29 dezembro 2006

estações

16)



________________ todos a caminho de 20OZ









Lisbeth Zwerger











22 dezembro 2006

book zapping #007 história da vida privada



As festas anuais


O ano é marcado, por um lado, pela vilegiatura de Verão, e por outro pelas festas da Igreja. A vilegiatura aristocrática generaliza-se na classe burguesa como férias de Verão. Assiste-se ao nascimento da ideologia do repouso e do lazer e a vida escolar vai ter que se adaptar a ela, prolongando as férias.
Seja-se ou não crente, vá-se ou não à igreja, é do calendário cristão que se depende. O ano desenrola-se segundo as festas litúrgicas, do Natal ao Dia de Todos-os-Santos, do nascimento de Cristo ao dos fiéis defuntos. Estas festas litúrgicas, que são passagens obrigatórias do ano, tomam-se mais ou menos ocasião para as festas familiares. A forma mantém-se a mesma, mas ganha outro sentido. O Natal, por exemplo, será dissociado do nascimento de Jesus em Belém, para se tornar cada vez mais a festa das crianças. Assim, a família investe nas festas cristãs para se auto-celebrar.





Pinheiro de Natal

O pinheiro de Natal vem dos países escandinavos. Os suecos trouxeram-no durante a guerra dos Trinta Anos (primeira metade do século XVII) para a Alemanha, onde só se popularizou no início do século XIX. Ainda em 1795, Goethe, que se encontra em Leipzig em casa de um amigo, se espanta por ver na casa uma árvore de Natal (no entanto, o hábito de montar nas casas um pinheiro de Natal é atestado pelos usos da cidade de Estrasburgo em 1605...).
Em 1840 o costume alemão é introduzido simultaneamente em Inglaterra e em França. Em Inglaterra pelo príncipe Alberto, marido da rainha Vitória. Em Paris pela princesa Helena de Mecklemburgo, duquesa de Orleães, e por famílias protestantes da Alsácia e da Alemanha. Sob o Segundo Império, favorecida pela imperatriz Eugénia, a tradição do pinheiro de Natal instala-se. Os alsacianos e lorenos que emigram após a derrota de 1870 contribuem para a difundir. Para Littré e Larousse, a «Árvore de Natal» não passa de um «grande ramo» de pinheiro ou de azevinho, enfeitado e guarnecido com rebuçados e brinquedos destinados às crianças.
No final do século o costume parece ter sido realmente «nacionalizado»: todos os anos se mandam aos missionários da Gronelândia, assim como aos colonos de África, árvores de Natal completamente enfeitadas! Nas famílias são quase iguais às que conhecemos.





O presépio

Em 1863 Littré não fala de presépio, nem nas igrejas nem nas casas. Larousse, alguns anos mais tarde, só nas igrejas os menciona, vivos e falantes, e isto para criticar longamente os presépios provençais. São irreverentes, diz ele, já que misturam sagrado e profano e fazem rir os fiéis. Apesar disso há um progresso: o anjo tenta falar em francês e já não em dialecto. É altura de acabar com as velhas tradições...
No entanto, os presépios instalados nas casas católicas durante o Natal deviam ser numerosos, a acreditar em Monsenhor Chabot, em 1906. Vendem-se efectivamente mais de trinta mil por ano, preços entre 20 e 3.000 francos. O presépio comporta sete ou oito personagens de base.
Os presépios marselheses, com os seus santões de argila de origem italiana, têm direito a um desenvolvimento particular. Isto porquanto, além das personagens sagradas tradicionais, lhes juntam personagens profanas, como o amolador, o tamborileiro, o moleiro, o aprendiz de padeiro, etc.. A modernidade introduz-se neles sob a forma de casas de quatro ou cinco andares, que se iluminam à noite com uma vela, e de locomotivas a vapor...





O exemplo alemão

Antes de o pinheiro de Natal ter sido importado para França, corria um discurso sobre este costume alemão. Fala-se, curiosamente, com um tom de pena, como se o pinheiro tivesse sido uma tradição francesa caída em desuso. La Gazette des ménages lamenta, a 23 de Dezembro de 1830, que em França, e sobretudo em Paris, «a geração actual conserve pouco apego pelos velhos usos», ao contrário da Alemanha, modelo das tradições domésticas.
Em Dezembro de 1849 Le Journal des jeunes filies evoca os costumes alemães com a mesma emoção, lamentando que os franceses não saibam explorar a atmosfera mágica: na Alemanha as consoadas «descem do céu», trazidas pelo Menino Jesus ou pelo «Cristo Filho». A França deveria seguir o modelo alemão e fazer das festas de fim de ano a oportunidade de reunir as gerações à volta do lar especialmente em casa dos avós.
Os discursos de 1830 e 1849 são idênticos. A propósito das festas do final do ano glorificam a vida privada. Logo a seguir a duas revoluções, opõe-se a instabilidade da coisa pública à estabilidade da vida familiar: «As alegrias da família, conclui o jornalista em 1849, são o único lugar e a única felicidade que as revoluções não poderão nunca roubar-nos».





A tranquilidade das festas em família

Em 1866 Gustave Droz consagra um capítulo de Monsieur, Madame et Bébé ao Dia de Ano Novo em família. Nessa manhã são sete horas quando Bébé arranha a porta dos pais para lhes desejar «bom ano». O pai chama-o para o leito conjugal, a criada vem acender
o fogo, e nesta doce atmosfera chega o momento das prendas. E Gustave Droz reivindica, glorifica esta felicidade conjugal como o que há de mais precioso. Todo o dia é marcado por encantadores quadros de família.

O primeiro dia do ano é assim um concentrado de todos os prazeres familiares, onde a família se retempera antes de começar o novo ano. Em 1866 não há já necessidade de utilizar a referência alemã. Droz faz a sua descrição como uma situação de facto. Há que pensar que quanto mais se avança no século XIX mais a certeza de que o lar traz uma felicidade preciosa e insubstituível se encontra ancorada nos espíritos. As crianças tomam-se os actores principais da festa.


Réveillon e consoada

O Réveilion é «uma refeição extraordinária que se faz a meio da noite. Particularmente a que se faz na noite de Natal» (Littré, 1869). O verbo réveillonner não existe. Da noite de São Silvestre não se fala. Não encontrei alusão alguma a festas ou refeições familiares na noite de 31 de Dezembro. Flaubert, na sua Correspondance, lembra--se de ter esperado uma vez a meia-noite a fumar, e uma outra a pensar na China.
Nas famílias católicas vai-se à missa da meia-noite, e no regresso ceia-se. Como é hábito dispensar os criados na noite de Natal, a refeição é reduzida. Comporta dois pratos tradicionais, a sopa-creme com baunilha, comida com filhós, e a morcela grelhada, e pratos trios, como peru trufado ou, para a sobremesa, confeitos e pastéis com açúcar cristalizado.



Para o Natal fabricavam-se bolos de todos os géneros, conforme as províncias, filhós, bolachas, tortas, mas não há vestígios do tronco de Natal que conhecemos. No século XIX, o tronco de Natal não passa de um grande pedaço de lenha que se põe no fogo na noite de 24 de Dezembro, para que se mantenha aceso toda a noite, vestígio de uma velha tradição do campo, onde se ficava acordado toda a noite de Natal para se assistir à missa da aurora.
De origem católica, o réveilion generaliza-se como festa profana na segunda metade do século, de tal forma que em 1908 os Usages du siécle podem afirmar: «Toda a gente festeja o réveilion». Os crentes festejam após a missa da meia-noite, os profanos, esses habituaram-se a ir ao teatro e a festejar em seguida. Já não há necessidade de um pretexto religioso para celebrar o Natal. A reunião familiar ou de amigos toma-se a única razão de ser da festa. Manteve-se na ementa da ceia de réveilion o peru e a morcela grelhada, mas a sopa-creme foi substituída por um caldo quente. Uma moda nos chega de Inglaterra: o pudding, símbolo do Christmas. Certas revistas dão a receita, caso da Fémina, a 1 de Janeiro de 1903 (outro uso inglês que tenta passar para os nossos costumes: o do abraço sob o visco; Fémina ilustra-o com uma fotografia, a 15 de Dezembro de 1903).
As consoadas, em princípio, são prendas que se dão no primeiro dia de Janeiro, segundo uma antiga tradição. Tomam a forma de gratificações obrigatórias aos criados, ao porteiro, ao carteiro... que transformam o primeiro dia do ano num dia de corveia ruinosa. Os jornais divertem-se com isso. Em Janeiro de 1830 La Mode publica um provérbio (peça em um acto) intitulado: «O dia de Ano Bom, ou as prendinhas mantêm a amizade». Põe em cena um homem perseguido por todos aqueles — do criado de quarto à esposa — que esperam as suas consoadas.
Mas, e de forma mais lata, as consoadas designam as prendas que se oferecem durante todo o período das festas de fim de ano. Alguns, como Madame de Grandmaison em 1892, tentam definir uma repartição: no Natal, prendas para as crianças; no primeiro dia do ano, consoadas para os adultos. Na realidade a distinção é difícil, porque por vezes se dão também prendas aos adultos por ocasião do Natal e às crianças igualmente no Ano Novo. Todas acabam por se chamar, indistintamente, «consoadas».


