17 agosto 2007

regresso a casa





regressar a casa
despir o véu da rua
subir os outros

degrau a degrau
deixá-los
no cimo dos dias

ali
imóveis, pintados
sem doerem

e ir à procura das palavras
das fiéis palavras
que nos esperam

que nos esperaram sempre
com um vinho forte na mão
uma droga

ou um sonho
ou apenas
um sonho

ou então um cavalo
um louco cavalo
uma máquina iluminada

de fugir
de ir
pelo gume mais aceso das montanhas

e voltar
pela maré serena
dos rios







gil t. sousa
poemas
2001







16 agosto 2007

samuel beckett / que faria







que faria sem este mundo sem rosto sem perguntas
onde ser dura apenas um instante onde cada instante
verte para o vazio o esquecimento de ter sido
sem esta onda onde no final
corpo e sombra juntos se devoram
que faria sem este silêncio sorvedouro dos murmúrios
que anelam frenéticos por socorro por amor
sem este céu que se ergue
sobre a poeira do seu lastro


que faria faria o que fiz ontem o que fiz hoje
espreitar do meu postigo para ver se não estou só
a dar voltas e voltas longe de toda a vida
num espaço fantoche
sem voz no meio das vozes
encerradas comigo

1948








samuel beckett
trad. manuel portela
“Relâmpago” nr.13
10/2003






14 agosto 2007

andre breton e paul éluard / o juízo original






Não leias. Olha as figuras brancas desenhadas pelos intervalos separando as palavras de várias linhas dos livros e inspira-te nelas.

Dá aos outros a tua mão a guardar.

Não te deites sobre as muralhas.

Retoma a armadura que abandonaste na idade da razão.

Põe a ordem no seu lugar, desarruma as pedras da estrada.

Se sangras e és homem, apaga a última palavra na ardósia.

Forma os teus olhos fechando-os.

Dá aos sonhos que esqueceste o valor daquilo que não conheces.

Conheci três lampistas, cinco guarda-barreiras mulheres, um guarda-barreira homem: e tu?

Não prepares as palavras que gritas.

Habita as casas abandonadas. Não foram habitadas senão por ti.

Faz um leito de afagos aos teus afagos.

Se eles batem à porta, escreve as tuas últimas vontades com a chave.

Rouba o sentido ao som, existem tambores encobertos mesmo nos vestidos claros.

Canta a grande piedade dos monstros. Evoca todas as mulheres de pé sobre o cavalo de Tróia.

Não bebas água.

Como a letra l e a letra m, pelo meio encontrarás a asa e a serpente.

Fala consoante a loucura que te seduziu.

Veste-te com cores cintilantes, não é hábito.

O que encontras só te pertence enquanto a tua mão está estendida.

Mente ao morder o arminho dos teus juízes.

Enforca-te, bravo Crillon, eles te tirarão da forca com o seu Isso depende.

Ata as pernas infiéis.

Deixa a madrugada aumentar a ferrugem dos teus sonhos.

Aprende a esperar, de pés para a frente. É assim que brevemente sairás, bem coberto.

Acende as perspectivas da fadiga.


Vende com que comer, compra com que morrer de fome.

Faz-lhes a surpresa de não confundir o futuro do verbo ter com o passado do verbo ser.

Sê o vidraceiro da pedra engastada no vidro novo.

A quem peça para ver o interior da tua mão, mostra os planetas não descobertos do céu.

Diz à luz, tu calcularás as dimensões encantadoras do insecto-folha.

Para descobrir a nudez daquela que amas, olha as suas mãos. O seu rosto baixou.

Separa o giz do carvão, as papoulas do sangue.

Dá-me o prazer de entrar e sair nas pontas dos pés.

Ponto e vírgula: vês, mesmo na pontuação, como eles são surpreendentes.

Deita-te, levanta-te e agora deita-te.

Até à nova ordem, até à nova ordem monástica, isto é até que as mulheres mais jovens e belas adoptem o decote em cruz: os dois ramos horizontais descobrindo os seios, o pé da cruz nua no baixo-ventre, ligeiramente avermelhado.

Daquilo que tem a cabeça sobre os ombros, abstêm-te.

Regula a tua marcha pela das tempestades.

Nunca mates uma ave da noite.

Olha a flor da campainha: ela não permite ouvir.

Falha a finalidade aparente, quando tiveres que atravessar o teu coração com a flecha.

Opera milagres para os negares.

Tem a idade deste velho corvo que diz: Vinte anos.

Tem cuidado com os carroceiros do bom gosto.

Desenha na poeira os jogos desinteressados do teu tédio.

Não escolhas o tempo de recomeçar.

Sustenta que a tua cabeça, contrariamente às castanhas-da-índia é em absoluto sem peso, uma vez que ainda não caiu.

Doura a pílula com a centelha sem isso negra pela bigorna.

Faz para ti sem franzir as sobrancelhas uma ideia possível das andorinhas.

Escreve o imperecível na areia.

Corrige os teus pais.

Não guardes em ti aquilo que não fira o bom senso.

Imagina que esta mulher está contida em três palavras e que esta colina é um abismo.

Lacra as verdadeiras cartas de amor que escreves com uma hóstia profanada.

Não deixes de dizer ao revólver: Muito lisonjeado mas parece-me tê-lo já encontrado em qualquer lado.

As borboletas do exterior não procuram mais do que alcançar as borboletas do interior; não substituas em ti, se vier a ser quebrado, um único espelho do revérbero.

Amaldiçoa o que é puro, a pureza está amaldiçoada em ti.

Observa a luz nos espelhos dos cegos.

Queres ter ao mesmo tempo o mais pequeno e o mais inquietante livro do mundo? Pede para relerem os selos das tuas cartas de amor e chora; não obstante tudo, tens razão para isso.

Nunca esperes por ti.

Contempla bem estas duas casas: numa estás morto, na outra estás morto.

Pensa em mim que te falo, põe-te no meu lugar para responderes.

Receia passar demasiadamente perto das tapeçarias quando estás só e ouças chamar por ti.

Torce o teu corpo com as tuas próprias mãos por cima dos outros corpos: aceita corajosamente este princípio de higiene.

Come apenas aves em folhas: a árvore animal pode sofrer de Outono.

A tua liberdade com a qual me fazes chorar a rir é a tua liberdade.

Faz fugir o nevoeiro diante de ti mesmo.

Considerando que a natureza mortal das coisas não te confere um poder excepcional de duração, pendura-te pela raiz.

Deixa ao travesseiro idiota o cuidado de te acordar.

Corta as árvores se quiseres, quebra também as pedras mas tem cuidado, tem cuidado com a luz lívida da utilidade.

Só te fitas com um olho, fecha o outro.

Não anules os raios vermelhos do Sol.

Segues pela terceira rua à direita, depois pela primeira à esquerda, chegas a uma praça, voltas junto do café que conheces, segues a primeira rua à esquerda, depois a terceira rua à direita, lanças a tua estátua por terra e ficas.

Sem saber o que irás fazer com ele, apanha o leque que esta mulher deixou cair.

Bate à porta, grita: Entre, e não entres.

Nada tens para fazer antes de morrer.










andre breton e paul éluarda imaculada concepçãotradução franco de sousa
estúdios cor
1972








13 agosto 2007

agosto






1) Esta noite pela primeira vez desde há pelo menos um ano, olho o céu estrelado. Acho-o pequeno. Sou eu que cresço ou é o Universo que se encolhe? Ou as duas coisas ao mesmo tempo? Que diferença das dolorosas contemplações siderais da minha adolescência. Reduziam-me no que o meu romantismo de então acreditava: as insondáveis e infinitas imensidades cósmicas. Estava inteiramente dominado pela melancolia porque todas as minhas emoções eram indefiníveis. Agora, pelo contrário, a emoção é tão definível que poderia moldá-la. Decidi neste instante encomendar um molde de gesso, representando, com o máximo de exactidão, a emoção provocada pela contemplação da abóbada celeste.


Estou reconhecido à física moderna por ter fortalecido, com as suas investigações, a agradável noção, sibarítica e antiromântica entre outras que «o espaço é finito». A minha emoção tem a forma perfeita de um «continuum» com quatro nádegas, a própria ternura da carne do Universo. Ao deitar-me, extenuado pelo dia de trabalho, faço o possível para conservar na cama a minha emoção, reconfortando-me cada vez mais e dizendo-me que, no final de contas, o Universo – mesmo expandível com toda a matéria que contém, por mais abundante que possa parecer – não é senão uma pura e simples questão de favas contadas. Estou tão contente por ver finalmente o Cosmos reduzido a estas proporções razoáveis que seria capaz de esfregar as mãos se esse gesto abominável não fosse tipicamente anti-daliano. Antes de adormecer, em vez de esfregar as mãos, beijá-las-ei com a mais pura alegria, repetindo que o Universo, como qualquer coisa material, tem o ar terrivelmente mesquinho e acanhado se o compararmos, por exemplo, com a amplidão de uma fronte pintada por Rafael.









salvador dali
diário de um génio
tradução de josé luís luna
ulisseia
1965







08 agosto 2007

a porta







Muito pouco
tem sido dito
acerca da porta, uma
face voltada para o caudal
da noite e a outra
para a flutuação e o brilho do lume.


O ar, apanhado
por esta capa
dentro do livro da sala,
é ocupado pelo folhear
de páginas de escuridão e fogo
enquanto o vento empurra as almofadas, ou sacode as chamas.


Não só
da tempestade
o quebra-mar, mas a súbita
fronteira das nossas confluências, aparências,
é também pródiga na oferta de espaço
tanto quanto a vista através de um dólmen.


Porque as portas
são caixilho e monumento
do nosso tempo gasto,
e muito pouco
tem sido dito
das nossas entradas e saídas por elas.










charles tomlinson
as escadas não têm degraus 3
trad gualter cunha
livros cotovia
1990










05 agosto 2007

elogios

V







… Pois estas águas calmas são como leite
e tudo o que se derrama nas macias solidões da manhã.


