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22 agosto 2024

alberto pimenta / jardim zoológico



 
 
dum lado da jaula
os que vêem
do outro
os que são vistos
 
 
e vice-versa
 
 
 
 
 
(No dia 31 de Julho de 1977, Alberto Pimenta, cidadão nacional n.º 0727697, esteve exposto entre as 16 e as 18 horas numa jaula do Palácio dos Chimpazés do Jardim Zoológico de Lisboa.
Em Abril de 1981, o Rádio-teatro de Estocolmo emitiu uma adaptação readiofónica do acto, da autoria de Margareta Ablberg. Na sequência disso, Per-Eric Gustavsson repetiu o acto no Zoo de Estocolmo, e o actor espanhol Alberto Vilar encenou-o em vários Jardins Zoológicos.)
 
 
 
alberto pimenta
IV de ouros
fenda
1992
 





 

30 janeiro 2023

alberto pimenta / o dia tem 24 horas

 



 
o dia tem 24 horas
 
os canais de televisão
em conjunto
fazem delas perto de 100
 
a banca
para organizar
os seus assaltos súbitos
à bolsa
e vice-versa
trabalha em conjunto ou em separado
mais de 300 horas por dia
que depois
podem render
mais de cem mil salários anuais
de cem mil trabalhadores
 
os curso de balística
do exército e da polícia
ocupam entre todos eles
muitas centenas de horas
por dia
a treinar
a fatalidade e o erro científicos
 
para derrotarem o adversário
em décimas de segundos
ou menos
os atletas treinam
sem trégua
milhares de horas por ano
durante vários anos da sua vida
 
o homem aproveita
engenhosamente
o tempo
e nos intervalos
produz os novos escravos
do novo tempo
 
os donos dele
sucedem-se
 
o tempo tem dono
e é hereditário
 
 
 
alberto pimenta
resumo
a poesia em 2012
assírio & alvim
2013
 




23 outubro 2021

alberto pimenta / diálogo

  

vês aqueles pontos lá longe, disse o cego,
parando e apontando com a bengala. não, mas
vejo as pessoas lá longe, tão pequenas que
parecem pontos, disse eu. era isso que eu
queria dizer, disse o cego.
 
vês aqueles pontos lá longe, disse o cego,
parando e apontando com a bengala. não, mas
vejo os navios lá longe, tão pequenos que
parecem pontos, disse eu. era isso que eu
queria dizer, disse o cego.
 
vês aqueles pontos lá longe, disse o cego,
parando e apontando com a bengala. não, mas
vejo as casas lá longe, tão pequenas que
parecem pontos, disse eu. era isso que eu
queria dizer, disse o cego.
 
vês aqueles sinais lá longe, disse o cego,
parando e apontando com a bengala. não, mas
vejo as estrelas no céu escuro, tão peque
nas que parecem um espanto, um sinal
e um provérbio, disse eu.
 
essa mania da contradição ainda te há-de
sair cara, disse o cego, brandindo a bengala.
 
 
 
alberto pimenta
obra quase incompleta
fenda
1990






12 dezembro 2020

alberto pimenta / aspirina

 
 
da conversa que ontem tive
com o senhor do universo
resultou o seguinte:
 
dentro de cada cabeça
há uma árvore do bem e do mal
com o respectivo jardineiro
 
dentro de cuja cabeça naturalmente
há também uma árvore do bem e do mal
com o respectivo jardineiro
 
o qual dentro da cabeça
tem também uma árvore do bem e do mal
e o respectivo jardineiro
 
e assim por diante
tudo já se vê em dimensões microscópicas
 
mas não sei se entendi bem
o que ele quis dizer
 
 
 
alberto pimenta
obra quase incompleta
fenda
1990

 



14 novembro 2018

alberto pimenta / chegou o inverno




chegou o inverno

aves que fogem
de que fogem

nas colinas pedregosas

casas que ficam
até quando ficam

abarrotam os celeiros

nuvens que vão
donde vêm

os campos esperam

árvores que crescem
por que não chegam nunca

apressa-se

rio que corre
por que não pára

e isto

que vem nos meus olhos
por que não vem comigo

e aquilo
que vem comigo
por que não vem nos meus olhos




alberto pimenta
poesia do mundo/2
afrontamento
1998








18 setembro 2015

alberto pimenta / elogio do kitch



nada é diferente do que é:
nem as coisas
nem as palavras.

tudo é como é: tanto
as coisas como
as palavras.

