31 dezembro 2024

joaquim manuel magalhães / fogo, felpa, farmacopeia

 
 
 
A noite ficou branca uma vez mais.
Nesse luar vazio floresce a rocha,
a silva, o contorno do que nada acolhe.
Subo para a armação de ferro
e fungos e vírus e bactérias
esperam no pousio alagado,
relíquias celestiais, a natureza.
Tiro uma a uma cada roupa
na voltagem do frio, mudo o que fui
por detrás da noite, no pesadelo.
 
Esmago as folhas da hortelã-brava,
um odor carnívoro que se mistura
à bruma roída dos barcos na lagoa.
Tudo tarde nas toalhas que nos limpam,
o sândalo deitado nos lençóis,
a linfa da estopa escura contra a luz.
Cor da açafroa, esse cardo cuja veste
Depois de morta é, como nos surge a noite,
macerada.
 
O arbusto aberto no muro, o varandim
e o trago da chama, o teu retrato. Uma espora
no centro do penhasco. Dessas coisas
que se perdem antes de lhes tocarmos.
O luar cai além do vidro, no desaire,
no alto morro preto onde este cansaço
por vezes é o deus.
 
O feixe sombrio lança sobre socalcos
outros socalcos mais escuros, no tecto
de madeira ameaçada, a caminho do saguão,
direito ao que fica por dizer.
Quando atravessa o farol da alvenaria
ilumina-o para dentro, essa parte
partida da revolta de que somos o resto
calcinado, sem fundura, um volume
trazido pela escuridão à despedida
e que não cessa de louvar
nessa alegria lacerada.
 
É melhor que no outro quarto o corpo,
o meu, o deles, a gruta abafada
da parede sem o reboco final,
acenda a noite com suores cobertos
pela lâmpada diminuta.
Que no outro quarto eu esqueça
a languidez suicida, o halo de passos
junto de um sabor, o conforto da derrota
que nos avisa com o longe, o sue esquife,
o bacelo translúcido despedaçado
e a viagem do sono, sem mais querer voltar.
 
Irão faltar-te as cartas que eu deixava
para tu pores os selos. Meu deus,
que mal faz a morte ao outro a quem
nos tira. Depois de nenhum mal nos fazer já
a nós.
 
Sempre que falo de noites assim
é o Douro visto da galeria. É Ariz. A minha avó
deu-me depois esta cadeira. Só lhe mudei
a lona. Apenas mudei eu. o pano cru
com a amarga simplicidade de tudo.
Cedro a cedro, a violência do que vai
diante de nós, dentro de mim.
Numa selha de zinco davam-me banho
e cantavam para eu não chorar,
é lá possível não chorar.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
alta noite em alta fraga
relógio d´água
2001
 



30 dezembro 2024

joan margarit / o rosto do meu pai

 
 
 
Olho-te entre a gente e tu não me vês.
Os músicos de rua
partilham os seus sons num ruidoso concerto.
Vejo na tua cara a queimadura
que o hábito de olhar-te
tinha já apagado.
A tua história distante
perde-se nos becos estreitos e obscuros
dos arredores da Rambla.
Talvez nalgum sítio ainda esteja o fogão
onde dos braços da tua mãe caíste
sobre o óleo a ferver.
Pesam os anos contigo
amontoados como neve num telhado.
Não me viste, e os meus olhos, como lábios,
roçam a tua barba de uns quantos dias
e a velha queimadura que te atravessa
a cara e a vida.
Todos caímos de alguns braços
e a horrorosa cicatriz acaba
por ser um sinal de amor e companhia.
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020




29 dezembro 2024

paul bowles / cena III

 
 
 
Às vezes a febre regressa e eu posso ver as montanhas,
a manhã cheia de freiras que passam
e as terríveis seringas,
as árvores rapaces, as falsas cataratas brilhando com aranhas,
as vinhas do silêncio.
Vejo as mesmas montanhas surdas, com as suas bocas cobertas de neve,
e movo um pouco os meus dedos; ainda assim,
preciso de ajuda.
 