A ponte lavada, ao amanhecer, com uma água semelhante no sonho à mistura da aurora, faz com o céu uma bela analogia. E a Infância adorável do dia desce mesmo, pela trepadeira das tendas enroladas, à minha canção.


Infância, meu amor, não é senão isto?


Infância, meu amor… esta dupla ligação, do olho e da destreza de amar…
Está tão calmo e morno,
e por tanto tempo,
como é estranho estar aí, de mãos dadas com a facilidade do dia…


Infância, meu amor! é preciso abandoná-la… E já o disse, então? não quero mais estas roupas
a roçar aí, no incurável, nas verdes solidões da manhã… E já o disse então? é preciso servir
como uma velha corda… E este coração, este coração, ai! que se arrasta sobre as pontes, mais humilde e selvagem, e mais extenuado que um velho lambaz…













saint-john perse
elogios
trad. jorge melícias
quasi
2002





01 agosto 2007

mão






e a minha mão
desceu o teu rosto
num movimento
de coisa que parte

e tu disseste:
porque é que as mãos
dos que amámos
nos acenam vazias?

mas não
na minha mão
havia uma lágrima enorme
e azul
que tu
já não sabias ver








gil t. sousa
poemas
2001










27 julho 2007

o carregador de pianos - I








carrego o piano para
onde o maestro morre.
persigo-o na cinza da
música.
o jazz invade o lume
ébrio, o êxtase das frases.
invade de seiva
a árvore dos pentagramas.
o piano acompanha
os acólitos do álcool.
a árvore dos pentagramas
vive no rosto dos acólitos do álcool
e da seiva.
a seiva é também
o caudal de um rio
de antigos escravos.
foz de um rio de escravos.
os dedos estão libertos
agora que o cérebro
inventou os dedos da música.
o jazz invade o lume
em cascatas de swing.
carrego o piano para
onde o maestro morre.
mas morre livre
entre vozes que cantam e estrelas











joão candeias
poezz
jazz na poesia em língua portuguesa
almedina
2004


24 julho 2007

o artista e a vida moderna




NOVA IORQUE




O mais colossal espectáculo do mundo. Nem o cinema, nem a fotografia, nem a reportagem, puderam dar conta deste acontecimento surpreendente que é Nova Iorque à noite, vista de um quadragésimo andar, Esta cidade pôde resistir a todas as vulgarizações, a todas as curiosidades dos homens que experimentaram descrevê-la, copiá-la. Conserva a frescura, o inesperado, a surpresa, para o viajante que a olha pela primeira vez.
O navio, em andamento lento, desloca devagar as perspectivas; procura-se a estátua da Liberdade, o presente da França; é uma pequena estátua modesta, esquecida no meio do porto, diante deste novo continente audacioso e vertical. Mas não se vê, por muito que levante o braço o mais alto possível. Inutilmente, não ilumina mais do que uma vela, coisas enormes que mexem, formas que, indiferentes e majestosas, a cobrem de sombra...
Seis horas mais tarde. O navio avança lentamente. Uma massa direita, alta, elegante como uma igreja, aparece ao longe, envolvida na bruma, azul e rosa, esfumada como um pastel, fechada numa ordem gótica, projectada para o céu como um desafio. Que nova religião é esta?
É Wall Street, que domina da sua altura este mundo novo. Depois de seis dias de travessia na água fluida e imperceptível, móvel, ágil, chega-se diante desta montanha, abrupta, obra de homens, que lentamente se define, se torna mais nítida, se precisa com os seus ângulos cortantes, as suas janelas alinhadas, a sua cor metálica. Levanta-se violentamente acima do nível do mar. O barco roda... Wall Street desapareceu lentamente, silhueta reluzente como uma armadura.
É a apoteose da arquitectura vertical; uma combinação audaciosa de arquitectos e de banqueiros sem escrúpulos, empurrados pela necessidade. Uma elegância desconhecida, involuntária, desprende-se desta abstracção geométrica. Apertados entre dois ângulos de metal, são cifras, números, que sobem, rígidos, para o céu, domados pela perspectiva deformante...
Um mundo novo!...
Brooklyn!, os cais maciços. jogos de sombra e de luz, as pontes, com as suas projecções de linhas verticais, horizontais, oblíquas… O nascimento de Nova Iorque. na luz que, pouco a pouco, aumenta, à medida que se avança na cidade... Nova Iorque, milhões de janelas luminosas... Quantas janelas? Quando aparecerá um alemão para fazer esta original estatística?
Espantoso país, onde as casas são mais altas do que as igrejas, onde os limpadores de janelas são milionários, onde se organizam desafios de futebol entre os prisioneiros e a Polícia!
A beleza de Nova Iorque à noite é feita de inumeráveis pontos luminosos e do jogo infinito da publicidade móvel.
O rigor ria arquitectura é quebrado pela fantasia sem limites das luzes coloridas. O grande espectáculo começa mal nos levantamos, e esta visão radiosa tem a particularidade de nenhum artista, de nenhum encenador ter contribuído para ela. Esta música comovente é tocada por casas em que habitam pessoas como vós eu. Estes milhares de fogos, que nos espantam, iluminam pessoas que trabalham modestamente na sua tarefa ingrata e quotidiana. Estas arquitecturas ciclópicas são estritamente úteis, racionais; o crescimento vertical é de ordem económica.
Elevou-se o número de andares, porque o terreno é pouco e caro, porque não é possível construir em extensão; construiu-se obrigatoriamente em altura. Não há nenhum sentimento romântico em tudo isto, a sombra de um orgulho deslocado. Toda esta orquestração surpreendente é estritamente útil. O mais belo espectáculo in the world não é criação de um artista.
Nova Iorque tem uma beleza natural, como os elementos da natureza, como as árvores, as montanhas, as flores. Está aí a sua força e a sua variedade. Pretender tirar partido artístico de semelhante tema é uma loucura. Admira-se modestamente, e é tudo.
No interior desta vida múltipla e organizada corre uma personagem indispensável a esta vida ilimitada: o telefone, actor principal. Faz parte da família. É o brinquedo da criança americana; pega-lhe como numa boneca, e essa boneca toca, fala, ri. É uma corda ininterrupta que liga, como aos alpinistas, toda esta gente rápida e apressada.
Se um dia morrer subitamente, não haverá ninguém no seu enterro, porque ninguém saberá o dia e a hora do funeral.
Nova Iorque e o telefone vieram ao mundo no mesmo dia, no mesmo barco, para conquistar o mundo.
Em Nova Iorque a vida mecânica está no apogeu. Tocou o limite, ultrapassou o fim… crise!
A vida americana é uma sucessão de aventuras, conduzidas com optimismo até ao fim.
Arriscou-se tudo, experimentou-se tudo; e há realizações definitivas. Naturalmente, o volume da arquitectura deveria tentá-los. Antes de mais, tudo quanto se vê. A arquitectura e a luz são os dois pólos da sua expressão plástica; no barroco, atingem o monstruoso.
Nova Iorque e Atlantic City têm cinemas que é difícil descrever a quem não os viu. Um amontoamento inverosímil de todos os estilos europeus e asiáticos; um caos colossal, para ferir a imaginação, fazer publicidade, fazer «mais que em frente»; a Enormidade no «mais rico do que tu».
Escadas inúteis, empregados em número incalculável, espantar, atrair e ganhar dinheiro. É o fim de toda esta vertigem que atinge a repugnância e a beleza.
Gosto tanto desta inundação de espectáculos, de toda esta força incontida, desta virulência, mesmo no erro... É muito novo. Engolir um sabre a sorrir, cortar um dedo, porque está sujo...
Até ao fim, é sempre a América. Naturalmente, se me detenho a reflectir, se fecho os olhos, entrevejo os dramas que pairam à roda deste dinamismo exagerado, mas eu vim para ver — e continuo.
As cartas lançadas do quinquagésimo andar pelo tubo pneumático, aquecem com o atrito e chegam a arder ao rés-do-chão. É necessário gelar os tubos — mas demasiado frios, as cartas chegarão no meio de neve.
Tudo fuma em Nova Iorque, «até as ruas». Ouvi raparigas dizer que fumar durante as refeições distrai e impede de engordar, uma inesperada relação entre o cigarro e a elegância.
O dia, em Nova Iorque, é muito severo; falta-lhe cor e, se o tempo está enevoado, Nova Iorque é uma cidade de chumbo.
Porque não se hão-de colorir as casas? Porquê esta lacuna, na terra de todas as invenções?
Fifth Avenue, vermelha — Madison, azul - Park Avenue, amarela. Porque não? E a falta de verdura? Nova Iorque não tem árvores. A medicina decretou há muito que o verde, em particular, é uma cor indispensável à vida; deve viver-se no meio da cor: é necessário como a água e o fogo.
Poder-se-ia obrigar os vendedores de modas a lançar em série vestidos verdes, fatos verdes...
Periodicamente, um ditador da cor decretaria as cores mensais ou trimestrais; o trimestre azul, a quinzena rosa! Para aqueles que não podem ir ao campo, passear-se-iam árvores pelas ruas. Paisagens móveis com flores tropicais, passeadas lentamente por cavalos de penacho.