Sapatinho de Natal e prendas

Na noite de Natal as crianças colocam os seus sapatos diante da chaminé, esperando encontrá-los cheios na manhã do dia seguinte. Pelo Menino Jesus? Pelo Pai Natal? Parece que as duas personagens coexistiram, dando depois o segundo, a pouco e pouco, lugar ao primeiro.
O dicionário Robert de nomes próprios diz que o Pai Natal apareceu na Europa na segunda metade do século XIX. Teria vindo da América e seria uma criação de origem comercial. Que o comércio contribuiu para o sucesso da personagem não há a mínima dúvida, mas não a inventou. Seria necessário pensar antes em São Nicolau (santa Claus), que se festeja a 6 de Dezembro e que, nos países nórdicos, traz prendas às crianças bem comportadas — enquanto o seu associado, o padre Fouettard, deixa vergastas para os desobedientes. É provável que esta personagem tenha sido importada por imigrantes escandinavos e alemães para os Estados Unidos, aí se «comercializando».
Assim sendo, mesmo se no início do século não tinha a estatura que mais tarde adquiriu, o Pai Natal, tal como o conhecemos, estava já bem implantado em Paris: na Histoire de ma vie George Sand conta os natais da sua primeira infância (tinha seis anos em 1810): «O que não esqueci foi a crença absoluta que eu tinha na descida pelo tubo da chaminé do pequeno Pai Natal, bom velhinho de barba branca, que, à meia-noite, vinha pôr no meu sapatinho uma prenda que eu aí encontraria ao acordar. Meia-noite! Essa hora fantástica que as crianças não conhecem, e que lhes é mostrada como o termo impossível da sua vigília! Que esforços incríveis eu fazia para não adormecer antes da chegada do velhinho! Tinha ao mesmo tempo uma grande vontade e um grande medo de o ver: mas nunca conseguia manter--me acordada até lá, e no dia seguinte o meu primeiro olhar era para o meu sapato, junto à lareira. Que emoção me causava o embrulho de papel branco, porque o Pai Natal era extremamente limpo e nunca deixava de empacotar cuidadosamente a sua oferta. Eu corria, descalça, para me apoderar do meu tesouro. Nunca era uma dádiva verdadeiramente magnífica, porque não éramos ricos. Era um bolinho, uma laranja, ou, muito simplesmente, uma bela maçã vermelha. Mas parecia-me tão precioso que mal ousava comê-lo [...]».

O Pai Natal nada tem a ver com o nascimento de Cristo, e a Igreja Católica opôs-se durante muito tempo a esta personagem. Entre os crentes era o Menino Jesus quem trazia as prendas às crianças na noite de Natal. Segundo Francisque Sarcey (Annales de 22 de Dezembro de 1889), as crianças «vêem-no atravessar o ar, comprimindo no peito mãos cheias de bolos e de brinquedos: sentem-no acima deles, muito bom e muito justo; e dizem que com Ele é preciso portar-se bem, senão... os sapatos ficarão vazios». Mas esta imagem não se impôs realmente, e a Igreja, que não conseguia impedir a progressão do Pai Natal de manto vermelho, barba branca e grande saco, recuperou-o, fazendo dele o fiel mensageiro do Menino Jesus e o fundador de uma moral simples da retribuição.
No mês de Dezembro, os jornais abrem tradicionalmente uma rubrica para as consoadas. Sugerem aos leitores ideias para prendas, muitas das quais são especificamente femininas: canapés, «ouvragères» (pequenos móveis contendo o necessário para a costura), «esses pequenos nadas de toucador», papéis de carta de cor, perfumados e encerados, cartões de visita com ornamentos de fantasia. Fala-se, a propósito de tal ou tal objecto, de «bonita prenda para oferecer a uma mulher»; nunca tal se dirá de um objecto destinado a um homem. A categoria das prendas tipicamente masculinas não existe no século XIX. Quando muito, são citados, aqui e ali, objectos necessários «para Homens e para Senhoras». O que não significa que os homens não recebessem prendas, mas não se falava nisso.
Para as crianças, em 1836, a prenda mais requintada é um teatrinho: «Um espectáculo asiático que representa uma dança de corda simulada por pequenas personagens de papel que se fazem mover sem ajuda aparente». Outros brinquedos são propostos porque procuram reproduzir a realidade: o moinho com água verdadeira, os pássaros que cantam, as bonecas «casadoiras» dotadas de enxovais completos. Durante muito tempo as bonecas mantêm-se um valor certo. Os ursos de peluche aparecem no início do século XX. Teddy, o urso americano, data de 1903; Martin, o urso francês, de 1906.
Segundo o Larousse du XIX’ siêcle, se as prendas destinadas às crianças seguem os caprichos da moda, a tendência recente é cultural: «Os livros belos e bons tendem progressivamente a substituir as caras inutilidades, nesta solenidade do primeiro de Janeiro». Há que ter em conta o entusiasmo do dicionário pela pedagogia e pelo progresso, mas é verdade que, de uma ponta do século à outra, os jornais aconselham a oferta de livros e fornecem bibliografias (ver, por exemplo, La Mêre de familie, em Dezembro de 1834, e, em Dezembro de 1880, La Femnie et la Farnille, journal des jeunes personnes).
As meninas que mantêm um diário anotam as prendas que receberam ou recebem dos seus próximos. As prendas que os pais dão às crianças por ocasião das festas de fim do ano não são apenas uma fonte de prazer imediato, são também um investimento no futuro: as crianças lembrar-se-ão, terão capitalizado prazeres e guardá-los-ão na sua memória. Assim se fabrica a nostalgia dos adultos, que, por sua vez, a transmitirão aos seus filhos.


Votos e visitas de Ano Novo

Como troca das consoadas que recebem os filhos por ocasião do Ano Novo apresentam votos aos pais. Escreve Ehsabeth Arnghi a 29 de Dezembro de 1877: «Também nós fazemos consoadas para o papá, Pierre, Amélie e eu aprendemos juntos Le Petit Savoyard, e escrevemo-lo numa bela folha; depois aprendi um fragmento a duas mãos, e um outro a quatro mãos, que vou tocar com a mamã; Amélie aprendeu um fragmento a quatro mãos que vai tocar comigo».
No primeiro dia do ano devem apresentar-se os votos aos parentes próximos: pai, mãe, tios e tias, irmãos e irmãs. A véspera é reservada aos avós e aos superiores. Os oito dias seguintes são para os primos e outras pessoas aparentadas, a quinzena para os íntimos, o mês inteiro para os simples conhecimentos. Eis o que representa um número considerável de visitas a fazer e de cartões de votos a escrever.
É por isso, para evitar deslocar-se demasiado, que as pessoas se contentam muitas vezes em mandar, quer por um criado, quer pelos serviços de uma empresa que é paga para tal, entregar um cartão a casa das pessoas a quem se apresentam votos. Le Figaro de 24 de Dezembro de 1854 sublinha o paradoxo deste costume parisiense. As pessoas que recebem estes cartões afectam desprezar «esta atenção a trezentos francos a centena». Mas se alguém se dispensa de o fazer eles mesmos dirão: «Fulano não sabe viver: nem sequer me mandou um cartão no dia de Ano Novo!».











“Os ritos da vida privada burguesa”
por Anne Martin-Fugier
História da vida privada
Sob a direcção de Philippe Ariès e George Duby
Vol. 4 “Da Revolução à Grande Guerra”
Edições Afrontamento
1990






18 dezembro 2006

post it / w.d. sevahc




Carta simples


Hoje quis escrever-te e não consegui.
Pesam-me os verbos como pedras
nestes dedos, mas vês,
é sobre ti que se debruçam as palavras
que não saem
e nestes olhos a gratidão
de saberes sempre quando preciso da tua mão
na face, quase materna, quase amante,
e azuis os rasgos de ternura
de uns olhos castanhos e
meigos
que me libertam das águas revoltas
onde lutam os meus neurónios
em batalhas estéreis e sem sentido.
Tens sido tu o porto de abrigo
que me recolhe nas paisagens desse País
que escondes no teu corpo e no teu nome
e me dá uma paz profunda
e me asseguras na minha infantil insegurança
que o passaporte que assinaste para eu aí viver
é vitalício e sem encargos,
esse País tão infinito onde me quero nacionalizar
e ter asilo.
Se conseguisse, hoje tentaria explicar-te
que as razões da minha insegurança
vêm do facto de que quando me multiplico
nos jardins que escolho com cuidado
a água desaparece sem razão
correndo aos poucos para outros rios,
desidratando-me os afectos.
Sou inseguro e insistente
devido à inevitabilidade de que perpetuarás
esse ciclo, e que tenhas medo e fujas
e ergas muros que ficarei a contemplar
com os meus olhos tristes
que te dizem tanto sem dizerem nada,
excepto não tenhas medo,
não fujas,
não vás,
não sejas um rio
onde estas raízes não bebam.



w.d. sevahc




17 dezembro 2006

citações


ian coulling / arctic norway













16 dezembro 2006

carlos edmundo de ory



dá-me




dá-me algo mais que silêncio ou doçura
algo que tenhas e não saibas
não quero dádivas raras
dá-me uma pedra

não fiques imóvel fitando-me
como se quisesses dizer
que há muitas coisas mudas
ocultas no que se diz

dá-me algo lento e fino
como uma faca nas costas
e se nada tens para dar-me
dá-me tudo o que te falta!





carlos edmundo de ory
“doze nós numa corda"
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & Alvim
1997





11 dezembro 2006

ewa lipska




testamento



Após a morte de Deus
abriremos o testamento
para saber
a quem pertence o mundo
e aquela grande armadilha
de homens





ewa lipska (polónia, 1945)
tradução de aleksandar jovanovic
a rosa do mundo
assírio & alvim
porto 2001




08 dezembro 2006

estações

15 )



lisboa 2006, © gil t. sousa



pedro gil-pedro




Desciam
às estâncias do frio

o metal pesado nas mãos

e resplandeciam –

tolhidas pelo silvo vertical das
nascentes.