mesmo
quando se trata de
coisas
que encobrem as palavras
ou de
palavras
que encobrem as coisas.

porque
as coisas
são como são
e exactamente o mesmo
sucede com as palavras.

isto
não esquecendo
que as palavras
por assim dizer
são o esmegma das coisas
e as coisas
por assim dizer
o eclegma das palavras.

e é tudo,
não é verdade?



alberto pimenta
obra quase incompleta
fenda
1990



15 janeiro 2012

alberto pimenta / o desencantador



 (…)

eu
a minha história
começou há milhares de anos
e continua é claro
está agora a passar-se
como a tua
e vai continuar a passar-se
durante não sei quantos anos mais

transformar homens em animais
ou em escravos que é o mesmo
eu conheço isso melhor que ninguém
o tempo é uma burla
inventada pelos deuses
que tanto fazem de Lucius um burro
dizem eles aos poetas
como também depois dizem e mentem
“trabalha para o futuro” quer dizer
trabalha sempre para eles

e como perguntas
se é o silêncio
que nos permite existir
olha que é verdade
nunca houve um acto limpo
na história
eu sofri por isso
e dito isto
pôs  a máscara de burro
vês o que é um escravo
disse ele

Lucius disse eu
tu és Lucius

(…)


  

alberto pimenta
o desencantador
7 nós
2011


09 junho 2007

fastos III







artur hipólito morreu com 62 an
os, 20 anos após ter feito 42, mas
na altura quem diria?


heitor fragoso morreu atropelado.
foi levado para o hospital, mas es
queceram-se duma parte do corpo
no local do acidente.

manuel testa morreu sem se ter c
onseguido habituar a este modo
de mal-estar no mundo.

arnaldo rodrigues caiu a um bur
aco da canalização e nunca mais
foi visto.

jeremias cabral pôs termo à exist
ência por motivos desconhecidos.

zeca gomes morreu em defesa da
pátria mas a pensar noutra coisa.

antónio de oliveira morreu igual
a si mesmo: triste sinal dos te
mpos!

bernardo leite pôs-se a pensar na
morte e não conseguiu voltar a
trás.

ivo gouveia tinha uma agência f
unerária e escolheu para si um
caixão representativo.

guilherme silva fechou-se no sót
ão, para morrer num lugar eleva
do.

luís dimas respirava saúde, agora
respira um hálito de eternidade.

antónio garcia, o coveiro, teve u
ma síncope e caiu dentro da cov
a que estava a abrir.

bento nogueira engasgou-se com
um pedaço de carne e desapare
ceu do nosso convívio.

paiva de jesus enforcou-se.

joão baptista viu o cunhado lev
antar-se do caixão e teve uma sí
ncope.

lourenço pinheiro estava a ver a
trovoada e um relâmpago entrou
lhe por um olho e saiu-lhe pelo
outro.

jorge velez de castro finou-se
após uma longa vida de sacrifí
cios, toda dedicada ao bem-comu
m. e foi assim: depois de ter inge
rido o seu sumo de laranja, foi c
onduzido para a cadeira de rep
ouso pelo enfermeiro de confian
ça. nela se conservou, de boca en
treaberta e olhos fechados, até
às onze horas. às onze horas, o e
nfermeiro de confiança aproxim
ou-se com a intenção de o condu
zir ao banho. pondo delicadamen
te a mão nas costas da cadeira,
disse: são horas do banho, senhor
director. como este não desse si
nal de ter ouvido, o enfermeiro
de confiança, com a costumada jo
vialidade, debruçou-se e repetiu:
são horas do banho, senhor direc
tor. posto isto, empurrou a cadei
ra até ao balneário, passou um br
aço pelos rins outro por baixo d
os joelhos do director, e assim o
levou para a água, só então se da
ndo conta de que ele já não vivia.

zé maria, o peidolas, foi expulso
da vida pela autoridade compet
ente.

joão gaspar foi um nobre e val
oroso homem que morreu heroi
camente no campo da honra. p
az à sua alma.

raul santos deitou-se um dia e p
or mais que o sacudissem nunca
mais se levantou.

alfredo penha caiu tão desastrada
mente da cama que nem é possív
el dar pormenores da sua morte.

joaquim perestrelo morreu no me
io da missa, qual quê! ainda a m
issa não ia a metade!

sousa dias morreu de pé, mas en
terraram-no deitado, como toda a

gente.













alberto pimenta
obra quase incompleta
fenda
1990