Duas da manhã, ao acaso das ruas… bairro popular... Avenue «A» ou «B»... Uma imensa garagem de camiões, todos parecidos, em filas de seis, reluzentes como para um desfile, como elefantes, uma luz fixa. Nada se move: entro e olho.., um ridículo barulho de guizos... ao fundo, à esquerda, descubro um cavalo arreado. A única coisa viva, neste silêncio de ferro... O prazer de lhe tocar, de o ver mexer, de o sentir quente. O animal ganhava um tal valor, pelo contraste, que eu teria podido registar todos os barulhos que pode fazer um cavalo em repouso; barulhos minúsculos, sempre os mesmos; ouvia-lhe a respiração… movimentos delicados… as orelhas... os olhos pretos... uma estrela branca na cabeça... o casco polido e o joelho que, de tempos a tempos, se move lentamente.
O último cavalo de carga, à espera de reforma. Depois, aos domingos, será exposto numa vitrina e as crianças ficarão espantadas por Napoleão ter conquistado o mundo montado nele.
Em casa do arquitecto Corbett, juntamente com Kiessler. Ë um dos maiores construtores do edifício americano. Um homenzarrão simples... conseguir meter 20.000 pessoas num edifício, diz-me ele, eis o meu trabalho actual. Não julgue que se trata apenas de uma questão de número de andares! Não, é mais complicado, é uma questão de elevador, O problema é o de manobrar verticalmente este exército! Fazê-lo descer todos os dias para as quatro salas de jantar que se encontram a vinte metros debaixo da terra... Dar vazão a tudo isto, nas horas requeridas.
Depois, a saída de toda esta gente, sem engarrafar o trânsito... Seis meses de trabalho. Dez engenheiros especializados, e a solução ainda não foi encontrada.
Problema específico dos americanos, imbatíveis na racionalização, na série, nos números. Partir do total, para dar conforto à unidade... Novo mundo!
Dão a impressão de nada os deter; vida sucessiva e rápida. Destruí Nova Iorque, contruí-la-ão de outro modo. Aliás, que alvos admiráveis estas arquitecturas. Demolir Nova Iorque! Não é possível que o marechal Pétain não tenha tido, por um segundo, por meio segundo, a tentação. Que magnífico trabalho para um artilheiro! Militarmente não seria problema, pois não, meu general? Estive em Verdun sob as suas ordens, é suficiente, mas por desporto, por amor do ofício! Os americanos seriam os primeiros a aplaudir e, então, que veríamos nós? Pouco tempo depois, uma nova cidade estaria construída. Adivinhai como: aposto um contra mil: de vidro, de vidro!
Esta é a sua última invenção. Alguns engenheiros encontraram meio de fabricar vidro com leite coalhado, mais barato do que o betão. Imaginai: todas as vacas americanas a trabalhar na reconstrução da capital!
Nova Iorque transparente, translúcida, os andares azuis, vermelhos, amarelos! Uma fantasmagoria inédita, a luz desencadeada por Edison trespassando tudo isto e pulverizando as arquitecturas.
Os bairros populares são belos a qualquer hora. Há uma tal crueza, uma tal variedade de matérias-primas! Bairros russos, judeus, italianos, chineses. A Third Avenue, ao sábado à noite e ao domingo, é Marselha!
Chapéus cor-de-rosa para os negros. Vitrinas onde se encontra uma bicicleta pendurada por cima duma dúzia de ovos, alinhados sobre areia verde...
Frangos depenados, suspensos, em contraluz, sobre fundo negro... dança macabra!


Uma vida decorativa intensa valoriza infinitamente o objecto à venda.
O ar dos desempregados: nada os distingue, se não que andam mais devagar do que os outros. Apinhados nas praças, uns contra os outros, não conversam. Estas multidões são silenciosas: o indivíduo permanece isolado, não comunica; lê ou dorme!

Wall Street de dia: milhentas vezes descrita, mas ide lá ver!
Wall Street à noite, Wall Street às duas da manhã. Sob o luar seco e brilhante. O silêncio é absoluto. Ninguém, nestas ruas estreitas e estranguladas pela projecção violenta de linhas cortantes e perspectivas multiplicadas ao infinito, em direcção ao céu. Que espectáculo! Onde estamos? Um sentimento de solidão oprime-nos, como uma imensa necrópole. Os passos ressoam no pavimento. Nada se move. No meio desta floresta de granito, um pequeno cemitério de pequeninos túmulos, humildes, modestos: é a morte que se faz pequena, ao pé da exuberância da vida que a rodeia. O terreno deste pequeno cemitério é, certamente, o mais caro do mundo. Mas os businesssmen não lhe tocaram. Permanece como uma pausa, uma paragem na corrente vital… Solucionar a morte, último problema!
Wall Street dorme. Continuemos o passeio… Oiço um fraco murmúrio regular. Wa]l Street ressona? Não, é uma perfuradora que, harmoniosamente, começa o seu trabalho, como um trabalho de térmita. Nenhum barulho! É a única parte de Nova Iorque que verdadeiramente dorme. É preciso digerir os números do dia, as somas, as multiplicações, a álgebra financeira e abstracta destes milhares de indivíduos virados para o grande problema do ouro. Wall Street dorme profundamente. Deixemo-la dormir. A trinta metros debaixo da terra, na rocha, as caves de aço do Irving Bank. No centro, os cofres-fortes de fechaduras magníficas e brilhantes, complexas como a própria vida, um posto de polícia onde alguns homens velam. Microfones ultra-sensíveis trazem-lhes os menores ruídos da rua, e os barulhos que se notam sob as abóbadas de aço do banco moderno. Uma mosca a voar… Ouvem voar a mosca... Um velho negro deambula pelas ruas, canta baixinho uma velha melodia do Sul. A canção sobe, perde-se nas arquitecturas, mas desce também aos microfones que, debaixo da terra, registam discretamente a velha canção do Sul.
Wall Street não dorme... Wall Street está morta. Volto a passar ao pé do pequeno cemitério. Não são, agora, os maiores bancos do mundo! Não, são os mais orgulhosos túmulos de família dos grandes milionários. Aí, repousam os Morgan, os Rockfeller, os Carnegie. Como novos faraós, edificaram as suas pirâmides. Serão enterrados de pé como semideuses; e como estes gigantes modernos se tornam legendários e imortais, abriram-lhes mil janelas para que o povo saiba que talvez não estejam mortos, que respiram, que voltarão ainda uma vez para espantar o mundo com novas concepções ciclópicas.
Wall Street é a imagem da América audaciosa, deste povo que está sempre a agir e que nunca olha para trás de si.
Nova Iorque... Moscovo...
Os dois pólos da actividade moderna... A vida actual concentra-se aí...
Somente aí se ousa a experiência perigosa de que os outros aproveitarão.
Nova Iorque .. Moscovo!
Moscovo... Nova Iorque!
Paris, posto de observação!
Georges Duhamel veio à América. Dentro da mala, trouxe as suas concepções de francês médio e as pantufas. Talvez não tenha podido servir-se delas, das pantufas, o que o deixou, manifestamente, de mau humor. Por aqui, ainda não se usa disso. Pelo que as americanas são rainhas e têm pés bonitos. Ë preciso não ficar a querer mal à locomotiva que, ao passar a cem à hora, nos faz voar o chapéu.












fernand léger
funções da pintura
trad. tomás de figueiredo
livraria bertrand
1965

22 julho 2007

ilhas na corrente






(…)
Lograra substituir quase tudo excepto os filhos, pelo trabalho e pela vida de actividade normal, regular, que edificara na ilha. Estava convencido de que conseguira com essa vida algo de perdurável que o fixaria. Agora, quando se sentia solitário e tinha saudades de Paris, lembrava-se de Paris em vez de ir até lá. Fazia o mesmo com toda a Europa, grande parte da Ásia e da África.
Lembrou do que Renoir dissera ao contarem-lhe que Gauguin fora para Taiti pintar. «Porque há-de ele ir gastar tanto dinheiro para ir pintar para tão longe quando se pinta tão bem aqui em Batignolles?» Em francês soava melhor: «quand on peint si bien aux Batignoiles», e Thomas Hudson concebia a ilha como o seu quartier no qual se instalara, travando conhecimento com os vizinhos e trabalhando tão assiduamente como trabalhara em Paris quando o jovem Tom era ainda bebé.
Algumas vezes deixava a ilha para ir pescar ao largo de Cuba ou visitar as montanhas no Outono. Mas arrendara o rancho que tinha comprado em Montana por, ali, a melhor época ser o Verão e o Outono, e agora era sempre no Outono que os rapazes tinham de voltar para a escola.
Ocasionalmente, via-se obrigado a ir a Nova Iorque para se avistar com o seu agente. No entanto, era mais frequente agora ser o seu agente a visitá-lo e a levar as telas para o norte consigo.
Tinha uma reputação bem firmada como pintor, e era respeitado tanto na Europa como no seu próprio país, Contratos de exploração de petróleo em terrenos que o avô possuíra garantiam-lhe proventos regulares. Esses terrenos tinham sido terras de pastagem, e ao serem vendidos retivera os direitos ao subsolo. Cerca de metade do rendimento era absorvido pela pensão que pagava às suas ex-mulheres, e o resto dava-lhe a segurança necessária para pintar conforme lhe apetecia sem quaisquer pressões de ordem comercial. Permitia-lhe também viver onde lhe dava na fantasia e viajar quando se sentia inclinado a isso.
Tivera êxito quase a todos os respeitos excepto na sua vida de casado, embora, na realidade o êxito nunca o houvesse preocupado muito. O que lhe interessava era a pintura e os filhos, e continuava apaixonado pela primeira mulher que despertara o seu amor. Amara muitas mulheres desde então e, por vezes, lá vinha uma ou outra ficar na ilha. Precisava de ver mulheres ao pé de si e acolhia-as bem durante algum tempo. Gostava de as ler ali, às vezes durante longo período. Mas, no final, ficava sempre satisfeito quando se iam embora, mesmo se gostava delas a valer, Disciplinara-se de forma a deixar-se de discussões com mulheres, e aprendera a arte de não se casar, Estas duas coisas haviam sido quase de tão difícil aprendizagem como instalar-se e pintar a um ritmo regular e bem ordenado. Mas aprendera a fazê-las, e a sua esperança era que essa aprendizagem tivesse sido permanente. Havia muito que sabia pintar, e estava convencido de que ia aprendendo sempre mais a cada ano que passava. Mas fora difícil aprender a assentar e a pintar disciplinadamente porque tinha havido na sua vida uma fase em que ele próprio não fora disciplinado. Nunca tinha sido verdadeiramente irresponsável, mas indisciplinado, egoísta e desapiedado, isso sim. Sabia-o agora, não por muitas mulheres lho terem dito, mas por o haver descoberto finalmente à sua custa. Resolvera então só ser egoísta na sua actividade de pintor, só ser desapiedado no seu trabalho, e disciplinar-se e aceitar a disciplina.
(…)




ernest hemingway
ilhas na corrente
trad. jorge rosa
livros do Brasil
19..




