’ A Montanha Sainte-Victoire e a maçã toma o aspecto esférico na Natureza-Morta.

As pinturas de Cézanne protestam contra a falta de estrutura das obras impressionistas, mas também, e ainda mais, contra a insignificância dos pintores oficiais, como Bouguereau e muitos outros. Basta comparar as telas características de Cézanne com as de Bouguereau para avaliar a distância que separa a arte inovadora do grosseiro sentimentalismo estagnado das celebridades então consagradas. O Nascimento de Vénus, de Bouguereau, por exemplo, representa tipicamente o ideal artístico duma sociedade de novos ricos. As figuras esguias e moles estão por certo bem desenhadas, segundo as normas académicas. O traço de Ingres combina-se com leves influências de Botticelli e de Rafael. Está tudo feito com cuidado e minuciosamente arranjado, mas é impessoal e sem alma. Só uma classe de novos-ricos, sem sentido crítico nem formação artística, podia deleitar-se diante desta obra de efeitos superficiais. Nada disto acontece com as telas poderosas de Cézanne, cheias de invenções picturais. É que Cézanne, diferentemente de Bouguereau, tinha alguma coisa para dizer e exprimir.


história mundial da arte
everard m. upjohn, paul s. wingert e jane gaston mahler
trad. maria teresa tendeiro e rui mário gonçalves
vol. 6 – artes primitivas e arte moderna
bertrand editora
1966