Às vezes a febre vagueia ao anoitecer pelos subúrbios.
Às vezes há apenas uma montanha, meso por cima das nossas cabeças.
Ao meio-dia começa a chover. Os cavalos escondem-se entre as rochas,
e o mar idiota lá está.
De vez em quando preciso de ajuda.
 
«Naquele dia dois mil homens morreram nessa praia infinita.»
 
                Para nós: tubarões, estanho, água estagnada.
                Oito doenças à noite
                enquanto o escorpião se agarra ao tecto.
                Para nós: arame farpado, bocas abertas, sangue seco,
                as cabeças peludas das tarântulas
                e o constante olho cego
                do tempo, congelado no ar.
 
                O vento cai em pedaços
                pelos caminhos da montanha.
                Temos de gritar sem tréguas –
                aquele que pára está perdido.
 
 
                                                  1938

 
 
paul bowles
poemas
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
2008
 



28 dezembro 2024

ilka brunhilde laurito / lamentação de natércia

 
 
 
III
 
Amor, amor, amor, um mal que ainda perdura
esta ferida grande, anónima, obscura,
esse beijo letal que vai da boca ao útero,
esta esperança vã, o desespero inútil.
 
Amor, amor, amor, meu ódio e meu horror,
amor, quisera não ter sangue, não ter corpo,
e te expulsar de mim como a falaz demónio
ou anjo que tingiu de fogo as asas brancas.
 
Chama voraz da vida incinerada em sonho,
Amor, por que me acordas para o dia novo
com promessas de voo, se me ardo em chão?
 
Ai, se me fora dado exorcizar-te, Amor…
(carvão posto em repouso, brasa alheia ao sopro)
… ai se me fora… – AMOR! AMOR! NÃO ME ABANDONES!
 
 
 
ilka brunhilde laurito
colóquio letras nr. 90
março 1986
fundação calouste gulbenkian
1986
 



27 dezembro 2024

diego doncel / o filósofo das ruelas

 




 

1
 
Diz-me tu, dor – perguntava aquele filósofo das ruelas dos subúrbios
sentado atrás de uma folha de papelão – se, agora que vou tão pobre e sem refúgio
e com os olhos velhos como a cor do céu,
não é tempo já de que te esqueças de mim?
 
Diz-me tu, que és a única forma de consciência
Pela qual penso as coisas, se não é inútil habitar este frio,
se não é inútil fugir constantemente do que julgo que sou
ou que não sou, talvez aquilo que seja um estado
da minha própria morte ou uma forma diferente de viver?
 
No papelão escrevera a história da sua vida com inverosímeis
incorrecções ortográficas e deixava adivinhar
o permeável das fronteiras entre ser e deixar de ser.
As lojas estavam adormecidas, as gentes rodavam das franquias comerciais
de comida rápida para os bazares de diversão a cheirarem a terra húmida.
Uma franja de nuvens atravessava os intermitentes semáforos amarelos
a uma velocidade ilegal.
 
 
2
 
Noutros dias ganhava umas moedas a predicar à porta dos restaurantes
e dos centros de estética o esoterismo de uma vida feliz:
– Quando se segue o curso da vida – aconselhava –
alimentar-se é um acto espiritual:
são comprimidos de proteínas, comprimidos de carboidratos,
comprimidos de fibras naturais, comprimidos de ácido fólico
e vitaminas C e E,
nem sal nem gorduras nem açúcar,
só meditações, busca interior, serenidade.
Quando se segue o curso da vida
é decisivo o rejuvenescimento celular,
a absorção de oxigénio, o prodígio
dos extractos vegetais. A mente limpa,
escutar a música do coração.
E as pessoas, tão ávidas de novos visionários,
de novas mitologias, de modernos sonhadores
achavam sensata a mensagem das suas palavras.
 