19 julho 2007

bénédicte houart / vestem-se as dores













vestem-se as dores
nos bastidores da minha memória
esta é a puta
que estendeu a mão
após descruzar as pernas
esta é a ingénua
não estendeu a mão
após descruzar as pernas
esta é a nostálgica
traz a mão estendida
nunca descruzou as pernas
despem-se as dores nos
bastidores da minha memória


*


é uma casa de passagem onde
se vê o mar quando
a puta veste o fato de marinheiro e
põe a cassete da tempestade


*


mulher alguma é melhor do que
mulher nenhuma dizia o meu avô que morreu
esquecido num guarda-fatos
mulher alguma dispunha as bolas de naftalina e foi assim que
o meu avô foi primeiro lembrado pelas traças
tudo isto aconteceu há muito tempo mas
a alma não esqueceu
o nariz reconheceu

*

a puta que me pariu era a mais linda da rua formosa
eu saí a ela deve ser por isso que mal sorrio os homens perguntam
quanto é
e eu não é nada a puta que me pariu pôs-me a estudar e eu agora
só sorrio e é tudo de graça
e a seguir mostro-lhes o rabo e a seguir as pernas e ponho-me a andar
deixo-os de corpo a abarrotar
de tralha


*

um homem geme porque
o corpo da mulher que recusa
se enrosca e
a recusa é doce e um homem geme
enquanto a mulher se ausenta
estica o corpo até às nuvens
enfia os dedos no ânus das nuvens e
está frio na ponta dos seus dedos então
a mulher cose as nuvens umas às outras
monta um carrossel para se aquecer
e disse tomai os meus vestidos enfiai-os que não os quero mais
e empinou o corpo
finalmente a mulher remata o homem enrosca-se então


*

deus nos livre do mundo
soltou o moribundo
e livrou logo


*

mãe
obesa
esfrega o corpo nas coisas
derrama gordura
e as coisas brilham
Ó mãe mãe ó mãe
deixaste as coisas brilhando
para que as reconhecêssemos e agora
escorregamos nelas todas as vezes


*

hoje vou com aquele que me levar
e se for uma mulher
vou com as suas mãos que remendam
e não substituem
e se for um homem
vou com as suas mãos que remendam
e não substituem
e se ninguém houver
vou com ninguém que me leva sempre
para onde não quero
e vou com as suas mãos que substituem não remendam
é por isso que à noite
espreito para a janela dos comboios
e cumprimento-me timidamente


*


e é a sua mulher que o vai lavar quando os seus braços e as suas pernas o deixarem ficar mal vai encolhendo vai encolhendo o seu espaço já não estica os braços bocejar provoca-lhe uma dor aguda no peito as curvas do seu corpo desvaneceram-se os cantos crescem nos seus olhos para quê tantos suspiros era isto afinal e é ela que lhe vai levar a colher à boca e há-de recordar o aviãozinho que a sua mãe fazia sair da cartola os coelhos de peluche que apertava contra o peito e as coelhinhas que virilmente caçou ou as centopeias ou as centopeias tantas pernas esmagadas debaixo da sua barriga que incha incha cresce cresce a sua papada tu é que mandas é como quiseres enquanto as enrabava tic tic tic minha coelhinha o teu rabo é tão doce como o algodão cor-de-rosa que colava aos dentes quando eles ainda não tinham mastigado todas as pedras do caminho e agora gagueje meu caro senhor gaguejemos em coro já está e depois tinha sido tão rápido que chorava por mais e há-de desejar tudo recomeçar o sangue nas veias fervia e era tão quente que todo o ar evaporava em seu redor e as janelas embaciadas mais tarde recorda-se não havia mais ninguém e o escuro ainda lhe metia medo e havia cada vez mais coisas que lhe metiam medo e todas essas coisas eram escuras mãe mãe mas mesmo a mãe tinha escurecido debatia-se agora com fantasmas de terra os mesmos fantasmas que em vida para quando para quando o sossego mas agora eram outras as vozes que gritavam e essas vozes eram impacientes como dantes a sua e a sua a sua balbuciava agora doces imprecações e nem as ouvia e os seus ouvidos babavam-se decentemente ó velho tens uma meia de cada cor ó velho perdeste os suspensórios ó velho tens terra até ao pescoço e o teu pescoço já era uma maçã que até de apodrecer se esqueceu

*

acho que as crianças devem ser mantidas na ignorância
de certas coisas da vida
pois não sabendo nada sabem nada e é
muito embora muito pouco pareça muitas coisas aparecem
nós já não sabemos como nada pesa tanto que
só um pequenino pode ser derrubado
e do chão vir-se com as estrelas é quando chovem
as gotas escorrem-lhe dos dedos e são as lágrimas benditas
seja maldita a nossa incompleta desolação


*

creio em terra toda poderosa
jazo desde já alegremente aqui


*

estou a apodrecer
diz o rapaz e
cheira a noz moscada e
cheira a noz moscada
debaixo dos meus braços
há muitos odores para o apodrecimento


*


calma rapaz
se tens a vida toda
se tens a vida toda
que te enterra
se tens a morte toda para trocar


*

no dia de todos os mortos quero um homem
bem vivo na minha cama
pois os mortos são muitos e
dos vivos basta um
se não chegar
dá deus outro
parecido com os demais onde é preciso
cada vivo desalinhar













bénédicte houartinimigo rumor
número 15
2º semestre 2003


16 julho 2007

harold pinter / poema






Parti uma manhã com a minha única mulher,
Para longe das dunas em direcção à feira de Verão,
Ia comprar uma vidraça e um xaile branco,
Para lá dos penedos e do monte banhado pelo sol.
Mas um desconhecido disse-nos que a feira já tinha terminado,
E eu dei meia volta com a minha única mulher.

E eu dei meia volta e conduzi-a a casa.
Ela seguiu-me de perto para longe do Verão,
Para lá dos penedos e do monte banhado pela lua,
Através das dunas ao cair da noite,
E chegou à nossa casa sem vidraça,
E o comprido ano espreguiçou-se vindo de leste.

A minha única mulher sentou-se ao lado de uma vela.
O Inverno lamentava-se à porta.
Uma viúva trouxe-nos um longo xaile preto.
Eu coloquei-o nos ombros da minha fiel mulher.
A viúva foi-se embora através das dunas,
Afastou-se da nossa casa sem vidraça.

O ano transformou-se em alvorada prematura.
Parti uma manhã com a minha única mulher,
Para longe das dunas em direcção à feira de Verão,
Para vender uma vela e um xaile preto.
Separámo-nos no monte banhado pelo sol,
Ela em silêncio, eu para o extremo oeste.

1953










harold pinter
várias vozes
trad. pedro marques
quasi
2006







12 julho 2007

fio de lume







ias num fio de lume

quase água
quase o mar a noite

quase a corrente

os lábios
os teus lábios quase ilha

dentro dela quase o mundo
as linhas

todas as linhas o mapa
quase o segredo
que pintei no coração

um fio de névoa te levava

aranhas doces os teus olhos
asas que me tecias

e gestos quase um sismo
pedras mudas a minha voz
e dançava
quase dançava







gil t. sousa
poemas
2001




poema









antónio maria lisboa
surrealismo abjeccionismo
antologia selecionada por
mário cesariny de Vasconcelos
edições salamandra
1992






11 julho 2007

a erc josamu jove







Nós os intocáveis, os imundos, recusamos
nossa vida à condição comum.
Porque é intemporal a rosa que nos leva
entre o dia e a noite.
Nós os derrotados, impuros, oferecemos
nossa miséria a um significado
oculto e diferente –

asa branca na varanda
nome escrito nos telhados
estrada atravessando a terra de ninguém


Nós os últimos dos últimos coroamos
impérios e jardins










manuel de castro

surrealismo abjeccionismo
antologia selecionada por
mário cesariny de Vasconcelos
edições salamandra
1992









10 julho 2007

32





desviei para leste do diabo
onde existe uma terra,

colinas secas que prolongam
o dorso de um cabo maldito,

encerrado de imensas histórias de fim
e um gigantesco mar de água.

nos dias de menos fogo,
os pescadores juntam-se,

à volta de um balde sem fundo,
e tentam pescar a terra.

o sol já não existe para este lado,
e quando da onda há outra força,

pelo lado direito existe, igualmente,
um começo de noite, um diferente silêncio,

são todos os animais,
dos que se deitam tão antes dos homens.

excepto os mais inquietos,

os que ainda noite dentro
se encerram uns nos outros

e ficam horas deslocadas
a fornicar a cor que o céu nesta terra tem,
que é a cor de uma suspeita de trabalhos.
quando vim para aqui seria para evitar o caos,
bem longe de tempo ser tempo,
e fabricando alguma paixão e
passar menos quente nas almas dos outros.












sofia crespo
anunciada embarcação na histeria
& etc.
1997.







09 julho 2007

reflexões / teoria das artes literárias de Home





Teoria das artes literárias de Home



Foi talvez na análise das artes literárias, a que uma boa metade dos seus volumosos Elements of criticism se consagra, que Home melhor mereceu o nome de Aristóteles inglês. A preocupação concreta, o exemplo, as citações; o método comparativo que se exerce entre estas diversas citações; o sentido e o gosto da classificação; a enumeração e a análise dos sons, das partes dum discurso, da sintaxe, das regras de métrica e de prosa harmónica, dos tropos e das figuras, constituem um conjunto cuja riqueza concreta é digna dos trabalhos mais minuciosos duma ciência moderna das artes, e não tem comparação em toda a estética anterior, a não ser com certos tratados especiais da arte de escrever ou melhor ainda, o modelo de todos desde a Antiguidade, a Retórica de Aristóteles. Mas esta nova teoria da arte literária é precedida duma estética geral da expressão e dos seus meios, que a enriquece e a enquadra, dando-lhe o carácter de sistema.