às vezes
eram badalos de tristeza –

as manadas abertas do cio.

vinhas com elas.







pedro gil-pedro
“animais cheios de movimento no inverno”
quasi
2002



07 dezembro 2006

estações

14 )



instinto



aceitar os dias por instinto
por dentro
um vulcão de papel
a inventar
as horas seguintes

ser tranquilamente uma terra antiga
um lugar de secura
onde adormecidas pérolas
esperam o cavar silencioso
do tempo

e colher no infinito
esse brilho adiado

como se fossem outra vez
os teus olhos






gil t. sousa
poemas
2001




05 dezembro 2006

joão de mancelos



mil novecentos e oitenta e cinco




nesse tempo, deus existia ainda
e tudo quanto era frágil respirava
loucamente


no bar da escola,
as bandas tocavam
para os cleptomaníacos do coração


nas traseiras do ginásio,
treinavam-se beijos à serpente
e cigarros orientais


os rapazes cresciam
com olhos prateados
e duros totens de carne


debaixo das saias das raparigas
havia flores rasgadas
e sonhos de cavalos bravos


forever young, só o vento
— e as revoluções do amor
que beijo a beijo atraiçoávamos






joão de mancelos
“oficina de poesia”
nr. 3 junho 2004
coimbra




04 dezembro 2006

ievgueni ievtuchenko



dorme amor




Brilham na vala as gotas salgadas.
A porta está fechada. E o mar,
fervente, erguendo-se e rompendo contra os diques,
absorveu o sol salgado.
Dorme amor...
Não atormentes a minha alma.
Adormecem já as montanhas e a estepe,
e o nosso cão coxo,
de pêlo emaranhado,
deixa-se cair e lambe a corrente salgada.
E o rumor dos ramos,
e o fragor das ondas,
e o cão acorrentado
com toda a sua experiência,
e eu com voz muito branda
e logo num murmúrio
e depois em silêncio
dizemos-te ambos: dorme, amor...
Dorme, amor...
Esquece que nos zangámos.
Imagina por exemplo:
acordamos.
Tudo está fresco.
Caímos sobre o feno.
Temos sono.
Vem um cheiro a leite azedo
lá de baixo,
da cave
convidando a sonhar.
Oh, como poderei fazer-te
imaginar tudo isto,
a ti, tão desconfiada!
Dorme, amor...
Sorri entre sonhos.
Não chores mais!
Corta flores e vai pensando
onde hás-de pô-las,
e compra muitos vestidos bonitos.

Disseste alguma coisa?
É o cansaço do teu sonho inquieto.
Envolve-te no sonho, agasalha-te bem nele.
Podemos ver em sonhos tudo o que queremos,
tudo o que ansiamos
quando estamos acordados.
É absurdo não dormir,
é mesmo um delito:
o que trazemos oculto
grita-nos nas entranhas.
Que difícil para os teus olhos
trazer tanta coisa!
Debaixo das pálpebras
sentirão o alívio do sonho.
Dorme, amor...
Porque estás acordada?
É o bramido do mar?
A súplica das árvores?
Um mau pressentimento?
A sem-vergonha de alguém?
Ou talvez não de alguém,
mas simplesmente a sem-vergonha minha?
Dorme, amor...
Não é possível fazer nada,
mas sabe desde já que não é culpa minha esta culpa.
Perdoa-me - estás a ouvir?
Ama-me - estás a ouvir? -
mesmo que seja só em sonhos,
só em sonhos!
Dorme, amor...
Estamos num mundo
que voa enlouquecido
e ameaça explodir,
e é preciso abraçarmo-nos
para não cairmos dele,
e se tivermos que cair,
vamos cair abraçados.
Dorme, amor...
Não te deixes encher de raiva.
Que o sonho penetre suavemente nos teus olhos
já que é tão difícil dormir neste mundo.
Mas apesar de tudo
- ouves-me, amor? -
dorme...
E o rumor dos ramos,
e o fragor das ondas,
e o cão na corrente
com toda a sua experiência,
e eu com voz muito branda
e logo num murmúrio
e depois em silêncio
dizemos-te ambos: dorme, amor...






ievgueni ievtuchenko
ievtuchenko em lisboa (1967)
dom quixote
1968






02 dezembro 2006

raul brandão (1867-1930)



21 de Novembro


Não me compreendo nem compreendo os outros. Não sei quem sou e vou morrer. Tudo me parece inútil e agarro-me com desespero a um fio de vida, como um náufrago a um pedaço de tábua.

Nem sei o que é a vida. Chamo vida ao espanto. Chamo vida a esta saudade, a esta dor; chamo vida e morte a este cataclismo. É a imensidade e um nada que me absorve; é uma queda imensa e infinita, onde disponho de um único momento.

Talvez o mundo não exista, talvez tudo no mundo sejam expressões da minha própria alma. Faço parte de uma coisa dolorosa, que totalmente desconheço, e que tem nervos ligados aos meus nervos, dor ligada à minha dor, consciência ligada à minha consciência.

Estou até convencido que nenhum destes seres existe. Este fel é o meu fel, este sonho grotesco o meu sonho. Estou convencido que tudo isto são apenas expressões de dor – e mais nada.

Nós não vemos a vida – vemos um instante da vida. Atrás de nós a vida é infinita, adiante de nós a vida é infinita. A primavera está aqui, mas atrás deste ramo em flor houve camadas de primaveras de oiro, imensas primaveras extasiadas, e flores desmedidas por trás desta flor minúscula. O tempo não existe. O que eu chamo a vida é um elo, e o que aí vem um tropel, um sonho, desmedido que há-de realizar-se. E nenhum grito é inútil, para que o sonho vivo ande pelo seu pé. A alma que vai desesperada à procura de Deus, que erra no universo, ensanguentada e dorida, a cada grito se aproxima de Deus. Lá vamos todos a Deus, os vivos e os mortos.

O mundo é um grito. Onde encontrar a harmonia e a calma neste turbilhão infinito e perpétuo, neste movimento atroz? O mundo é um sonho sem um segundo de paz. A dor gera dor num desespero sem limites.

Eu não sou nada. Sou o minuto e a eternidade. Sou os mortos. Não me desligo disto – nem do crime, nem da pedra, nem da voragem. Sou o espanto aos gritos.

O sonho completo é o universo realizado.

Cada vez fujo mais de olhar para dentro de mim mesmo. Sinto-me nas mãos de uma coisa desconforme. Sinto-me nas mãos de uma coisa imensa e cega – de uma tempestade viva.

Não só a sensibilidade é universal – a inteligência é exterior e universal.

O universo é uma vibração. A vida é uma vibração na vibração.

Toda a teoria mecânica do universo é absurda. Daqui a alguns anos todos os sistemas serão ridículos – até o sistema planetário.






raul brandão
húmus
frenesi
2000


29 novembro 2006

post it / l. maltez

sentires...



acordas junto à sombra dos sentires
perdido no movimento azebre,
fulguras da tristura ocasional
de um tempo passado
sem prazer.


suave na sua mudez,
a terra olha-te em silêncio.


escutas a voz do perigo
entre o bem e o mal,
consegue pousar
do lado da luz
no frio que te dá ordens


do coração saltam feridas
devoradas pelo infinito


já nada sentes
embriagado na música inaudível,
expeles do teu corpo uma seiva amarga,
e imploras para renascer
de um ventre sem rosto



aguardas na praia que a maré vaze,
encontro-te...



dou-te a minha mão!






l.maltez


28 novembro 2006

ternura

cruzeiro seixas



Cheguei a casa um pouco mais cedo que de costume. Tirei a ventoinha da cabeça, pus-me à vontade, fui ver se os mamutes estavam a fazer disparates e sentei-me na sala, no velho e confortável sofá que a tia Mizé nos oferecera pelo casamento. Querida tia Mizé! Preparei um gin.
Josela ainda não chegara. Estava atrasada, talvez as compras, quem sabe.
Foi quando ouvi abrir a porta. Fui ver. Josela chegava, empurrando o carrinho antigo que servira para o nosso filho agora com dezoito anos como sabem, e com um bom lugar de Viet qualquer coisa, lá não estou bem certo onde; lugar seguro e de futuro, foi o que me disseram. Bom rapaz, o nosso garoto.
Olhei o carrinho. Trazia um bebé dentro. Josela sorria. Vi o preço. Razoável. Do talho do senhor Esteves. Manias da Josela.
Olhei Josela.
Tinha os olhos brilhantes, havia urna ternura inesperada que a envolvia, uma tristeza distante nas mãos.
— Achas que podemos ficar com ele? — perguntou-me, afirmando.
Concordei. Josela manda.
Arrumei o carrinho.
Era um bebé ainda em muito bom estado. Durou cinco dias até apodrecer, calculem!





mário-henrique leiria
“casos de direito galático / o mundo inquietante de josela (fragmentos)”
ilustrações de cruzeiro seixas
editorial república
1975



24 novembro 2006

amalia bautista



A Vida Responsável


Conduzir mas sem ter um acidente,
comprar massas e desodorizantes
e cortar as unhas às minhas filhas.
Madrugar outra vez e ter cuidado
em não dizer inconveniências,
esmerar-me na prosa de umas folhas
e estou-me nas tintas para elas,
retocar de vermelho cada face.
Lembrar-me da consulta ao pediatra,
responder ao correio, estender roupa,
declarar rendimentos, ler uns livros,
fazer umas chamadas telefónicas.
Bem gostaria de me dar ao luxo
de ter o tempo todo que quisesse
para fazer só coisas esquisitas,
coisas desnecessárias, prescindíveis
e, sobretudo, inúteis e patetas.
Por exemplo, amar-te com loucura.




amalia bautista
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004





21 novembro 2006

antonio gamoneda




Na sua canção havia cordas sem esperança: um som
longínquo de mulheres cegas (mães descalças no pre-
sídio transparente do sal).


Soava a morte e a orvalho; depois, tangia canas
negras: era o cantor das feridas. Sua memória ardia
no país do vento, na brancura dos sanatórios aban-
donados.




livro do frio
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999



20 novembro 2006

edgar morin



SABER PENSAR O SEU PENSAMENTO


Saber ver necessita saber pensar o que se vê. Saber ver implica portanto saber pensar, como saber pensar implica saber ver. Saber pensar não é algo que se obtenha por técnica, receita ou método. Saber pensar não é apenas aplicar a lógica e a verificação aos dados da experiência. Isso supõe também saber organizar os dados da experiência. Precisamos portanto de compreender que regras, que princípios comandam o pensamento que nos permite organizar o real, isto é, seleccionar / privilegiar certos dados e eliminar / subalternizar outros. Precisamos de adivinhar a que pulsões obscuras, a que necessidades do nosso ser, a que idiossincrasia do nosso espírito obedece ou responde o que temos por verdade. Numa palavra, saber pensar significa indissociavelmente saber pensar o seu pensamento. Necessitamos de nos pensar pensando, de nos conhecer conhecendo. Essa é a exigência reflexiva fundamental, que não é tão-só a do filósofo profissional, que não deveria estender-se apenas ao cientista, mas que deve ser a de cada um e de todos.



edgar morin
“as grandes questões do nosso tempo”
trad. adelino dos santos rodrigues
editorial notícias
1994




16 novembro 2006

henry deluy




Esquecer tudo, - à tarde
Quando a luz declina.