Mas não era um filósofo existencialista
nem um profeta da vida sã.
Ninguém sabia quem era nem porque representava aquilo:
aquelas metamorfoses interiores, aquelas mudanças
de personalidade, aquela consciência fugidia
que é tudo e nada ao mesmo tempo,
o sonho de tudo que ninguém sonhava.
Depois sentava-se junto de jovens ociosos
a beber whisky em copos de papel,
e o álcool uivava nas suas veias
como uma ambulância numa rua tranquila.
Procurava talvez para lá
dos rituais humanos carentes de algum juízo
umas formas acabadas e perfeitas de existência.
E o seu eu não lhe servia.
Não sou, porventura, dizia-se a si próprio, o engano
que vou criando ao viver?
Porventura não fujo do meu nome, de qualquer
nome, pelos passeios deste subúrbio
e vagueio por estas ruelas,
que as drogas e a morte amam,
para não saber de mim?
 
 
3
 
Esquecia o mal-estar consigo mesmo
ao esquecer o pensamento, as dimensões doentes da sua alma
ao dar-se uma nova oportunidade de estar ali,
de continuar a celebração daquele estado em que as coisas
mais correntes não se convertiam em terríveis metáforas,
em que as coisas e os seres não eram já seus inimigos.
 
Tinha medo dele, do que se escondia
dentro dele e aterrava-o a morte.
 
E naquela noite o frio e a cobiça dos gelos
lembram-lhe toda a sua fragilidade.
Olhou os pombos nos ramos nus das acácias
como farrapos de velha roupa. Andou sem rumo
e refugiou-se em qualquer sítio,
talvez só ao calor da sua respiração.
Nas escuridões últimas da noite, quando a neve
tinha ocultado já a extensão dos passeios e o vento se ria
entre as elevadas estruturas de apartamentos com humorísticas gargalhadas,
encontrou uma única ideia que lhe deu paz, simples como ele,
algo que o reconciliava.
E por entre os lábios a si se disse, como um murmúrio:
eu sou apenas uma sombra
que pede humildemente esmola a outras sombras
e que ao estender a mão que treme
(a mesma mão com que às vezes
reconheço as formas do meu rosto,
com que dou de comer aos pardais das ruas
e lhes construo pequenas casas de madeira,
com que me guio, antes de adormecer, na leitura
dos aforismos de Marco Aurélio)
encontro toda a claridade do mundo.
 
 
 
diego doncel
em nenhum paraíso
trad. joaquim manuel magalhães
averno
2007
 



26 dezembro 2024

josé emílio pacheco / apocalipse na televisão

 
 
 
Cornetas do fim do mundo
Interrompidas
Para dar lugar a um anúncio
 
 
 
josé emílio pacheco
irás y no volverás (1969-1972)
a árvore tocada pelo raio
antologia poética
trad. miguel filipe mochila
maldoror
2024
 



25 dezembro 2024

ruy belo / poema de natal

 
 
 
É dia de natal a festa da família um deus nasceu
não me sinto sozinho mas estou sozinho
toda a minha família sou só eu
Levo nas algibeiras alguns versos e caminho
quando sinto de súbito o desejo de reler o herculano
a única pessoa que nos livros e na vida hoje me faz falta
única companhia para o meu natal
Entro nas poucas livrarias de peniche
e gasto em livros de herculano o dinheiro que tenho
O herculano entre outras coisas bem sabia distinguir os tempos
sabia o que num tempo é distinto de outro tempo
tinha muitos amigos entre os seus e meus antepassados
e deu sempre à verdade o que os demais costumam dar à vida
Era casmurro abandonou um dia as casas de má nota
deixou o parlamento e a vida literária
e procurou no campo a companhia
de árvores bem mais que os homens verticais
Tinha muito mau génio fulminava com os olhos
franzia a testa e não havia nada que fazer
era teimoso o velho como antero lhe chamava
Penso nele e caminho pelas ruas de peniche
e só vão a meu lado uma má música daquelas
que ferem os ouvidos nestas quadras do natal
e a fotografia num jornal de um elevado dignitário da hierarquia
para quem o mistério do natal não sei bem que mistério ou que natal
encerra o verdadeiro humanismo novo
frase que me provoca comoções
porquanto as aliterações são dos meus pratos favoritos
Vou encerrar-me em casa a sós com herculano
que tanto quanto sei não era humanista
ou que se porventura o era o não sabia
ou não dizia ao menos ser tal coisa como
se duvidássemos que o fosse se é que o era
É dia de natal estou sozinho e penso ler o herculano
que há tanto ano já me não fazia
a falta que me faz precisamente neste dia
em que só me faz falta a sua companhia
Vamos pra minha casa ó herculano
vou fechar as janelas acender a luz
e aguardar contigo o fim do ano
Prefiro-te herculano a músicas e altos dignitários pois
nem talvez tenha já a convicção de quem anualmente
escreve pontual se não contente o seu poema de natal
 