1. A expressão artística

Ë onde Shaftesbury deixou o problema das artes que, com um outro espírito, Home o retoma. Home verifica que, de todas as belas-artes, só a pintura e a escultura são, por natureza, imitativas. Pelo contrário, é das artes não imitativas que Home trata. Um campo ornamentado não é cópia ou imitação da natureza, mas a própria natureza embelezada. A arquitectura é produtora de originais e não de cópias da natureza. O som e o movimento podem, numa certa medida, ser imitados pela música, mas a música é sobretudo, como a arquitectura, produtora de originais. A linguagem também não é uma cópia da natureza: e é significativo que um capítulo sobre a arquitectura e a arte dos jardins se siga ao seu sistema da arte literária. Sem dúvida os sons podem, à maneira das onomatopeias, assemelhar-se pela suavidade ou rudeza às ideias que excitam; do mesmo modo, a rapidez e a lentidão de pronunciação têm alguma semelhança com o movimento que a palavra significa. Não é menos verdade que o poder imitativo das palavras não vai longe. Ë muito verdade também que a plenitude, a suavidade, a rudeza do som das palavras são por si sós música e compõem na palavra uma beleza sensual para o ouvido: é o seu segundo efeito, independente da significação do poder imitativo.

Mas seria erro não descobrir na palavra uma beleza própria da linguagem: essa beleza, nascendo do seu poder de exprimir os pensamentos, está apta a ser confundida com a própria beleza do pensamento: a beleza do pensamento, transferida para a expressão, fá-la aparecer mais bela. Contudo, essa beleza deve ser distinguida da beleza do pensamento. É, na realidade, distinta. As causas da beleza original da linguagem, considerada como significativa, serão expostas aqui. Essa beleza é a beleza de meios apropriados a um fim, o de comunicar o pensamento, e é evidente que de várias expressões, todas acompanhando o mesmo pensamento, a mais bela, no sentido em que a palavra aqui é tornada, é aquela que, de modo mais perfeito, responde ao seu fim.

2. O jogo das representações e das paixões: suas leis

Observemos as emoções e as paixões. Podem ser aprazíveis e penosas, agradáveis e desagradáveis. Mas não se distinguiram cuidadosamente uma da outra: agradável e aprazível são considerados sinónimos. Ora, isso é um grave erro no domínio da ética. Há paixões penosas que são agradáveis e paixões agradáveis que são penosas. Daí a existência de sentimentos mistos, como o heroísmo e o sublime, o trágico e o risível. A piedade é sempre penosa e todavia é sempre agradável. A vaidade, pelo contrário, é sempre agradável e desagradável. A ciência da crítica deve, pois, aprofundar mais essas distinções que o simples conhecimento vulgar. É preciso ter ainda em conta o jogo dos cambiantes, do crescimento e do declínio das paixões, da sua interrupted existence, Um autor prevenido sabe este jogo da intermitência das paixões, da propensão de certos temperamentos; a perfeição do primeiro choque nas emoções de subitanidade, como o medo, a cólera; o ritmo lento ou vivo de crescimento ou decrescimento das paixões; o que nelas há de excessivo; a queda das paixões quando tocam o seu termo; o efeito também do costume e do hábito; o efeito inverso da novidade.

Tem em conta ainda não só as leis da evolução das paixões, mas o facto de emoções e paixões poderem ser coexistentes. Certas emoções podem suscitar vários sons simultâneos. Há emoções combinadas que dão apenas um e não dois ou vários sons no seu conjunto. As emoções perfeitamente semelhantes combinam-se e unem-se, reforçam-se; as emoções opostas sucedem-se e alternam. Se as emoções são desiguais em força, a mais forte, após um conflito, extinguirá a mais fraca. Ora, todas as observações precedentes têm a maior utilidade nas belas artes. Muitas regras práticas derivam daí: a associação das emoções do som e das palavras na música vocal, a sua congruência, as suas dissociações; a tragédia, a ópera, etc.

A coloração e a influência da paixão afectam as nossas percepções, as nossas opiniões, as nossas crenças. A paixão faz-nos acreditar nas coisas diferentemente do que são; todos os erros ou as faltas trágicas vêm daí.

As emoções, enfim, assemelham-se às suas causas. Uma queda de água sobre os rochedos cria no espírito uma agitação confusa e tumultuosa, extremamente parecida com a sua causa; um movimento uniforme e lento cria um sentimento calmo e gracioso, etc. Daí a empatia ou a «simpatia» que, segundo Home, muitas vezes se lhe assemelha: A contrained posture, useasy to the man himself, is desagreable to the spectator.


3. A linguagem das paixões

Significa isto que as paixões têm a sua linguagem. A arte é a linguagem das emoções. Daí as suas espécies, consoante o que traduz - beleza, grandeza e sublimidade, movimento e força, cómico, dignidade e graça, ridículo, espírito — e acima de tudo isto a ordem e a harmonia que as equilibram - as semelhanças e as disparidades, a uniformidade e variedade, a congruidade e a propriedade.

Significa sobretudo que as emoções e as paixões se exprimem. Têm os seus sinais exteriores. A alma e o corpo estão tão intimamente ligados que «cada agitação na primeira produz um visível efeito no segundo», Home prossegue: «A esperança, o temor, a alegria, o desgosto mostram-se exteriormente; o carácter dum homem pode ler-se no seu rosto; e a beleza, que tão profunda impressão faz, é bem conhecida como resultado não tanto de feições regulares e duma bela carnação como duma natureza amável, do bom senso, da doçura ou duma outra qualidade de espírito, expressa pela atitude.»

Ora os sinais exteriores da paixão são de duas espécies: voluntários e involuntários; entre os sinais voluntários, alguns são arbitrários, outros naturais. As palavras são sinais voluntários arbitrários. A outra espécie de movimentos voluntários compreende certas atitudes, gestos, etc. Os sinais involuntários ou são temporários (e desvanecem-se com a emoção que os provoca) ou tornam-se sinais permanentes duma paixão formada violenta e gradualmente. Os sinais naturais das emoções, quase os mesmos em todos os homens, formam uma linguagem universal.

Ora nenhum dos sinais das emoções deixa o espectador indiferente: produzem diversas emoções. Cada paixão ou classe de paixão tem os seus sinais particulares. Por isso compreendemos de maneira inata os sinais exteriores que se referem a uma determinada paixão: «A paixão, estritamente falando, não é objecto do sentido externo, mas os seus sinais exteriores são-no.» Por isso ajuizamos rápida e seguramente o carácter, conforme a aparência exterior.

Os sentimentos não são menos reveladores. Cada pensamento gerado pela paixão é chamado sentimento. Quer isto dizer que a paixão ou a emoção não deve separar-se dele. É infringir a lei de conveniência da linguagem com a paixão fazer com que a paixão se retire dela. Home dá como exemplo os Franceses em que cada personagem discorre como se fosse um frio e desligado espectador dos seus próprios sentimentos.

Finalmente, a paixão é eloquente. Entre os pormenores em que se exprime a parte sociável da nossa natureza, observa-se uma propensão para comunicar as nossas opiniões, as nossas emoções e todas as coisas que nos afectam. Ora é preciso que a linguagem, isto é, o tom e a paixão concordem: é preciso que haja congruência de tom. Um deve assemelhar-se a outro e convir-lhe como seu trajo. Os sentimentos são ajustados aos caracteres e a expressão aos sentimentos. Daí os cortes bruscos da paixão, o desenrolar assintáctico dos solilóquios; daí o acordo das próprias imagens com a paixão ou a emoção.


4. Valores da linguagem

Quer isto dizer que há diferentes valores e belezas diversas na dicção duma só coisa, e que as palavras e a arte literária exprimem as paixões e as emoções que estão encarregadas de reproduzir (não de imitar) mais ou menos bem. Existe pois um estudo cerrado e avançado de todos os recursos do discurso, da fonética, do vocabulário, da sintaxe, dos tropos e das figuras, da unidade geral da obra. Ser bem sucedido é um perpétuo problema de expressão e a arte literária é uma arte de bem dizer.

Por isso a obra conclui por uma procura duma norma do gosto, como começara por uma introdução sobre o gosto. Porque o problema que a arte literária põe vai muito mais longe do que ela e supõe toda uma cultura, imaginação, paixões civilizadas e valores diversos da sua expressão. A arte literária está acima de todas as artes. A sua própria função, expressiva e apaixonada, faz dela a mais requintada das artes do gosto e a arte mais embebida de crítica.













raymond bayer
história da estética
trad. josé saramago
editorial estampa
1979





07 julho 2007

sábado






Estou nu diante da água imóvel. Deixei minha roupa
no silêncio dos últimos ramos.




