Alice Loureiro, 2001
em acrílico forte
não sei
a que cidade cheguei
lembro-me de ter vinte anos
e cegar
perdi
o que nenhum homem sabia perder
e alguém me disse:
- desenha a tua morte
e eu peguei nos meus olhos
e fiz este silêncio negro
porque os meus olhos
eram negros
e neles é que eu guardava
a vida e a morte
foi há muito tempo
pois sou um homem muito velho
sou tão velho
como a distância do caminho que percorri
lembro-me que fui
que fui, como o sangue vai numa veia
até ao coração
do nada
até sofrer a eternidade
como uma pedra ou um planeta
fui na gota de mim
ao oceano de mim
e agora cheguei
sem saber onde cheguei
estou no mais abstracto
de um ser
estou na minha alma
ou no meu sonho
estou na essência
do que faz enlouquecer
sinto-o na cor forte
que me devolve os olhos
no estranho calor
que me concede humanidade
não sei
a que mundo cheguei
sou um velho
que ensaia o seu olhar
e há esta cidade estranha
onde não corre o vento
onde nenhum céu vigia
nenhum horizonte define
estou sentado
num prado de aço
e nenhuma estrada
foi escrita
nenhum rio
foi pintado
nenhum ser
foi dito
sou um velho
e ensaio o meu olhar
exerço-o no invisível
que precede as coisas
que está antes do objecto
antes do ser
e tenho nas mãos
a ciência dos gestos
tenho a Arte
sou o talento da vida
por isso
gota a gota
dou-me
um mar
dou-me
os homens e as mulheres
e dou-me em cada um
a voz
todas as vozes
até ao esplendor do grito
e nesse rumor
nesse quase cantar
é que oiço o nome
do que me chama
não sei
que cidade me espera
sou um velho
sou um pássaro cego
que voa adormecido
os seus vinte anos
gil t. sousa
poemas
2001