 
 
ruy belo
nau dos corvos
todos os poemas II
assírio & alvim
2004
 



24 dezembro 2024

agustina bessa-luís / presépio

 
 
 
Não é sem razão que os animais aparecem no Presépio, no século XIII, quando a sociedade agrária começa a sair da sua incerteza e a medir a sua aversão pelo perigo. O animal doméstico é posto a para da religiosidade, como indicador do comando da incerteza humana. Os Presépios com a vaca e o burro são apresentados no rito natalício franciscano e significam exactamente a prosperidade ideal, o homem num abrigo de terra batida com os seus animais, escapados à fome e às inundações que assolaram a Europa na primeira metade do século XIV. A festa do Presépio foi instituída por São Francisco, em Greggio, três anos antes da sua morte. Fez preparar uma manjedoura e trazer feno para ela; junto colocou uma vaca e um burro, e disse a Missa sobre a dita manjedoura. Foi um cavaleiro, justo e piedoso, quem contou ter visto uma criança maravilhosa que dormia no presépio. Portanto, a intenção de São Francisco não foi a de celebrar o Nascimento, mas sim a de realizar um pacto sagrado com os factores de segurança para o homem agrário, tão aterrado pelas condições climáticas que assolaram a Europa desde os Pirenéus às estepes russas.
 
 
 
agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008




23 dezembro 2024

sophia de mello breyner andresen / às vezes

 
 
 
Às vezes julgo ver nos meus olhos
A promessa de outros seres
Que eu podia ter sido,
Se a vida tivesse sido outra.
 
Mas dessa fabulosa descoberta
Só me vem o terror e a mágoa
De me sentir sem forma, vaga e incerta
Como a água.
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
obra poética I
caminho
1999
 



22 dezembro 2024

e e cummings / se eu te amo

 
 
 
LIV
 
se eu Te amo
(espessura significa
mundos habitados por errantes
austeras brilhantes fadas
 
se tu me
amas) distância é mente cuidadosamente
luminosa com inúmeros gnomos
De completo sonho
 
se nós (timidamente)
nos amamos, o que nuvens fazem ou Silentemente
Flores assemelha-se à beleza
menos que a nossa respiração
 
 
 
e. e. cummings
trad. ana hatherly
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990




21 dezembro 2024

samuel beckett / bem bem existe um país

 
 
 
bem bem existe um país
em que o esquecimento em que pesa o esquecimento
lentamente nos mundos inominados
aí a cabeça aquietamo-la a cabeça está calada
e sabemos não nada sabemos
o canto das bocas mortas morre
no areal fez a viagem
não há nada para chorar
 
a minha solidão conheço-a vamos lá conheço-a mal
tenho tempo vou achando que tenho tempo de vida
mas que tempo osso faminto a vida do cão
do céu que assola incessante o meu vão de céu
do raio que trepa ocelado fremente
dos mícrons dos anos trevas
 
querem que vá de A para B não posso
não posso sair estou numa terra sem rastos
sim sim é uma coisa bonita que aí tem uma coisa bem bonita
o que é não me façam mais perguntas
espiral poeira de instantes o que é isso o mesmo
a calma o amor o ódio a calma a calma
 
 
 
samuel beckett
rosa do mundo, 2001 poemas para o futuro
trad. filipe jarro
assírio & alvim
2001