Isto era o destino:


chegar à margem e ter medo da quietude da água.











antonio gamoneda
livro do frio
(5-sábado)
trad. de José bento
assírio & alvim
1999





05 julho 2007

febo del poggio






Acordo. Que disseram os outros? Aurora que, cada manhã, reconstróis o mundo; integral nos braços nus que conténs o universo; juventude, aurora do homem. Que importa o que outros disseram, o que pensaram, o que acreditaram. Sou Febo del Poggio, um bobo. Os que falam de mim dizem que sou pobre de espírito; talvez nem tenha espírito. Existo como um fruto, como um copo de vinho, como uma árvore. Quando vem o Inverno, as pessoas afastam-se da árvore que não dá sombra; comido o fruto, deitam fora o caroço; vazio o copo, vão buscar outro. Eu aceito. Verão, água lustral da manhã sobre membros ágeis; ó alegria, orvalho do coração…

Acordo. Tenho diante de mim, atrás de mim, a noite eterna. Eu dormi milhões de idades; milhões de idades eu vou dormir… Só tenho uma hora. Havia de estragá-la com explicações e com máximas? Estendo-me ao sol, sobre o travesseiro do prazer, numa manhã que não voltará mais.










marguerite yourcenar

o tempo esse grande escultor
trad. helena vaz da silva
difel
2001








03 julho 2007

diz...







diz aquilo que o fogo hesita dizer,
sol do ar, claridade que ousa,
e morre porque o disseste por todos.









rené char
furor e mistério
trad. margarida vale de gato
relógio de água
2000








four boys on a beach







Winslow Homer
Four Boys on a Beach, c. 1873
John Davis Hatch Collection, Andrew W. Mellon Fund
1979.19.1
National Gallery of Art





01 julho 2007

para um livro de leituras escolares







não leias odes, meu filho, lê antes horários:
são mais exactos. desenrola as cartas marítimas
antes que seja tarde, toma cuidado, não cantes.
o dia vem vindo em que hão-de outra vez pregar as listas
nas portas e marcar a fogo no peito os que digam
não. aprende a passar despercebido, aprende mais do que eu:
a mudar de bairro, de bilhete de identidade, de cara.
treina-te nas pequenas traições, na mesquinha
fuga quotidiana, úteis as encíclicas
mas para acender o lume, e os manifestos
são bons para embrulhar a manteiga e o sal
dos indefesos, a cólera e a paciência são precisas
para assoprar-se nos pulmões do poder
o pó fino e mortal, moído por
aqueles que aprenderam muito

e são meticulosos por ti.










hans magnus enzensberger
poesia do século XX
(de thomas hardy a c.v. cattaneo)
tradução de jorge de sena
editorial inova
1978





27 junho 2007

hoje, não posso interrogar — sou eu que afirmo


22 de agosto de 1994



Hoje, não posso interrogar — sou eu que afirmo:
eu pode-
ria escrever sobre os problemas do tempo em que vivemos
mas só poderia falar deles a partir do meu, do meu tempo,
des-datando, que é o modo como escovo o fato dessas imã-
gens
que, aos que tomam este caminho,
lhes falam constantemente da sua irrealidade. O mundo.
Mas qual? No meu
combatem-se
existentes poderosos contra reais talvez inviáveis — o «é as-
sim» dos cínicos contra o «tenhamos um amor comum», de
Eckhart.
Basta atravessar a rua para encontrar o nosso tempo, basta-
-me voltar atrás para me encontrar no meu. Algures, no meu
corpo, entre atravessar e voltar atrás, houve o embate das
imagens.
Da televisão que vejo ao texto que escrevo, a distância é
incomensurável.
Não preciso carregar no botão para encontrar nos textos
que eu der a ler, inapagáveis, imagens próprias e não eféme-
ras — se os olhos de quem os ler forem também inapagáveis.
No tracejado desse inapagável, formam-se olhos que são es-
pelhos para as imagens reais de todos o territórios nómadas
que criamos, e vamos trocando entre eles e nós.
Lembro-me, a propósito de imagens, da frase de uma can-
ção que ouvi há anos:

«se eu fosse aquela em quem tu pensas, a quem tu tens
amor...»


Hoje, não posso interrogar — sou eu que afirmo:


que ouço na rua as patas dos cavalos; que vou sair;
que vou pentear-me;
que vou vestir o casaco;
que está um dia nublado;
que há tantos outros (não os outros) que existem, que-
rem ser reais,
e não morrer.


Afirmo que ir sair e não querer morrer me parece, de
súbito, uma espécie de constituição das imagens como se ne-
las houvesse uma certa matéria consciente e imperecível para
lá do corpo que a si própria perguntasse de que modo trazer o
que é vida corrente para o invisível não tomado pela morte.

Não posso perguntar. A escrever tenho de saber, na maior
das certezas.









maria gabriela llansol
inquérito às quatro confidências
relógio d´água
1996







25 junho 2007

paixão





estou no mais alto
da pura manhã

o meu coração é uma lágrima enorme
um frágil astro
que procura na linha dos teus lábios
o despertar generoso
dos solstícios
o alegre andamento
das estações

e quando desces a montanha do teu sono
e ficas tão nua da noite

eu
eu só sou
o sereno rio que passa
e que numa paixão de luz
te leva
ao azul infinito do mar









gil t. sousa
poemas
2001





avion arc en ciel








Eduardo Luiz (1932-1988)
avion arc en ciel (1987)
óleo sobre tela, 81x100 cm
colecção particular (França)






23 junho 2007

o limiar e as janelas fechadas







O que é certo é que gostei de ti.
O resto não: se exististe,
e se assim foi, qual a cor dos olhos, ora verdes
ora cinzentos, deles levantou-se uma vez
um bando de andorinhas. Quais. As rápidas,
as que não andam, as que se amam no ar.
Como foi. Ficaste doente
ou coisa assim, levaram-te, muito se passou,
acho que ia ter outro filho e esqueci-me de ti
até ouvir-te, esta noite, a horas impossíveis,
vem comigo, é tempo. Larga tudo e sai,
espero por ti ao pé da cancela.
Mas cheguei lá e o trinco
estava solto, batia ao vento
contra o poste, fechei-o, voltei para trás,
a pensar em ti, que estiveste lá,
sabe-o Deus, que abriste a cancela,
que gostei de ti e também
que a porta não encaixava bem.










eva gerlach
alguns poemas
trad. colectiva
poetas em Mateus
quetzal editores
1994









22 junho 2007

está-se a fingir muito bem







(…)

Está-se a fingir muito bem.
Finge-se quase até ao esquecimento.
Há paisagens, ruas, cinemas, amores, dinheiro,
pensamentos, palavras, estações do ano
e obras de arte.

Diz-se: a vida.

Ou: o tempo.

E um dia abre-se o livro
e vê-se de novo a fotografia.
E já não se recomeça a leitura no mesmo ponto.
O que se roubou foi o tempo,
sim, mas não naquele primeiro sentido suposto.
A antiquíssima imagem fixa
serve para se roubar ao tempo a sua qualidade de perdão.

Porque a idade não ensina a anuência aos bons
e fáceis sentimentos.
A idade é: cada vez mais atenção.
Só te resta isso, caminhador:
o perigo.
O perigo que é o conhecimento,
o conhecimento ganho na atenção.

Um homem que conquistou a sua idade
não pára diante da fotografia antiga
para se comover e murmurar:
a mãe com o seu filho ou o filho com a sua mãe.

Ele pensa: quem são?
o que fazem um ao outro?
Ele ouve:
vou morrer, e vou deixar-vos descansados.
E ouve a sua própria voz:
então morra.

E as mãos inocentes.

De uma delas sabe que se moveu
como se agarrasse um punhal
— a pequena mão inocente registada com oito anos.

Descanso?
Mas isso conhecia ela bem que seria impossível.
O que ela dizia era assim:
morro para que tu, tu, tu,
não tenhas nenhuma espécie de descanso.

Um pouco mais, um pouco mais
— é para isso que as imagens são imóveis.
Tu próprio não és uma criatura móvel,
a menos que fales em atenção,
em profundidade.

Desce àquilo em que te encontras imóvel.

Mas em vez disso saímos para a rua,
à procura dos velhos companheiros:
os que se vão suicidar,
os que se encontram à entrada do seu irrevogável romance de esquizofrenia,
os que de longe escreverão uma carta
pedindo para os ajudarmos a virem morrer nesta cidade branca
que, do outro lado,
quando se está com o fígado desfeito e a cabeça a tremer,
a gente imagina metaforicamente aérea,
varrida por ventos puros.

Saímos em busca dos bêbados.

Pretende-se a ilusão de espaços dinâmicos,
figuras que se propaguem através deles,
o empolgante cinetismo das visões,

E que haja tempo, o tempo, o tempo.

Que as coisas avancem,
desfazendo os nós ferozes onde a angústia se concentrou.

Uma semana de bebedeira ininterrupta
— e aparecem as amiguinhas,
vamos todos de um lado para outro,
bando apocalíptico,
animado por um furor malsão, uma alegria brutal.

Arranjamos um quarto,
despimo-nos,
e depois estamos noutro quarto,
e estamos a despir-nos,
e de novo a fazer amor,
quatro, seis, oito em cima do tapete —
o terrível milagre de uma alucinação de pernas,
braços, seios, mãos, sexos, coxas, cabeças, vestidos, camisas.

E uma madrugada, só,
vagueando pelos cais desertos,
no meio da luz suja e trémula,
ressurge o horror da inteligência.

Vê-se tudo, e seria preciso morrer.

E então volta-se para casa,
procura-se a fotografia no livro,
no fundo de uma gaveta,
e está lá isto: o tempo não existe.

Seria possível uma pequena piedade por nós próprios,
mas somos tão pouco sentimentais,
nós.

Não gostamos da piedade.

Descobre-se que a mãe não era para piedades.
A perversa cabeça infantil
entra nela como um punhal,
e a mãe, sem conhecer o peso do braço do cavalheiro,
olha o espaço, de lado, neutra,
ligada àquela espécie de enigmático crime,
à obscura vingança
no outro lado da sua profecia do descanso para eles, para ele, ele
— para ti.

Decifrando a metáfora,
percorrendo os caminhos para descobrir as deslocações das partes
e, assim, recompor a verdade do texto
— a fotografia, a realidade, a vida
— ele descobre que toda a gente tem as mãos cheias
de sangue.

Que nada foi criado
que o não fosse no abismo das destruições.
E entendendo enfim a linguagem das fotografias,
ele assume a sua desgraça,
e a insignificância dela,
e supõe poder avançar,
liberto,
para a sua própria morte,
algures num tempo.

(…)










herberto helder
apresentação do rosto
editora ulisseia
1968






20 junho 2007

os paraísos artificiais, o vinho





A ALMA DO VINHO


Uma noite, a alma do vinho cantava nas garrafas:
«Homem, vai de mim para ti, ó caro deserdado,
Nesta prisão de vidro e de selos vermelhos,
Um canto cheio de luz e de fraternidade!

Sei quanto é preciso, sobre a colina em chamas,
De esforço, de suor e de sol esbraseante
Para engendrar-se a minha vida e ser-me dada alma;
Mas não serei ingrato nem malfazejo,

Pois é imensa a alegria que sinto quando caio
Na garganta de um homem gasto pelo trabalho,
E o seu cálido peito é um túmulo tranquilo
Onde melhor me sinto do que nas frias caves.

