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10 novembro 2023

carlos edmundo ory / os meus mortos

 




 
Se perguntas por meu pai
(que se chamava Eduardo)
se perguntas por meu pai
direi que está deitado
 
Se perguntas por meu avô
(que se chamava Nicolau)
se perguntas por meu avô
direi que está dormindo
 
E se morre minha mãe
e se minha avó morre
não me perguntes que fazem
direi que estão sonhando
 
 
carlos edmundo de ory
doze nós numa corda
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & Alvim
1997



04 novembro 2021

carlos edmundo ory / 10 coisas a pensar em anacha

 
 
1
Brancos são meus pensamentos
Este é o primeiro poema que
te escrevo Anacha ou melhor
em minha língua tu navegas
Com a boca fechada escrevo
muito quieto uma maçã triste
Tinha uma rosa a esperar-te
Vejo cair suas pétalas ao chão
Não as apanho perfumam o meu quarto
E estou sozinho como um louco
 
2
As flores aquecem-me
     Anacha tenho frio
A poesia aquece-me
     Anacha teho frio
A solidão aquece-me
     Tenho fogo Anacha
 
3
O que é um poeta? Ninguém o sabe
Palavras que mordem somos cães
raivosos de tanta doçura
Li-tai-po não me ouve Vem tu
 
4
Minha cabana é formosa
Conhece os meus cantos magoados
E o silêncio sorri-me
É formosa a minha cabana
 
5
Sou chuva de beleza
que gota a gota cai sobre o abismo
Sou o Adónis do sofrimento
Meu coração não é deste mundo
E ninguém ama as minhas chagas
 
6
Não se tape nunca a boca à dor
Nada se perde ao sofrer-se
A vida é uma porta terrível
deixa-a sempre aberta
 
7
A noite é um quarto escurecido pelos amantes
disse William Carlos Williams
Quantas vezes senti a escuridão
dentro de uns cabelos?
 
8
Falar a uma mulher que nos ama
de outra mulher que amamos
não se pode fazer neste mundo
Mas quem tem a culpa?
Eu calo-me neve gelada
 
9
A religião da linguagem
As palavras são estrelas
Quem me escuta quando falo?
Ninguém a não ser o vento negro
 
10
Lendo Esquilo na minha infância
depois duas ou três grandes vozes
Oh Cassandra oh Zaratustra
Ouvir-se-ão palavras ou silêncio
A dor é a única fonte
 
 
 
 
carlos edmundo ory
antologia da poesia espanhola contemporânea
trad. de josé bento
assírio & alvim
1985
 




30 junho 2019

carlos edmundo ory / elegia da minha mão



Olho a minha mão: é antiga
como uma planta viva
como uma gota última
de mármore
Olho a minha própria mão distribuída
pelos sítios mais tristes
… nas ocas madeiras do olvido
mão que um pouco de poalha de primeva
luz secou
Minha mão como uma
decepada mão sobre a terra
como uma obscura mão
de ninguém… de outro homem
não minha… de um louco
que a abandonou naquela mesa
… de um morto bem morto
e a quem falta a mão… ou de um homem muito novo
que a deixou esquecida sobre um corpo
de mulher



carlos edmundo de ory
doze nós numa corda
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & alvim
1997







13 março 2019

carlos edmundo ory / saber estar de joelhos




Saber estar de joelhos
No dorso a dourada criatura
Poder pensar o dia pelo pássaro aberto
Pôr as mãos no dom das línguas
Pões no abismo tua boca pura
Deixa que em tuas cartas a neve longínqua durma
Não sejas animal de carga e canta
que o homem nasce na casa
mas morre no deserto



carlos edmundo de ory
doze nós numa corda
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & Alvim
1997






01 julho 2018

carlos edmundo ory / o homem dos sórdidos pombais




Aqui está esse homem: vem despido
e vem com os seus sórdidos pombais
vem a pisar ameixoeiras e destroços
acaba de ter espezinhado altares.

Ai suas pombas suas estrumeiras
suas podes colunas de flores de laranjais
suas mãos de alcatrão seus olhos cruéis
os seus remos de cinza pêlos mares!

Que horríveis são seus lábios quando fala!
São horríveis suas pernas! São horríveis
Seus lábios! E suas pernas são seus lábios.

Eis esse homem sozinho numa tábua
Fazendo gestos que ninguém entende
Enchendo Deus de infâmias e agravos.


carlos edmundo ory
antologia da poesia espanhola contemporânea
trad. de josé bento
assírio & alvim
1985







22 outubro 2016

carlos edmundo de ory / suspeitando dos meus dedos



Cai rápido em minha alma
o desejo de morrer
de infundir calma
no meu espantoso ofício de escrever
para pôr em som o quanto calo
e a quem não responde perguntar
Com o sangue de Deus na crista
eu sei que sou um galo

Esta é a minha mão das palavras
Sua-me em português a mão
Já me sangra de golpear em vão
Meter alguém as cabras
no curral por ser humano
de uma só mão

Se fosse mudo gritaria
mudo de espanto
Já me não resta pranto
nesta mão  minha
E se quer alguém o meu ofício
de mutismo e grito
que me arranque pela raiz
Deus e a caneta que é o mesmo

Deixaram-me ferido
os cantos e os credos
Agonizo aqui limpo de pecado
muito amei e chorei demasiado
suspeitando dos meus dedos


carlos edmundo de ory
doze nós numa corda
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & alvim
1997





27 março 2016

carlos edmundo de ory / jovem poeta



Chama as coisas com um arrepio
(chama-as contudo)
Como és voraz entre nascimento e sonho!
Depois da criança que foste jovem poeta
dormiste de novo

Penso em ti ó crisálida
do fundo da carne tumultuária
Pensa em mim agora
Via a realidade clara

Feriram-no a rosa e a lua sobretudo
na Andaluzia
Pilar Paz Pasamar
António Gala Filipe Marechal Montes Surdo

Não meus filhos mas meus pulsos finos
são tubos de música! hastes de messes!
Não são ferros que suportem
uma vida delgadíssima

O que interessa não é a vida
são as mãos o que interessa

Não chameis pelas coisas mas colhei-as
E se ardem esfriai-as
esfriai-as


carlos edmundo de ory
doze nós numa corda
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & Alvim
1997




16 fevereiro 2016

carlos edmundo de ory / poema



Minha arte de magia num mundo sem magia
é a arte da nostalgia original
Perigosa é a canção das sereias
como noutros tempos
Noutros tempos havia mensageiros
reis e loucos
Sonhava-se muito
Eles estavam no incomensurável
e viviam no não ser
O seu nome não se pronunciava
mas o poder deles trazia plenitude às almas
e as pessoas achavam tudo natural


carlos edmundo de ory
doze nós numa corda
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & alvim
1997



14 dezembro 2011

carlos edmundo de ory / poema





A minha boca é uma chaga
O meu trabalho é o silêncio
Eu e a noite dormimos juntos
e nunca dormimos




carlos edmundo de ory
doze nós numa corda
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & Alvim
1997



16 dezembro 2006

carlos edmundo de ory



dá-me




dá-me algo mais que silêncio ou doçura
algo que tenhas e não saibas
não quero dádivas raras
dá-me uma pedra

não fiques imóvel fitando-me
como se quisesses dizer
que há muitas coisas mudas
ocultas no que se diz

dá-me algo lento e fino
como uma faca nas costas
e se nada tens para dar-me
dá-me tudo o que te falta!





carlos edmundo de ory
“doze nós numa corda"
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & Alvim
1997