*


Depois dizer a verdade.








henry deluyprimeiras sequências
trad. colectiva Mateus, set. out. de 2000
quetzal editores
2002


15 novembro 2006

pictures at an exibition / egon schiele



Egon Schiele (1890-1918)




Four Trees
1917, oil on canvas, Osterriche Galerie, Vienna





Self Portrait With Black Vase
1911, oil on wood, Historiches Museum der Stadt, Wien/Vienna





Agony
1912, Neue Pinakothek, Munich





Self Portrait
1913, pencil, National Museum Stockholm





Death and Girl (Self-portrait with Walli)
1915; Osterreichisches Galerie Wien, Vienna





Sitting Woman With Legs Drawn Up
1917; Narodni Galerie, Prague




13 novembro 2006

um poema de: sylvia plath

a lua e o teixo



Esta é a luz da razão, fria e planetária.
As árvores da razão são negras. A luz é azul.
As ervas descarregam as suas mágoas nos meus pés como se
[eu fosse Deus,
Picando os meus tornozelos e murmurando a sua humildade.
Esfumadas, inebriantes neblinas habitam este lugar
Separado da minha casa por uma fileira de lápides.
Só não consigo ver para onde se vai.

A lua não é nenhuma porta. É um rosto em seu pleno direito,
Branco como os nós dos dedos e terrivelmente transtornado.
Arrasta o mar atrás de si como um delito obscuro; silenciosa
Com a boca em O num esgar de total desespero. Vivo aqui.
Duas vezes aos domingos, os sinos assustam o céu -
Oito línguas enormes a afirmar a Ressurreição.
No final, fazem soar os seus nomes sobriamente.

O teixo aponta para o alto. Tem forma gótica.
Os olhos seguem-no e encontram a lua.
A lua é a minha mãe. Ela não é doce como Maria.
As suas roupas azuis libertam pequenos morcegos e corujas.
Como eu gostaria de acreditar na ternura -
O rosto da efígie, dulcificado pelas velas,
A desviar para mim, em particular, os seus olhos ternos.

Caí muito longe. As nuvens a florescer
Azuis e místicas sobre a face das estrelas.
Dentro da igreja, os santos vão ficar todos azuis,
A pairar com seus pés delicados sobre os bancos frios,
De mãos e rostos rígidos pela santidade.
A lua não vê nada disto. É calva e selvagem.
E a mensagem do teixo é a escuridão - escuridão e silêncio.





sylvia plath
ariel
trad. maria fernanda borges
relógio d´ água
1996




07 novembro 2006

estações

13 )


os que se perderam



que rebentem estradas
sob os pés
dos que se perderam

que nos seus olhos gelados
cresçam fogueiras

*

que este silêncio se curve
como um animal sem voz




gil t. sousa



andrei tarkovsky / porque o destino





Porque o destino seguia-nos o rastro
Como um louco com uma navalha na mão.





Arsenii Tarkovskii
“8 ìcones”
Assírio & Alvim
1987


04 novembro 2006

citações



stig dagerman



(…)

Por vezes, à beira-mar, no perpétuo movimento das águas e no eterno fugir do vento, sinto o desafio que a eternidade me lança. Pergunto-me então o que vem a ser o tempo, e descubro que não passa do consolo que nos resta por não durarmos sempre. Miserável consolo que só os Suíços enriquece...
Noites há, em que, sentado à lareira, no quarto mais resguardado de todos, sinto subitamente a morte cercar-me: no fogo, nos objectos pontiagudos que me rodeiam, no peso do tecto e na massa das paredes; na água, na neve, no calor, no meu sangue. Pergunto-me então o que vem a ser a nossa muito humana sensação de segurança, e percebo que não passa de um consolo para o facto de a morte ser o que há de mais próximo à vida. Pobre consolo, que não cessa de nos recordar o que desejaria fazer-nos esquecer!
Decido encher todas as minhas páginas em branco com as mais belas combinações de palavras que seja capaz de engendrar. E depois, porque quero assegurar-me que a vida não é absurda e não me encontro só sobre a terra, reúno todas num livro e ofereço-o ao mundo. Este, retribui-me com a riqueza, a glória e o silêncio. Mas não sei que fazer com este dinheiro nem que prazer tirar de contribuir para o progresso da literatura, pois só desejo o que jamais obterei — a certeza de que as minhas palavras tocaram o coração do mundo. É então que me pergunto o que vem a ser o meu talento, e descubro que não passa de urna forma de me consolar da solidão. Risível consolo — que apenas me torna cinco vezes mais pesada a solidão.
Nesse animal que, veloz, atravessa a clareira, sou por vezes capaz de ver encarnada a liberdade e ouvir uma voz que me insinua: «Vive com simplicidade, frui do que desejas e não temas as leis»! Excelente conselho. Mas de que se trata senão de uma forma de consolo para o facto da liberdade não existir? Impiedoso consolo — para quem sabe que o Homem levou milhões de anos para não conseguir ser senão um lagarto, podre de indiferença!
Quando, por fim, me apercebo que esta terra é uma vala comum, onde Salomão, Ofélia e Himmler repousam lado a lado, concluo que tanto o crápula como a infeliz têm o mesmo fim que o sábio. Por isso, para uma vida falhada, a morte pode tornar-se numa forma de consolo — e bem atroz, sobretudo para quem na vida queria encontrar forma de vencer a morte.

Não possuo filosofia, em que possa mover-me como o peixe na água ou o pássaro no céu. Tudo em mim é um duelo, uma luta travada a cada minuto da vida entre falsas e verdadeiras formas de consolo. Umas não fazem senão aumentar a impotência e tornar-me mais fundo o desespero, outras são fonte de temporária libertação. Falsas e verdadeiras! Deveria antes dizer verdadeira, pois só existe uma consolação verdadeiramente real: a que me diz que sou um homem livre, um indivíduo inviolável, ser soberano no interior dos seus limites.
Mas a liberdade começa na escravidão e a soberania na dependência. O sinal mais vivo da servidão é o medo de viver. O definitivo sinal de liberdade é o facto de o medo deixar espaço ao gozo tranquilo da independência.
Dir-se-á que preciso de ser dependente para conhecer o gozo de ser livre! É certamente verdade. À luz dos meus actos, percebo que toda a minha vida parece não ter tido por objectivo senão construir o seu próprio infortúnio: sempre me escravizou o que devia tornar-me livre.
Outros homens têm outros mestres. A mim o talento torna-me escravo ao ponto de não ousar em pregá-lo — tal é o medo de o ter perdido. Mais: subjugo-me de tal modo ao meu nome, que mal me atrevo a escrever uma linha, não vá esta manchá-lo. E, quando se instala a depressão, é dela que sou também escravo. O meu maior desejo é retê-la. O meu prazer mais forte, sentir que tudo o que valho residia no que julgo ter perdido: essa capacidade de gerar beleza a partir do que é em mim desespero, desgosto e fraqueza. Com amargo prazer desejo ver ruir o que arquitectei e ver-me, eu também, envolto na neve do esquecimento. Mas quê? A depressão é urna boneca russa, e na última boneca estão a faca, a lâmina de barbear, o veneno, as águas profundas e o salto para um grande abismo. De todos esses instrumentos de morte me torno escravo. Perseguem-me como cães, a não ser que o cão seja apenas eu. Parece-me então ser o suicídio a única prova da liberdade humana.
Porém — não sei ainda de onde nem como — sinto que se aproxima o milagre da libertação. E a eternidade, que há bem pouco me assombrava, testemunha agora este acesso à liberdade: esta descoberta súbita e simples de que ninguém, nenhum poder, nenhum ser humano, tem o direito de me forçar ao ponto de secar em mim o desejo de viver.

Que é do mar se os rios se recusam?

(…)




stig dagerman
a nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer
versão de paula castro e josé daniel ribeiro
fenda edições
1989




30 outubro 2006

post it / m. f. s.

a perfeita canção do soldado



a perfeita canção do soldado arma-se nos olhos dos escondidos
daqueles que cegam à luz do meio-dia

a perfeita canção do soldado soa a marchas de botas apertadas
enche-se de alegre patriotismo

a perfeita canção do soldado faz cair os pés de barro
dos ídolos instalados nos gabinetes

a perfeita canção do soldado soa a marcha fúnebre
com botas brilhantes e apertadas


m.f.s.

25 outubro 2006

um poema de: marguerite yourcenar



Gherardo Perini



«Não irei mais longe, Gherardo.
Não te acompanho mais porque o trabalho urge
e eu sou um homem velho. Sou um homem velho, Gherardo.
Às vezes, quando te entregas mais à ternura,
chegas a chamar-me teu pai. Mas eu não tenho filhos.
Nunca encontrei mulher tão bela como as minhas figuras de pedra,
mulher que ficasse horas imóvel sem falar,
como coisa necessária que não precisa de agir para ser,
e nos faz esquecer que o tempo passa porque está sempre presente.
Mulher que se deixe olhar sem sorrir nem corar
porque compreendeu que a beleza é qualquer coisa de grave.
As mulheres de pedra são mais castas que as outras,
e mais fiéis, porém, são estéreis.
Não há fenda por onde se possa introduzir nelas o prazer,
a morte, ou a semente de uma criança,
e por isso elas são menos frágeis.
Por vezes quebram-se e em cada pedaço de mármore
fica contida a sua beleza inteira, como Deus
que está em todas as coisas,
mas nada de estranho entra nelas que dilate o seu coração.
Os seres imperfeitos agitam-se e acasalam-se para se completarem,
mas as coisas só belas são solitárias como a dor humana.