Ouves tu ressoar as canções dos domingos?
E a esperança que ri no meu seio palpitante?
De cotovelos na mesa e arregaçando as mangas,
Tu me glorificarás e estarás radiante;

Iluminarei os olhos de tua mulher encantada;
A teu filho darei a cor e as forças
E serei para esse frágil atleta da vida
O óleo que reforça os músculos dos lutadores.

Em ti cairei, vegetal ambrósia,
Grão precioso lançado pelo eterno Semeador,
Para que do nosso amor nasça a poesia
Que subirá a Deus como uma rara flor!»





O VINHO DOS TRAPEIROS


Muitas vezes, à luz vermelha de um candeeiro
Cuja chama o vento sacode e cujo vidro atormenta,
No coração de um velho subúrbio, labirinto lodoso.
Onde a humanidade se agita em fermentos tempestuosos,

Vê-se um trapeiro que vem, meneando a cabeça,
Tropeçando, e esbarrando nas paredes como um poeta,
E, sem dar atenção aos espiões, seus súbditos,
Expande todo o coração em gloriosos projectos.

Presta juramentos, dita leis sublimes,
Derruba os maus, ergue de novo as vítimas,
E sob o firmamento como um dossel suspenso
Enebria-se dos esplendores da sua própria virtude.

Sim, estes seres fatigados de desgostos domésticos,
Moídos do trabalho e atormentados pela idade,
Extenuados e vergados sob um monte de restos,
Vomitados confusos do enorme Paris,

Regressam, perfumados de um odor de tonéis
Seguidos de companheiros, encanecidos nas batalhas,
Cujos bigodes pendem como os velhos estandartes.
As bandeiras, as flores e os arcos triunfais

Erguem-se diante deles, solene magia!
E na estrondosa e luminosa orgia
Dos clarins, do sol, dos gritos e do tambor,
Trazem a glória ao povo ébrio de amor!

Assim através da Humanidade frívola
O vinho rola ouro, deslumbrante Páctolo;
Com a garganta do homem canta as suas proezas
E reina por seus dons como os verdadeiros reis.

Para afogar o rancor e embalar a indolência
De todos esses velhos malditos que morrem em silêncio,
Deus, tocado de remorsos, fizera o sono;
O Homem juntou-lhe o Vinho, filho sagrado do Sol.





O VINHO DO ASSASSINO


Minha mulher está morta, sou livre!
Posso agora beber quanto quiser.
Quando chegava a casa sem dinheiro
Rasgava-me as fibras aos gritos.

Sou tão feliz como um rei;
O ar é puro, o céu admirável...
Tivemos um Verão assim!
Quando me apaixonei por ela.

A horrível sede que me dilacera
Precisaria para se satisfazer
De tanto vinho quanto pode conter
O túmulo dela; — e não é dizer pouco:

Atirei-a ao fundo de um poço,
E empurrei-lhe mesmo para cima
Todas as pedras do bucal.
Hei-de esquecê-lo se puder!

Em nome dos juramentos de ternura,
De que nada pode desligar-nos,
E para nos reconciliarmos
Como nos bons tempos do nosso entusiasmo,

Implorei-lhe um encontro,
À noite, numa rua escura.
Ela veio! — doida criatura!
Todos somos mais ou menos doidos!

Estava ainda bonita,
Embora fatiga da! e eu,
Amava-a de ‘mais! por isso
Lhe disse: Sai desta vida!

Ninguém pode entender. Um só
Desses bêbedos estúpidos
Terá pensado nas noites mórbidas
Fazer do vinho uma mortalha?

Essa crápula invulnerável
Como as máquinas de ferro
Nunca, de Verão ou de Inverno,
Conheceram o verdadeiro amor,

Com os seus negros bruxedos,
Seu cortejo infernal de alarmes,
Seus frascos de veneno, suas lágrimas,
Sem ruídos de grilhões e de ossadas!

— Eis-me livre e solitário!
Esta noite estarei bêbedo a cair;
Depois, sem medo e sem remorso,
Deitar-me-ei no chão,

E dormirei como um cão!
A galera de pesadas rodas
Carregada de pedras e de lamas,
O vagão desgarrado pode vir

Esmagar-me a cabeça culpada
Ou cortar-me pelo meio,
Rio-me de tudo como de Deus,
Do Diabo ou da Santa Mesa!





O VINHO DO SOLITÁRIO


O olhar singular de uma mulher galante
Que desliza para nós como o raio branco
Que a lua ondulosa envia ao lago trémulo
Quando quer banhar nele a beleza preguiçosa;

O último saco de escudos nas mãos de um jogador;
Um beijo libertino da magra Adeline;
Os sons de uma música enervante e carinhosa,
Semelhante ao grito distante da dor humana,

Tudo isto não vale, ó garrafa profunda,
Os bálsamos penetrantes que a tua pança fecunda
Reserva ao coração sedento do poeta piedoso;

Tu deitas-lhe a esperança, a juventude e a vida,
— E o orgulho, tesouro da indigência,
Que nos torna triunfantes e iguais aos Deuses!





O VINHO DOS AMANTES


Hoje o espaço é esplêndido!
Sem freio, sem esporas, sem brida,
Partamos a cavalo no vinho
Para um céu feérico e divino!

Como dois anjos atormentados
Por calentura implacável,
No azul cristal da manhã
Sigamos a miragem distante!

Suavemente balouçados sobre a asa
Do turbilhão inteligente,
Em um delírio paralelo,

Minha irmã, nadando lado a lado,
Fugiremos sem descanso nem tréguas
Para o paraíso dos meus sonhos!












charles baudelaire
os paraísos artificiais
trad. josé saramago
livros b
estampa
1978




19 junho 2007

tango azul





uma vez a polícia alvejou-me.
a história tem os seus quês. eu conto-te:


apanharam-nos num automóvel gamado
cercaram-nos
mandaram-nos sair do chaço
e apoiar as mãos na parte de trás
da mala para
nos revistarem
algemarem
nos levarem de cana.
era sexta-feira. no sábado
tinha pensado estrear roupa para ir todo
catita
à discoteca
a meter-me com as gajitas.
não hesitei dei a volta e desatei a correr.
estava perto a esquina da salvação.
um dos chuis gritou-me:


PÁRA, FILHO DA PUTA, OU MATO-TE!


atirou
disparou a 5 metros de distância
e falhou
escapei
vesti a minha roupa nova
dei show.


mas o importante da história
é o que eu digo sempre:

devia ter acertado

devia ter-me matado nesse mesmo instante

quando não tinha medo da morte

quando ainda era

feliz.










david gonzález
trad. gs
a partir do texto original em
poesia espanhola, anos 90
joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000








17 junho 2007

praga HIV








Antes do contágio, o hálito do prazer era-me constantemente familiar e os corvos suaves ferviam tolhidos no carro do miradouro. O filamento do vazio, emaranhado no interior do desejo, era o magnífico solo na distribuição de pedaços de jornal, com o meu telefone escrito a azul bebé, ao longo dos sexos molhados. Destrambelhados delitos cometidos, mas do culpado nem rasto sequer. Desrespeitei-me muitas vezes, mas depois do positivismo ao máximo, andamos perdidos com anatomias e angústias semelhantes. Aos corpos desmiolados, atiçados em conferência de imprensa, tudo lhes perdoo, excepto o princípio do vírus. No fundo, somos todos potenciais seres humanos, partilhamos tudo e tudo oferecemos, até a morte lenta. Na mitologia, a materialização da vacina. Aparição estragada, futuro sem lugar, imaginação desabitada para dentro do esqueleto minado. Apalpo-me em múltiplas ocasiões, mas das zonas endógenas inchaços, hematomas, nódoas, quistos. Tenho a protecção física flectida sob todo o tipo de infecções. Estremeço de medo, por detrás da latrina vertebrada. Os comprimidos são ímanes para a loucura, bengalas, hélices no deslocamento entre as várias divisões do lar. Na doença fealdade, tosse, cor amarela, pele amarela, bolor, desastre, estatística da pena. No imprevisto, a criatura amada fugiu antes de ter tropeçado no precipício ininstante. A análise sísmica foi-lhe favorável, nem sei bem como. Naquele dia tocou-me no braço e disse: - Mesmo que não me suicide antes, deixo-te para morreres à vontade, sem perturbações, na proibição dos átomos. Falta somente esculpir a execução. Assunto arrumado.








cláudia afonso
oficina de poesia
revista da palavra e da imagem

trianual nº- 1 série II
coimbra
julho 2002






16 junho 2007

lucidez impura






numa falésia de silêncio
há um colar de palavras a arder

todos os ventos amargos
vieram morar na minha cabeça

morrem-me nos lábios
um a um
os verbos mais belos

que demoradamente se extinguem
e te arrastam

levam-te de mim
como se fosses todo o verde
que havia num deserto

e eu ergo esta saudade
para não te perder

na crueldade de Dezembro
a construo

porque nenhum outro tempo
te pode incluir








gil t. sousa
poemas
2001



13 junho 2007

espelho negro





Dois corpos que se estreitam e crescem
e penetram na noite de sua pele
e sexo, duas trevas entrelaçadas
que inventam na sombra a sua origem, os seus deuses,
que dão nome e rosto à solidão,
e desafiam a morte sabendo-se mortos
e derrotam a vida ao serem a sua presença.
Diante da vida sim, diante da morte,
Dois corpos impõem uma realidade aos gestos,
braços, músculos, à terra húmida,
vento de chamas, lago de cinzas.
Diante da vida sim, diante da morte,
dois corpos que porfiam exorcizam o tempo
construindo a eternidade que lhes é negada –
supõe eterno o sonho que os sonha.
É negro o espelho em que se replica a sua noite.








juan luís panero
antes que chegue a noite
versões de antónio cabrita e teresa noronha
fenda
2000