20 dezembro 2024

fayis suyyagh / o cavaleiro

 
 
 
permanecendo firme sob o calor do sol
e o açoite da chuva
passando por ele dia e noite
passado e futuro
as quatro estações
esperou o grande momento
com as feridas enroupadas de esquecimento
(quando visse o dragão cujos olhos cospem fogo)
quando ele veio
correu
     bateu em retirada
     dobrou-se para trás
     inclinou-se
     caiu
     como uma tempestade
cravando a sua lança na face do Nada
 
 
 
fayis suyyagh
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução adalbaerto alves
assírio & alvim
2001




 

19 dezembro 2024

yorgos seferis / dentro das cavernas marinhas

 
 
Dentro das cavernas marinhas
há uma sede há um amor
há um êxtase,
tão duro como as conchas
podes segurá-las na palma da tua mão.
 
Dentro das cavernas marinhas
dias inteiros olhava-te nos olhos
e não te conhecia nem tu me conhecias.
 
 
 
yorgos seferis
esboço para um verão
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães
e nikos pratisinis
relógio d´água
1993
 




18 dezembro 2024

wislawa szymborska / o amanhecer

 
 
 
Ainda durmo
e entretanto sucedem-se factos.
Clareia a janela,
acinzentam-se as trevas,
surge o quarto do espaço sombrio
e nele tentam firmar-se rastos de luz pálidos e vacilantes.
 
A seguir, sem pressas,
pois é uma cerimónia,
amanhecem as superfícies do tecto e das paredes,
separam-se as formas
umas das outras,
a esquerda da direita.
 
Alvorecem as distâncias entre os objectos,
chilreiam os primeiros clarões
no copo e na maçaneta.
Já não só parece, agora é no seu todo,
aquilo que ontem movido,
o que caiu no chão
e o que se enquadra nas molduras.
Só os pormenores
ainda não deram entrada no campo d avisão.
 
Mas atenção, atenção, atenção,
muito parece indicar que regressam as cores
e mesmo a mais ínfima coisa vai recuperá-las
juntamente com os tons da sombra.
 
Muito raramente isto me espanta, mas deveria.
Habitualmente, acordo na condição da testemunha atrasada,
com o milagre já consumado,
o dia estabelecido
e o amanhecer com mestria em manhã transformado.
 
 
 
wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006
 



17 dezembro 2024

rainer maria rilke / os sonetos a orfeu

 



 
I
 
Invisível poema, respirar!
Mundo, espaço e ser vislumbro
Sem cessar em troca pura. O equilibrar
Em que por ritmos me cumpro.
 
Única onda
de que sou mar gradual;
o mais poupado na ronda,
ganho de espaço afinal.
 
Quanto lugar dos espaços
dentro de mim se precisa.
Ventos, filhos nos meus braços.
 
Reconheces-me, ó aragem, tão cheia das minhas lavras?
Tu que foste casca lisa,
Curva e folha das palavras.
 
 
 
rainer maria rilke
elegias de duíno e os sonetos a orfeu
trad. de vasco graça moura
quetzal
2017



16 dezembro 2024

paul celan / conversas com cascas de árvore

 
 
 
CONVERSAS COM CASCAS DE ÁRVORE. TU,
tira a casca, anda,
tira-me, feito casca, da minha palavra.
 
É tarde já, mas nós
queremos estar nus e à beira
da navalha.
 
 
 
paul celan
a morte é uma flor
trad. de joão barrento
relógio d´água
2022
 



15 dezembro 2024

ángél gonzález / discurso aos jovens

 
 
 
De vós,
os jovens,
espero menos coisas grandes que as que realizaram
os vossos antepassados.
Entrego-vos
uma herança grandiosa:
guardem-na.
Amparem esse rio
de sangue,
sujeitem com firme
mão
o troco dos cavalos
velhíssimos,
mas ainda poderosos,
que arrastam com pujança
o fardo dos séculos
passados.
 
Nós somos estes
que aqui estamos reunidos,
e os outros não importam.
 