Gherardo, não tenho filhos.
Eu bem sei que a maioria dos homens não tem propriamente um filho:
têm Tito, ou Caio, ou Pedro, e não é a mesma alegria.
Se eu tivesse um filho,
ele não se havia de parecer com a imagem que eu dele formara
antes de existir. Assim também as estátuas que faço
são diferentes daquelas que comecei por sonhar.
Mas Deus permite-se ser conscientemente criador.
Se fosses meu filho, Gherardo, eu não te amaria mais,
mas não teria que perguntar-me porquê.
Toda a minha vida procurei respostas a perguntas
que talvez não tenham resposta e perscrutei o mármore
como se a verdade se encontrasse no coração das pedras,
e espalhei as cores para pintar muralhas
como se se tratasse de fixar acordes sobre um enorme silêncio.
Tudo se cala, sabes, até a nossa alma —
ou então somos nós que não ouvimos.



Assim, tu partes.
Na minha idade já não se dá importância a uma separação,
mesmo que definitiva. Eu bem sei que os seres que amamos e que nos amam mais
se vão separando insensivelmente de nós a cada momento que passa.
É também deste modo que se vão separando de si próprios.
Estás sentado sobre essa pedra e julgas-te ainda aí,
mas o teu ser, voltado para o futuro, não adere mais ao que foi a tua vida,
e a tua ausência já começou. É certo que compreendo
que tudo isto é ilusão, como o resto, e que o futuro não existe.
Os homens que inventaram o tempo,
inventaram por contraste a eternidade, mas a negação do tempo
é tão vã como ele próprio. Não há nem passado nem futuro
mas apenas uma série de presentes sucessivos,
um caminho perpetuamente destruído e continuado
onde todos vamos avançando.



Estás sentado, Gherardo,
mas os teus pés estão assentes no solo
com a inquietação de quem experimenta o caminho.
Estás vestido com trajes do nosso século,
que hão-de parecer feios ou simplesmente estranhos quando o século
tiver passado pois as vestes não são mais que a caricatura do corpo.
Vejo-te nu. Tenho o dom de ver através das roupas o irradiar do corpo,
que é como os santos vêem as almas, segundo penso.
É um suplício quando são feios,
mas é um outro suplício quando são belos,
dessa beleza frágil que a vida e o tempo atacam por todos os lados
e acabarão por tomar-te,
mas neste momento és dono dela e tua será na abóbada da igreja
onde pintei a tua imagem. Mesmo que um dia
o teu espelho te não mostre mais que um retrato deformado
onde não ouses reconhecer-te, existirá sempre noutro sítio
o reflexo imóvel de ti.
E desse modo imobilizarei a tua alma também.



Tu já não me amas.
Se consentes em ouvir-me durante uma hora
é porque somos sempre indulgentes com aqueles que vamos deixar.
Ligaste-me e agora desligas-me.
Não te censuro, Gherardo.
O amor de alguém é um presente tão inesperado e tão pouco merecido
que devemos espantar-nos que não no-lo retirem mais cedo.
Não estou inquieto por aqueles que ainda não conheces,
ao encontro de quem vais e que porventura te esperam:
aquele que eles vão conhecer será diferente daquele
que eu julguei conhecer e creio amar.
Não se possui ninguém (mesmo os que pecam não o conseguem) e,
sendo a arte a única forma de posse verdadeira,
o que importa é recriar um ser e não prendê-lo.



Gherardo, não te enganes sobre as minhas lágrimas:
vale mais que os que amamos partam quando ainda conseguimos chorá-los.
Se ficasses, talvez a tua presença, ao sobrepor-se-lhe,
enfraquecesse a imagem que me importa conservar dela.
Tal como as tuas vestes não são mais que o invólucro do teu corpo,
assim tu também não és mais para mim
do que o invólucro de um outro que extraí de ti e que te vai sobreviver.



Gherardo, tu és agora mais belo que tu mesmo.
Só se possuem eternamente os amigos de quem nos separamos.»




Marguerite Yourcenar
“O tempo esse grande escultor”
trad. helena vaz da silva
difel 2001

19 outubro 2006

post it / daniel delgado

Coisas de dentro


Os meus delírios,
confissões rimadas
de pessoas mimadas.
Preces ocas, suspiros.

Os meus assédios,
confissões caladas
de pessoas ignoradas.
Monte de sonhos perdidos.

Os meus demónios,
confissões quotidianas
de pessoas esteriotizadas
ultrapassando martírios.

Meus sentimentos doentios,
confissões irritadas
de pessoas maltratadas.
Nenhuma voz, apenas gritos.

E espero para poder falar...




Daniel Delgado

10 outubro 2006

estações

12)





Joan Miró. Dog Barking at the Moon.
1926.Oil on canvas. 73 x 92 cm. The Philadelphia Museum of Art, Philadelphia, PA, USA.





Dog Barking at the Moon, de Juan Mirró




Olhá-la
como um portal de luz por onde passam os sonhos
e chamar-lhe lua

depois
superar o céu até a noite não doer mais
e resolver o enigma da escada
como se cada degrau fosse feito de tempo
e cada minuto tivesse a forma do desejo

e cair na eternidade como o olhar de um cão




gil t. sousa
poemas
2001





26 setembro 2006

do outro lado do mar / chile


Rafael Farías Becerra

"...pues para fascinar mis amantes sedientos,
puros espejos tengo que hacen las cosas bellas:
mis grandes ojos y las eternas estrellas."
La Belleza.
Charles Baudelaire.




las maravillas del estelar

ahora que nos hemos cansado de sentirnos bellos
de admirar nuestro reflejo así
deseando tantas maravillas del estelar
nuestra vida en los reality
bailando a la luz electrodoscópica en el terreno eriazo
que diríamos
un nuevo espleen nos conmueve
a nosotros
los tan dados al show
a las delicadezas del espectáculo
quienes lo dejaríamos todo
por bailar tras el espejo



reinas de los corazones

todos íbamos a ser reinas de los corazones
no importando el precio de las famas
si cualquiera podría ser el escenario
para que nosotros desde abajo
les aplaudiéramos los escombros
les dibujáramos mientras el baile
la silueta de estrellita poblacional
y el beso bajo los reflectores
la única ilusión
de sacarle otra sensación al juego
que no fuera la marginalidad de estos lares




&

Marcos Arcaya Pizarro



cuanto de razón tengo
se me pierde
vengo en ti
una boca
2 bocas
se me parte
los más queridos estos
del suelo en lo oscuro se quedarán
. .......... . y sepultados
que el otro mundo es este
y no se iguala ninguno
al pavimento eterno de su gloria
PORQUE YO ME enserio
y salgo
lloro
también
un poco
. .......... . lloro
pienso y no
sucio soñar de barro
a veces o ceniza
(un nicho helado)
DE MI dentro
TODO HUECO LO GUARDO
lo atesoro casi
me regio
y salgo
pero tanto duele tanto
al pie de mi cama
tanto

el tiempo trepa
de mi cara
salto
PERO trepa

EL ROSTRO MIO/el suyo
mi cara se me va
pienso y no
lo atesoro casi LA
una canción
mi ama
mi cholita
. .......... . MI TRISTE

CÁNTAME
en lengua mestiza
. .......... . de muy del sur
así como Chile
tan profundo rueda por mí
el amor que no existe
canta. .......... . me
nada existe
dentro
estas torres
su mugre
tan tan yo
ESTA MUGRE
tantas cosas amé
se esclarece
me abre
mi mugre mi sucio yo
el sentido sin
MI ÁNGEL
. .......... . MI MUY SUCIA
bendito corazón llagado suyo en cada pecho sí
los huesos soldados por trapos y las cursilerías
lágrimas nuestros llantos en amargo se les nombrará
un día milagros de santos pero no
Por estos halos tenues los
dientes podridos
libaciones de sangre por su costra
en las manos
de fondo por lo alto las montañas insanas
donde veo colores
mil desierto siempre
de mi cara

19 setembro 2006

do mesmo lado do céu




1/3 dos leitores ou visitantes desta página são oriundos da América Latina: Brasil, Argentina, Chile, Peru, Uruguay, México, Venezuela, Equador, Colômbia… Têm-me escrito, demonstrando apreço pelo que aqui se tem publicado, enviado textos, partilhando experiências de escrita.

Hoje apetece-me saudar toda essa gente do lado de lá do mar, porém do mesmo lado do céu.





12 setembro 2006

post it / m. f. s.



conta-me histórias de terror
das que arrepiam as articulações
histórias às cores fantasmagóricas
com suaves ectoplasmas
com muito ketchup
negrumes pelos cantos
e abismos

conta-me histórias de plástico
americano com perucas perfuradas
babas luminescentes
suspensas nas teias
pré-fabricadas
vítimas deliciadas
carrascos amedrontados

conta-me a versão revista
e ampliada da menina de capuz
sanguinolento
dentes de loba
adolescente
vestidinho de boneca assassina
diz-me como foi
que ela conseguiu
escapar à feroz avozinha

conta-me tudo
com muitos pormenores
não te enganes na sequência
que te farei repetir tudo
até o arrepio voltar




m.f.s.



11 setembro 2006

new york, 11 de setembro de 2001




O que mais assusta nesta data é que, muito provavelmente, ela ficará na História como a fronteira entre um tempo em que o mundo ia mudando pela força do pensamento dos homens e um outro bem mais obscuro em que os homens mudam o pensamento pela força do mundo.



gil t. sousa

05 agosto 2006

um poema de: rené char

fastos




O Verão cantava sobre a sua rocha preferida
quando tu me apareceste,

o Verão cantava afastado de nós
que éramos silêncio,
simpatia,
liberdade triste,
mar
mais ainda do que o mar,
cuja enorme comporta azul
brincava aos nossos pés.

O Verão cantava
e o teu coração nadava longe dele.
Eu beijava a tua coragem,
entendia a tua perturbação.

Estrada através do absoluto das vagas
em direcção a esses altos picos de escuma
onde navegam virtudes assassinas
para as mãos que seguram as nossas casas.