12 junho 2007

cantos de maldoror






Todas as noites, mergulhando a envergadura das minhas asas na memória agonizante, evocava a lembrança de Falmer... todas as noites. Os seus cabelos loiros, o seu rosto oval, os seus traços majestosos estavam ainda gravados na minha imaginação... indestrutivelmente.., sobretudo os seus cabelos loiros. Afastai, afastai pois essa cabeça sem cabelo, polida como a carapaça da tartaruga. Ele tinha catorze anos e eu um ano mais. Essa voz lúgubre que se cale. Porque vem ela denunciar-me?
Mas sou eu mesmo que falo. Servindo-me da minha própria língua para exprimir o meu pensamento, sentindo que os meus lábios mexem e que sou eu mesmo que falo. E sou eu mesmo que, contando uma história da minha juventude e sentindo o remorso penetrar-me o coração... sou eu mesmo, a não ser que esteja enganado... sou eu mesmo que falo. Eu tinha só um ano mais. Quem é então aquele a quem me estou a referir? É um amigo que eu tinha em tempos passados, julgo eu. Sim, sim, já disse o nome dele... não quero soletrar outra vez essas seis letras, não, não. Também é inútil repetir que eu tinha um ano mais. Quem sabe? Repitamos, no entanto, mas com um penoso murmúrio: eu só tinha um ano mais. Mesmo então, a preeminência da minha força física era um motivo para sustentar, através do rude atalho da minha vida, aquele que se me tinha dado, mais do que para maltratar um ser visivelmente mais fraco. Ora, eu julgo que na verdade ele era mais fraco... Mesmo então. É um amigo que eu tinha em tempos passados, julgo eu. A preeminência da minha força física... todas as noites... Sobretudo os seus cabelos loiros. Muitos seres humanos viram cabeças calvas: a velhice, a doença, a dor (as três juntas ou em separado) explicam este fenómeno negativo de modo satisfatório. Tal é, pelo menos, a resposta que um sábio me daria, se eu o interrogasse a este respeito. A velhice, a doença, a dor. Mas eu não ignoro (sim, também eu sou sábio) que um dia, só porque ele me deteve a mão no momento em que eu erguia o punhal para trespassar o seio de uma mulher, o agarrei pelos cabelos com braço de ferro e o fiz girar no ar, a tal velocidade que a cabeleira me ficou na mão, e o seu corpo, lançado pela força centrífuga, foi embater no tronco de um carvalho... Não ignoro que um dia a sua cabeleira me ficou na mão. Também eu sou sábio. Sim, sim, já disse o nome dele. Não ignoro que um dia cometi um acto infame, quando o seu corpo era lançado pela força centrífuga. Ele tinha catorze anos. Quando, num acesso de alienação mental, corro pelos campos, apertando contra o coração uma coisa sangrenta que há muito tempo conservo como venerada relíquia, as criancinhas que vêm atrás de mim... as criancinhas e as velhas, que me perseguem à pedrada, soltam estes gemidos lamentosos: “Ali vão os cabelos de Falmer.” Afastai, afastai pois essa cabeça calva, polida como a carapaça da tartaruga... Uma coisa sangrenta. Mas sou eu mesmo que falo. O seu rosto oval, os seus traços majestosos. Ora, eu julgo que na verdade ele era mais fraco. As velhas e as criancinhas. Ora, eu julgo que na verdade.., que é que eu ia a dizer?... ora, eu julgo que na verdade ele era mais fraco. Com braço de ferro. Aquele choque, aquele choque matou-o? Partiram-se-lhe os ossos contra a árvore... irreparavelmente? Matou-o, aquele choque provocado pelo vigor de um atleta? Continuou vivo, apesar dos seus ossos irreparavelmente partidos... irreparavelmente? Aquele choque matou-o? Temo saber aquilo a que os meus olhos fechados não assistiram. Na verdade... Sobretudo os seus cabelos loiros. Na verdade, eu fugi para longe com uma consciência agora implacável. Ele tinha catorze anos. Com uma consciência agora implacável. Todas as noites. Quando um jovem que aspira à glória, num quinto andar, debruçado sobre a sua mesa de trabalho, à hora silenciosa da meia-noite, sente um ruído que não sabe a que atribuir, vira a cabeça para todos os lados, pesada da meditação e dos poeirentos manuscritos; mas nada, nenhum indício surpreendido lhe revela a causa daquilo que ouve tão baixo, mas que ouve. Vê por fim que o fumo da vela, ao subir para o tecto, provoca, através do ar ambiente, as quase imperceptíveis vibrações de uma folha de papel presa à parede com um prego. Num quinto andar. Tal como um jovem que aspira à glória ouve um ruído que não sabe a que atribuir, assim eu ouço uma voz melodiosa que me diz ao ouvido: “Maldoror!” Mas, antes de desfazer o engano, ele julgava ouvir as asas de um mosquito... debruçado sobre a sua mesa de trabalho. No entanto, eu não estou a sonhar; que importa que eu esteja estendido no meu leito de cetim? Faço com sangue-frio a observação perspicaz de que tenho os olhos abertos, embora seja a hora dos dominós cor-de- rosa e dos bailes de máscaras. Nunca... Oh! não, nunca!.., nunca uma voz mortal fez ouvir estas tonalidades seráficas ao pronunciar com tão dolorosa elegância as sílabas do meu nome! As asas de um mosquito... Como é indulgente a sua voz... Ter-me-á então perdoado?... O seu corpo foi embater no tronco de um carvalho... “Maldoror!”












isidore ducasse
conde de lautréamont
cantos de maldoror
canto quarto
trad. pedro tamen
fenda
1988







10 junho 2007

pour faire le portrait d´un oiseau





a elsa henriques





se quiseres pintar o retrato de um pássaro
primeiro pinta uma gaiola
com a porta aberta.
depois pinta
algo engraçado
algo simples
algo bonito
qualquer coisa útil
para o pássaro.
depois encosta a tela a uma árvore
num jardim
num bosque
ou numa floresta
e esconde-te atrás da árvore
muito calado
sem te mexeres…
às vezes o pássaro aparece logo
mas também pode levar muitos anos
até decidir aparecer.
não desistas
espera
espera durante anos, se preciso for
a pressa ou a demora do pássaro
não tem influência no resultado
do quadro.
quando o pássaro aparecer
se ele aparecer
guarda o mais profundo silêncio
até ele entrar na gaiola
e quando ele entrar
delicadamente, fecha a porta com o pincel
depois
apaga uma a uma todas as grades
tendo o cuidado de não tocar a plumagem do
pássaro
em seguida, pinta uma árvore
e escolhe o ramo mais bonito
para o pássaro
pinta a folhagem e a frescura do
vento
pinta o dourado do sol
e o alarido das criaturas na relva sob o calor do
verão
e depois espera até que o pássaro se decida a cantar
se ele não cantar
é mau sinal
é sinal de que o quadro é mau
mas se ele cantar é bom sinal
é sinal de que o podes assinar
e então arrancas delicadamente
uma pena do pássaro
e escreves o teu nome num canto do quadro












jacques prévert
paroles
trad. g.s.
éditions gallimard
folio
2003




a mulher e o lobo










Eduardo Luiz
(1932-1988)
a mulher e o lobo (1971)
óleo sobre tela, 89x116 cm
colecção Manuel de Brito






09 junho 2007

fastos III







artur hipólito morreu com 62 an
os, 20 anos após ter feito 42, mas
na altura quem diria?


heitor fragoso morreu atropelado.
foi levado para o hospital, mas es
queceram-se duma parte do corpo
no local do acidente.

manuel testa morreu sem se ter c
onseguido habituar a este modo
de mal-estar no mundo.

arnaldo rodrigues caiu a um bur
aco da canalização e nunca mais
foi visto.

jeremias cabral pôs termo à exist
ência por motivos desconhecidos.

zeca gomes morreu em defesa da
pátria mas a pensar noutra coisa.

antónio de oliveira morreu igual
a si mesmo: triste sinal dos te
mpos!

bernardo leite pôs-se a pensar na
morte e não conseguiu voltar a
trás.

ivo gouveia tinha uma agência f
unerária e escolheu para si um
caixão representativo.

guilherme silva fechou-se no sót
ão, para morrer num lugar eleva
do.

luís dimas respirava saúde, agora
respira um hálito de eternidade.

antónio garcia, o coveiro, teve u
ma síncope e caiu dentro da cov
a que estava a abrir.

bento nogueira engasgou-se com
um pedaço de carne e desapare
ceu do nosso convívio.

paiva de jesus enforcou-se.

joão baptista viu o cunhado lev
antar-se do caixão e teve uma sí
ncope.

lourenço pinheiro estava a ver a
trovoada e um relâmpago entrou
lhe por um olho e saiu-lhe pelo
outro.

jorge velez de castro finou-se
após uma longa vida de sacrifí
cios, toda dedicada ao bem-comu
m. e foi assim: depois de ter inge
rido o seu sumo de laranja, foi c
onduzido para a cadeira de rep
ouso pelo enfermeiro de confian
ça. nela se conservou, de boca en
treaberta e olhos fechados, até
às onze horas. às onze horas, o e
nfermeiro de confiança aproxim
ou-se com a intenção de o condu
zir ao banho. pondo delicadamen
te a mão nas costas da cadeira,
disse: são horas do banho, senhor
director. como este não desse si
nal de ter ouvido, o enfermeiro
de confiança, com a costumada jo
vialidade, debruçou-se e repetiu:
são horas do banho, senhor direc
tor. posto isto, empurrou a cadei
ra até ao balneário, passou um br
aço pelos rins outro por baixo d
os joelhos do director, e assim o
levou para a água, só então se da
ndo conta de que ele já não vivia.

zé maria, o peidolas, foi expulso
da vida pela autoridade compet
ente.

joão gaspar foi um nobre e val
oroso homem que morreu heroi
camente no campo da honra. p
az à sua alma.

raul santos deitou-se um dia e p
or mais que o sacudissem nunca
mais se levantou.

alfredo penha caiu tão desastrada
mente da cama que nem é possív
el dar pormenores da sua morte.

joaquim perestrelo morreu no me
io da missa, qual quê! ainda a m
issa não ia a metade!

sousa dias morreu de pé, mas en
terraram-no deitado, como toda a

gente.













alberto pimenta
obra quase incompleta
fenda
1990