Não éramos crédulos.
Éramos rodeados.

Os anos passaram.
As tempestades morreram.
O mundo partiu.

Sofria
por sentir que era o teu coração que já não me conhecia.

Eu amava-te.
Na minha ausência de rosto e no meu vazio de felicidade.

Eu amava-te,
mudando em tudo,
fiel a ti.




rené char
furor e mistério
trad. margarida vale de gato
relógio de água
2000



24 julho 2006

reflexões





Guerra





O dedo tremente de uma mulher
Vai percorrendo a lista das baixas
No entardecer do primeiro dia de neve.

A casa é fria e a lista longa.

Todos os nossos nomes lá estão.







Charles Simic
Traduzido por José Lima
in Diversos nr. 2

23 julho 2006

pictures at an exibition / edgar degas



Dancers at the Barre, ca. 1873

Edgar Degas (1834–1917)
Oil thinned with turpentine on prepared green paper; 472 x 625 mm
The Trustees of the British Museum (2005).

19 julho 2006

post it / anderson henrique de sousa


Quase um dia



Um dia sem vento
é quase

um dia

Chega mesmo
a dar agonia
ver as nuvens

paradas

no céu


Os prédios nem se movem.
Só o som do elevador
de

cima
para
baixo

As nuvens estão

paradas


quase
um dia






anderson henrique de sousa
São Paulo



14 julho 2006

citações


Calor


Tarde turquesa
Quarenta graus
Talvez porque você não esteja
tudo lateja
Tarde sem nuvem
Cincoenta graus
Talvez por sua ausência
tudo derreta
Noite sem ninguém
Nada se mexe
Eu sonho nosso amor a sério
E você em outro hemisfério
Enquanto tudo derrete
Enquanto tudo derrete
Enquanto tudo parece
Derreter




Adriana Calcanhoto



04 julho 2006

estações

11)



último degrau



assim te levaria
pelo último degrau da lua

e no definitivo clarão
do vinho que me queimasse

deixaria ir
quase tudo o que morria




gil t. sousa
poemas
2001




29 junho 2006

post it / m. f. s.

candelabros



candelabros minha flor de laranjeira

sussurrava o sussurrante ao ouvido esquecido

candelabros ofuscantes na paisagem futurista dos teus sonhos

entre leitos alvos espalhados na planície

luzes incolores nos olhos das crianças adormecidas

candelabros meu amor de fim de mundo



m.f.s.


22 junho 2006

um poema de: juan gelman

chuva


hoje chove muito, muito,
dir-se-ia que estão a lavar o mundo.
o meu vizinho do lado vê a chuva
e pensa em escrever uma carta de amor /
uma carta à mulher com quem vive
e lhe faz a comida e lava a roupa e faz amor com ele
e se parece com a sua sombra /
o meu vizinho nunca diz palavras de amor à mulher /
entra em casa pela janela e não pela porta /
por uma porta entra-se em muitos sítios /
no trabalho, no quartel, na prisão,
em todos os edifícios do mundo /
mas não no mundo /
nem numa mulher / nem na alma /
quer dizer / nessa caixa ou nave ou chuva que chamamos assim /
como hoje / que chove muito /
e me custa escrever a palavra amor /
porque o amor é uma coisa e a palavra amor é outra coisa /
e só a alma sabe onde as duas se encontram /
e quando / e como /
mas que pode a alma explicar /

por isso o meu vizinho tem tempestades na boca /
palavras que naufragam /
palavras que não sabem que há sol porque nascem e morrem na
mesma noite em que ele amou /
e deixam cartas no pensamento que ele nunca escreverá /
como o silêncio que existe entre duas rosas /
ou como eu / que escrevo palavras para regressar
ao meu vizinho que vê a chuva /
e à chuva /
ao meu coração desterrado /



juan gelman
“no avesso do mundo”
trad. colectiva da casa de mateus
revista por ana luísa amaral
quetzal
1998




20 junho 2006

citações

“Quinta, 22 de Novembro

(...) Fui jantar com o Roger [ Fitzroy Street] e encontrei-me com o Clive. Sentámo-nos à volta da mesa quadrada e baixa, coberta com uma bandana, e comemos de travessas, cada uma com uma espécie diferente de feijão ou alface: comida deliciosa, para variar. Bebemos vinho, e a terminar comemos um queijo branco e macio, com açúcar. Depois, pairando esplendidamente acima de personalidades, falou-se de literatura e de estética.
“Sabe, Clive, descobri um pouco mais acerca do que é essencial a qualquer arte: sabe, a arte é representativa. Diz-se a palavra árvore e vê-se uma árvore. Muito bem. Ora todas as palavras têm uma aura. A poesia combina as diversas auras numa sequência…” Foi mais ou menos assim. Eu disse que se pode, e é o que se faz realmente, escrever com frases, e não apenas com palavras; o que não fez avançar muito a discussão. O Roger perguntou-me se eu baseava a minha escrita numa textura ou numa estrutura; associei estrutura com enredo e portanto disse: “textura”. Depois discutimos o significado de estrutura e de textura na pintura e na literatura. Depois discutimos Shakespeare, e o Roger disse que a ele Giotto o entusiasmava precisamente da mesma maneira. Isto continuou até que me forcei a sair, precisamente às dez. E discutiu-se também poesia chinesa; o Clive disse que era demasiado longínqua para se poder compreender. O Roger comparou a poesia com as pinturas. Gostei muito de tudo aquilo (isto é, gostei da conversa). Há sem dúvida muita coisa que é perfeitamente vaga, e que não é para se levar a sério, mas esta atmosfera faz urna pessoa ter ideias e, em vez de se ter de as abreviar ou de as desenvolver em muitíssimas palavras, pode-se simplesmente dizê-las que há logo quem as entenda - ou melhor, quem discorde. O nosso velho Roger tem uma visão deprimente, não da nossa vida, mas do futuro do mundo; mas creio ter detectado a influência de Trotter e das massas, de modo que não lhe dei crédito . Mas quando saí para Charlotte Street, onde se deu o crime do Bloomsbury há uma ou duas semanas, e vi uma multidão atropelando-se na estrada e ouvi mulheres a insultarem-se e outras que, atraídas pelo barulho, acorriam, deliciadas — toda esta sordidez me fez pensar que ele era bem capaz de ter razão.
Hoje o dia tem estado perfeitamente quente e muito sereno, e nós só tivemos tempo, depois de acabar de imprimir uma página, de chegar até ao rio e ver tudo reflectido perfeitamente a direito na água. O telhado vermelho de uma casa tinha a sua nuvenzinha de vermelho no rio – as luzes acesas da ponte desenhavam longas listas em amarelo – muito tranquilo, e como se fosse o coração do Inverno. “


Virgínia Woolf,
Diário primeiro volume 1915-1926, trad. Maria José Jorge, Bertrand Editora, 1985



19 junho 2006

pictures at an exibition / peter blume

Photobucket - Video and Image Hosting

Peter Blume
(American, born Russia, 1906–1992)
South of Scranton
1931

George A. Hearn Fund, 1942 (42.155)


15 junho 2006

estações

8)


“Duas horas da manhã. Os ratos procuram nos caixotes os restos do dia morto: a cidade pertence aos fantasmas, aos assassinos, aos sonâmbulos. Onde estás tu, em que leito, em que sonho? Se te encontrasse, tu passarias sem me ver pois não somos vistos pelos nossos sonhos. Não tenho fome: esta noite não consigo digerir a minha vida. Estou cansada: caminhei toda a noite para semear a tua recordação. Não tenho sono: nem sequer tenho apetite da morte. Sentada num banco, embrutecida apesar de tudo pela aproximação da manhã, deixo de me lembrar que te procuro esquecer. Fecho os olhos... os ladrões não querem senão os nossos anéis, os amantes a carne, os pregadores as nossas almas, os assassinos a vida. Podem tirar-me a minha: desafio-os a nada lhe mudar. Inclino a cabeça para ouvir por cima de mim o remexer das folhas... Estou num bosque, num campo... É a hora em que o Tempo se disfarça de varredor e Deus talvez em trapeiro. Ele avarento, ele teimoso, ele que não consente que se perca uma pérola nos montes de cascas de ostras às portas das tabernas. Pai nosso que estais no céu... Verei alguma vez vir sentar-se a meu lado um velho de sobretudo castanho, com os pés enlameados por ter tido, para me alcançar, de atravessar sabe Deus que rio? Ele deixar-se-ia cair no banco, tendo na mão fechada um presente muito precioso que seria o bastante para tudo mudar. Abriria os dedos lentamente, um após outro, muito prudentemente, por que aquilo foge... Que seguraria ele? Uma ave, um germe, uma faca, uma chave para abrir a lata de conserva do coração?”

Marguerite Yourcenar, fogos, trad. Maria da Graça Morais Sarmento, Difel, 1995

08 junho 2006

post it / oswaldo roses


DOS POEMAS HEREJES


"Sólo la dulzura puede estar en la herejía,
en la rebeldía del amor frente a todo"

O. Roses




I

De este polvo que te ofrezco habrá un antes y un después,
irremediablemente tú dirás "antes" y, luego, "después",
¿no crees?;
porque el amor ha nacido en la carne
y para ella sencillamente

(si sufres, sufre ella y no Dios;
si mueres, muere ella y no Dios;
si se condena, es condenada ella y no Dios),

¡nada hay más sagrado que la carne que ama!




II

Te quiero un poco sí del cielo,
te quiero más palabra perdidamente profunda -más-,
te quiero con una cierta valentía del crepúsculo atronador,
te quiero niña,
te quiero a las cinco del invierno,
te quiero por cara entierraprejuicios,
te quiero ante los guerreros de tus pezones,
te quiero a silbos que te mecen,
te quiero perra y flor,
te quiero un poco azul y canibalesco.







oswaldo roses



06 junho 2006

post it / anderson henrique de sousa


o caminho do bem



Tantas estradas retas
que vão dar no céu
e o caminho sinuoso
é o que me chama,
com seus buracos, pedras
e ausência de cruzes.

Estradas que não se cruzam
nem se sobrepõem.

Se sigo o caminho pior
que só faz mal a mim
e a mais ninguém
sou cobrado pela boca do mundo
que me fez chorar
me fez querer
roubou minha vida
meus sonhos retém
e que me aponta a estrada reta...
o caminho do bem.




anderson henrique de sousa



31 maio 2006

pictures at an exibition / j. m. w. turner

Photobucket - Video and Image Hosting


J.M.W. Turner
Sunrise with Sea Monsters
c. 1845
oil on canvas
91.5 x 122 cm.
Tate Gallery, London

29 maio 2006

post it / l. maltez




o dia chegou puro.
os olhares falavam num silêncio
onde as palavras tinham todas um nome
e a eternidade se fechava sobre um corpo
parado nas águas, entre os espaços
para assistirem ao nascimento das árvores

o grito do verão ressoava entre formas mudas,
delicadas, impregnadas de delírios imaginários.
alguém parte o silêncio e o transforma
em sons vergados, sensíveis às palavras vivas,
atrás fica uma vida, remexida desabaladamente
numa leveza, estrangulada entre dedos

olhares bailam enfeitiçados sobre as áscuas...

murmuram ao longe, frases ríspidas e frias
o vento arrasta soprando as vozes em pedaços,
agarrando a vida, que deseja invencível
lento, leve e moroso deixa respirar o dia.
mergulha na alegria suplicante da voz
onde ardem, na alma, chamas de desejo
assumido num jogo de amor único

escapa-se o pensamento, afunda-se
dentro da paixão voraz,
espelhada no sorriso dum peito aberto
o fio liga a veia, no abraço da morte
triunfante, a festa tornou-se imortal,
sufoca de júbilo,
entre palavras que passam a correr

o momento, amadurece na terra
cativo do nome que persegue...




l. maltez

24 maio 2006

estações

7)


Alice Loureiro, 2001




em acrílico forte


não sei
a que cidade cheguei

lembro-me de ter vinte anos
e cegar

perdi
o que nenhum homem sabia perder

e alguém me disse:
- desenha a tua morte

e eu peguei nos meus olhos
e fiz este silêncio negro

porque os meus olhos
eram negros

e neles é que eu guardava
a vida e a morte


foi há muito tempo
pois sou um homem muito velho

sou tão velho
como a distância do caminho que percorri

lembro-me que fui
que fui, como o sangue vai numa veia

até ao coração
do nada

até sofrer a eternidade
como uma pedra ou um planeta

fui na gota de mim
ao oceano de mim

e agora cheguei
sem saber onde cheguei


estou no mais abstracto
de um ser

estou na minha alma
ou no meu sonho

estou na essência
do que faz enlouquecer

sinto-o na cor forte
que me devolve os olhos

no estranho calor
que me concede humanidade

não sei
a que mundo cheguei

sou um velho
que ensaia o seu olhar

e há esta cidade estranha
onde não corre o vento

onde nenhum céu vigia
nenhum horizonte define


estou sentado
num prado de aço

e nenhuma estrada
foi escrita

nenhum rio
foi pintado

nenhum ser
foi dito


sou um velho
e ensaio o meu olhar

exerço-o no invisível
que precede as coisas

que está antes do objecto
antes do ser

e tenho nas mãos
a ciência dos gestos

tenho a Arte
sou o talento da vida

por isso
gota a gota

dou-me
um mar

dou-me
os homens e as mulheres

e dou-me em cada um
a voz

todas as vozes
até ao esplendor do grito


e nesse rumor
nesse quase cantar

é que oiço o nome
do que me chama

não sei
que cidade me espera

sou um velho
sou um pássaro cego

que voa adormecido
os seus vinte anos






gil t. sousa
poemas
2001



20 maio 2006

um poema de: mário cesariny



do capítulo da devolução



Hoje venho dizer-te que morreste e que velo o teu corpo no meu
leito, um corpo estranho e surdo um corpo incompreensível

aquele desespero que deixou de ter forças para erguer os portais do
outro reino tristeza de menino a quem tiraram tudo, até
a tinta e as flores e o prazer de gritar

esse (foi visto) deve subsistir porque é a tua maneira de tomar banho
no cosmos, olhar o cosmos como os que ainda podem
interrogar as ondas e morrer

mas tu ainda não sabes a que ponto morreste; vais até à janela, aspiras
com cuidado o oxigénio que o espaço te oferece, apontas
rindo a meiga criatura que pela rua arrasta a sua condição
de animal fulminado

depois olhas para mim, olhas as tuas mãos, e elas ambas, tão claras,
tão seguras, são as mãos de um soldado a arder em febre,
aves a percorrer o seu novo deserto

mas tu sabes, tu vistes, e mais do que eu; a mão do homem é doce e
iluminada como a noite como um rasto de fumo sobre
os hospitais

tivemos uma história mas a história foi-se, em fileiras angélicas e
gratas, a fazer a manhã de outras paragens; outra sombra,
outros olhos semelhantes

noutro leito nas nuvens deito os teus cabelos, o teu cansaço e a
minha miséria, os teus braços e os meus, altos como
cidades, altos como flores

parou o automóvel, lá em baixo, e eu não tenho mais que descer as
escadas, fechar ainda a porta do teu quarto, atravessar de
um pulo a minha própria vida

agora posso sonhar até deixar de te ver

belo rio sem lágrimas




mário cesariny
pena capital
assírio & alvim
1982




13 maio 2006

reflexões / os modos das modas culturais


Mimmo Rotella, Pepsi, 1979, Serigraph


OS MODOS DAS MODAS CULTURAIS


Les femmes nuiles suivent la mode,
les prétentieuses l’exagèrent, mais
les femmes de goút pactisent agréa-
blement avec elle.

Marquise du Châtelet



O jogo nacional dos italianos cultos compõe-se de três lances, jogados pelo doutor Branco contra o doutor Preto (para maiores esclarecimentos sobre a dinâmica dos «jogos» veja-se Eric Berne, A que Jogo Jogamos; compreender-se-á mais adiante porque me apresso a citar uma fonte de inspiração: senão seria submetido ao segundo lance do leitor Branco como autor Preto)

Primeiro lance.
Preto: «Gente daquela deviam matá-la! »
Branco: «O provincianismo italiano do costume. Na Inglaterra, há pelo menos dez anos que o homicídio foi demonstrado inútil. Se lesses...»

Segundo lance.
Preto: «Pensei melhor. Acho que não se deve matar nenhum ser humano.»
Branco: «Não me parece grande ideia. Já Gandhi disse isso.»

Terceiro lance:
Preto: «Bem, acho que Gandhi tinha razão. »
Branco: «Já sabia. Agora temos a moda do pacifismo! »

A fórmula é variável até ao infinito. 1) As crianças não deviam ler bandas desenhadas. Enganas-te, se te mantivesses ao corrente das investigações sociológicas americanas... 2) Bem, eu também as li e não as acho mal. Não me parece grande descoberta: há quarenta anos Gilberto Seldes em Seven Lively Arts... 3) Bem, estou de acordo com Seldes... Já sabia: agora temos a moda da banda desenhada!

Ou então: 1) Nos Noivos há poucos rasgos líricos refreados por uma estrutura impoética. Enganas-te: se lesses os estudos americanos sobre as estruturas narrativas... 2) Pensei melhor: a intriga também tem um valor poético. Que descoberta: já Aristóteles sabia isso. 3) Bem, sabes que tinha razão? Já sabia: agora são todos aristotélicos.

O jogo que propus não é fictício. Se há uma coisa que impressiona o orador estrangeiro num nosso círculo cultural é a objecção de que aquilo que ele está a dizer já o tinha dito mais alguém. Em geral, o estrangeiro não consegue compreender porque é que deve queixar-se O que não sabe é que, logo que se tenha ido embora, será acusado de conformismo quem se achar de acordo com as suas opiniões. Após três tentativas, o seu fã italiano não poderá citá-lo mais.

Do jogo não há saída, pois que se rege por três princípios lógico-antropológicos indiscutíveis, que são: 1) por cada afirmação feita num lugar pode-se encontrar uma contrária feita em precedência noutro lugar; 2) por cada afirmação feita numa dada época existe um fragmento dos pré-socráticos que a antecipa; 3) toda a afirmação de consenso com uma tese, se expressa por várias pessoas, toma as opiniões dessas pessoas definíveis como «afins» ou «conformes».

O jogo nacional que há pouco definimos torna os italianos particularmente sensíveis àquele perigo comummente indicado como «moda cultural». Ansiosos de actualização e severos para com aqueles que não estão igualmente actualizados, os italianos tendem a considerar parasitária toda a ideia proveniente de operações de actualização alheia e condenar a actualização — auspiciada — como moda. Pois que a ânsia de actualização os expõe ao risco da moda, a severidade para com a actualização alheia age como correctivo e faz com que as actualizações sejam rápidas e transitórias, isto é, «modas» precisamente. Em consequência, dificilmente se criam correntes e movimentos culturais, porque os Brancos velam pelos Pretos e estimulam a alternância das suas escolhas, tornando-se cada Branco por sua vez o Preto de qualquer outro que foi Preto por sua vez. A ânsia de actualização unida ao temor da moda neutraliza assim a actualização e encoraja a moda.

Esta situação teria urna sua funambólica substancialidade, e uma graça não ignóbil de ballet permanente da inteligência crítica, se o desenvolvimento dos meios de massa não tivesse introduzido um novo elemento no jogo: a presença dos italianos que seguem o futebol.

Estimulados pela rápida circulação divulgadora das revistas ilustradas e dos quotidianos, os italianos interessados no futebol vêm ao conhecimento do jogo jogado pela upper class. Deste apanham só algumas e não todas as deixas, de modo que o ciclo ignorância-informação-consenso-moda-repúdio se cumpre neles apenas por metade. Num certo sentido entram em jogo só no lance número três, quando o jogador Preto concorda com uma tese dominante expressa por outros, e fixam-se sobre a descoberta perdendo de vista o facto de o mesmo jogador, batido pelo Branco, abandonar repentinamente a tese e jogar outro desafio. Em consequência, nas classes sujeitas a moda dura mais tempo (como uso linguístico, recurso a argumentos tópicos, tiques verbais) do que acontece nas classes hegemónicas (sendo sabido que as subdivisões entre classe hegemónica e proletariado seguem aqui linhas de demarcação que não têm necessariamente atinência à realidade económica).

Eis então porque pode ser interessante seguir, ao longo do arco de um decénio, o nascer, o permanecer, o gangrenar de uma série de modas culturais. A sua permanência é testemunhada por vezos, citações, aberrações jornalísticas de vário género; o seu fim testemunha a volubilidade dos jogadores cultos, uma nossa dolorosa incapacidade de fazer germinar sugestões e ideias, linhas de investigação, temáticas, problemas.

De particular interesse será, pois, seguir esta aventura, como se está fazendo, ao longo de um decénio que foi (para usar a fórmula já célebre de Arbasino) o da excursão a Chiasso. Uma cultura italiana provinciana que durante o vinténio se tinha consolado com a sua própria timidez, acusando dela a ditadura que impedia de saber aquilo que acontecia algures (e acrescentamos: não era sequer necessário chegar a Chiasso para saber o que se publicava pelo mundo fora; Gramsci da prisão conseguia ler bastante), nos primeiros dez anos da libertação continua a cultivar as suas próprias culpáveis obscuridades: mas, enquanto sobem no horizonte os anos 60, de repente, entorna o caldo da actualização, e com ele empanturra os próprios filhos, das colunas das páginas culturais, com os chumbos das edições hard cover, nos quiosques pupulantes de paperbacks. As descobertas fazem-se excitação, a excitação hábito linguístico, o hábito linguístico tique, os tiques despropósitos.

O sombrio episódio da palavra «alienação» serve para demonstrar o que se queria: um termo venerável, uma realidade terrível, um dado cultural que os estudiosos manobram por sua conta sem traumas de repente torna-se moeda corrente. O uso, que desenvolve o órgão, enfraquece porém os termos. Daquele que está em exame fez-se desbarato, e foi bem que alguém denunciasse o seu excesso. Mas o temor do excesso fechou a boca até a quem podia falar com calma e consciência. Conheço um estudante de filosofia que há alguns anos estava a trabalhar numa tese sobre o conceito de alienação em Marx e que, entre 1961 e 1962 foi obrigado a mudar o título à sua investigação para poder ser tomado a sério. Mas noutros casos alguns mudaram decididamente, não só o título, o assunto. O que é triste.

Não sei se conseguiremos corrigir-nos. Eis um episódio que me sucede enquanto revejo as provas deste texto.

Conversa descontraída com um amigo que não vejo há muito tempo, agora professor numa pequena universidade de província, absorvido em problemas de filologia clássica mas atento aos acontecimentos culturais «na moda» — com distanciação, naturalmente, uma ponta de ironia, mas sempre com tensão intelectual. Conto-lhe que me encontrei na América com Jakobson. Sorri: «Tarde de mais. Precisamente agora que o estão a destruir...» — «Quem é que o está a destruir?» — «Ora, todos. Passou de moda, não?»

Bem, Jakobson nasce no século passado. Participa no círculo de Moscovo, passa através da revolução, chega a Praga, vive os anos 30, sobrevive ao nazismo, inicia a aventura americana, sobrevive à guerra, defronta-se com a nova geração estruturalista e é aclamado mestre, sobrevive aos mais jovens da nova geração, conquista os mercados culturais que o ignoravam, sobrevive aos seus setenta anos já feitos, sobrevive às novas escolas de semiótica eslavas, francesas e americanas, de que permanece um leader, sai de cada experiência com os reconhecimentos unânimes da cultura internacional, cometerá erros — decerto — mas sobrevive aos seus erros... Ai de mim, citado em Itália em 64, lido em 65, traduzido em 66, por volta do declinar de 67 não sobrevive à erosão da inteligência italiana. Quod nonfecerunt barbari, etc. Três anos de notoriedade em Itália espapaçam-no. Para crer ainda na validade das suas páginas é preciso ser-se muito jovem, muito ingénuo, muito retirado ou muito emigrado. Agora tratar-se-á de fazer envelhecer o mais rapidamente possível Chomsky, possivelmente antes que seja traduzido (se se jogar bem, o golpe surte efeito, a tempo). São empresas que dão trabalho, mas depois obtém-se a satisfação.

Não é preciso ser uma vestal do saber para reconhecer que o nascer e o difundir de uma moda cultural semeiam incompreensões, confusões, usos ilegítimos. Deploramos as modas culturais. Quem quer que tenha enfrentado seriamente um assunto que depois se tomou moda advertiu o mal-estar proveniente do facto de que qualquer palavra que ele tivesse usado já não seria interpretada segundo o contexto em que aparecia, mas agitada como pendão, etiqueta, sinal de trânsito.

É absoluta e tristemente verdade que hoje nem sequer um cientista das construções pode falar de estruturas sem passar por estruturalista à la page. E, todavia, na indignação contra as modas há qualquer coisa de arrogante e imodesto (lance três do jogo proposto), tão prejudicial como a moda.

As «modas» não nascem quando se tem uma cultura rigorosamente de classe ou rigorosamente especializada. Uma cultura de classe permite que temas e problemas circulem a um nível inatingível pelos demais: os gostos do duque de Berry não são moda, quanto mais não seja porque se resumem a um exemplar único manuscrito; ninguém pensará em estampar as imagens dos meses em lenços para utentes de mini-saia.

Uma cultura especializada defende-se pela sua impenetrabilidade. A palavra «relatividade» pode ter provocado uma certa voga, mas as equações de Maxwell não.

O problema da moda nasce então quando, por várias razões, o dado cultural viaja do vértice para a base por obra de técnicas escolares mais difusas (entendendo por estas qualquer técnica divulgadora, do cartaz ao semanário e à televisão). A divulgação recruta novos utentes para a cultura, para os encaminhar para a especialização, mas paga este recrutamento com o desperdício, com a consumpção: os termos e os conceitos que põe em círculo passam por demasiadas mãos para poderem voltar — ao cume da pirâmide de que partiram — íntegros como dantes.

Contemporaneamente, o excesso de especialização impõe uma tentativa de interdisciplinariedade. Interdisciplinariedade significa contacto e compreensão entre homens que trabalham em diversos sectores de especialização. O contacto exerce-se de dois modos: antes de mais, o técnico de um sector deve esclarecer o técnico de outro sobre o sentido dos seus discursos e os limites do seu universo de discurso; em segundo lugar, ambos devem procurar traduzir os elementos válidos no seu próprio universo de discurso em termos assimiláveis pelo universo de discurso alheio. Neste trabalho de extravasamento (em que toda uma cultura colabora) deita-se muito líquido ao chão. As tentativas de tradução geram metáforas apressadas, mal-entendidos, corridas forçadas à actualização aparente. Como para a divulgação do cume da pirâmide na base, o extravasar de sector para sector de igual nível produz inflação.

Mas, se isto é verdade, as modas culturais são a consequência inevitável de uma dinamização das culturas. Na medida em que é vital, tendendo a uma revisão e comunicação contínua entre os seus vários níveis, uma cultura produz uma moda para cada um dos aspectos em que se expõe. E não é que a moda se forme como borra, resíduo, franja externa ao processo cultural autêntico: constitui ao mesmo tempo o adubo, o terreno adubado. Pois que entrega e extravasar de saber não acontecem segundo modalidades de pureza absoluta, quem apreende ou traduz em termos próprios a aprendizagem alheia muitas vezes passa antes de mais através do território da moda cultural, pressentindo um problema de forma aberrante antes de o captar de modo exacto; a moda cultural e é assim essencial ao processo de uma cultura, de modo que, muitas vezes, só através do apelo da moda uma cultura recruta os seus leaders futuros.

Portanto, diante das modas que gera, uma cultura não deve colocar a si própria tanto o problema de as reprimir como o de as controlar. O trabalho de uma cultura consiste em produzir tanto saber especializado como saber espontâneo e difuso; e — ao criticar os excessos do saber espontâneo — não só ao reprimi-lo, mas ao fazer brotar dele conexões, ocasiões, outro saber especializado, num movimento mais ou menos ordenado em que o mal-entendido muitas vezes se toma serendipity. De uma coisa podemos estar certos, porém: uma cultura que não gere modas é uma cultura estática. Não houve e não há modas na cultura Hopi ou na cultura Aloresa. Porque não há processo. A moda cultural é o acne juvenil do processo cultural. Quando é reprimida demasiado violentamente, acelera-se simplesmente o advento de uma nova moda. E então a moda cultural como modelo permanente torna-se o aspecto mais visível dessa cultura, que se faz cultura das Modas Alternativas. Este é o nosso problema de hoje. Não devemos preocupar-nos porque existem modas culturais, mas porque são superadas depressa de mais.

A cultura francesa, que é mais madura do que a nossa, suporta perfeitamente a moda estruturalista há dez anos e não se envergonha disso, embora tenha consciência dos seus excessos. Aquilo que é preocupante, na cultura italiana, não são os milhares de imbecis que enchem a boca com a palavra «estrutura» nos casos mais imotivados, mas a consciência que destes imbecis se dará cabo o mais cedo possível com demasiado rigor. Subestimar a função bactérica (em sentido botânico) dos imbecis é sinal de imaturidade cultural.

Por outro lado, se uma cultura que não gera modas é uma cultura estática, uma cultura que reprime as modas é uma cultura reaccionária: consistindo o primeiro lance do conservador em carimbar como moda a novidade. Aristófanes com o socratismo, Cícero com os cantores Euphorionis, e assim por diante até às indignações dos homenzinhos selváticos de papiniana e giuliottiana memória.

Contanto que seja longa, uma moda restitui o rigor que tirou, sob outra forma. O perigo é quando é breve.

1967




Viagem na irrealidade quotidiana
Umberto Eco
Trad. Maria Celeste Morais Pinto
Difel
1993