Tu, Pedra,
filho de Pedro, neto
de Pedra
e bisneto de Pedro,
esforça-te
por seres sempre pedra enquanto vivas,
por seres Pedro Petrificado Pedra Branca,
por não tolerares o movimento,
por asfixiares em moldes apertados
tudo o que respira ou quanto pulse.
 
A ti,
leal amigo,
companheiro de armas,
escudeiro,
sustento da nossa glória,
jovem alferes dos meus esquadrões
de arcanjos vestidos de azeitona,
sei que não preciso de admoestar-te:
com seguires sendo fogo e ferro,
basta.
Fogo para queimares o que floresce.
Ferro para esmagares o que se ergue.
 
E, finalmente,
tu, dono
do ouro da terra,
poderoso impulsionador da nossa vida,
não nos faltes nunca.
Sê generoso
com aqueles de que precisas,
mas guarda,
expulsa do teu reino,
mantêm-nos para lá das tuas fronteiras,
deixa que morram,
se é preciso,
os que sonham,
os que procuram
só a luz e a verdade,
os que deveriam ser humildes
e às vezes não o são, é assim a vida.
 
Se algum de vós
pensasse,
eu dir-lhe-ia: não penses.
 
Mas não é preciso.
 
Continuem assim,
meus filhos,
e eu prometo que tereis
paz, e pátria feliz,
e ordem,
e silêncio.
 
 
 
ángél gonzález
para que eu me chame ángel gonzález
uma antologia
selecção e tradução de miguel filipe mochila
língua morta
2018
 



14 dezembro 2024

manuel antónio pina / passagem

 
 
 
                                                                À Inês



 
Com que palavras ou que lábios
é possível estar assim tão perto do fogo,
e tão perto de cada dia, das horas tumultuosas e serenas,
tão sem peso por cima do pensamento?
 
Pode bem acontecer que exista tudo e isto também,
e não só uma voz de ninguém.
Onde, porém? Em que lugares reias,
tão perto que as palavras são de mais?
 
Agora que os deuses partiram,
e estamos, se possível, ainda mais sós,
sem forma e vazios, inocentes de nós,
como diremos ainda margens e como diremos rios?
 
 
 
manuel antónio pina
amigos e outras moradas
todas as palavras, poesia reunida
assírio & alvim
2012
 




13 dezembro 2024

miguel serras pereira / levíssima demora

 



 

 

Deixo aqui a estrela semeada para te dar
nas areias de uma noite de passagem
numa carta de amor de novo em branco
a meio das outras cartas que no escuro
despertam no meu pulso enquanto escuto
ou a manhã adormece intermitente
na extrema vigília das mãos nuas
 
Apoio as costas contra o velho muro
por onde agora chegas e atravessas
as passagens secretas sob a pele
o imenso olhar dos campos desdobrados
brilhantes de brancura à transparência
do sangue da loucura
 
Deito ao vento o que resta do meu rosto
para quando o vento vier amar a sós
no voo dos teus ombros ainda aureolados
pela levíssima demora destas horas
subindo ao teu encontro a antiga atmosfera
onde pássaro a pássaro hoje se desprende
do silêncio do tempo a música das esferas
 
O adeus começa a passo de lobo na cintura
perdido no caminho do regresso
Alta queda de tudo para tudo
quando tudo de novo flutua
à deriva dos astros entre as ilhas penduradas
por cada passo teu nos mastros deste barco
que acorda a travessia no deserto
e traz a bordo o mar para nos levar
 
 
 
miguel serras pereira
trinta embarcações para regressar devagar
relógio d´água
1993
 


12 dezembro 2024

nuno guimarães / os amorados (1)

 
 
 
I
Na amurada dos navios, na improcedência
das aves sem lugar, desalojados,
vão.
 
II
E se descobrem um sinal ou um resíduo
da terra original, é só a móvel,
a geográfica Terra do sistema.
 
III
Tomados já de amor, in amorados,
buscam só a morada, sem prefixo.
 
IV
E, no entanto, há mapas, há sistemas
de orientação indica dores:
é ali, em tal lugar, em tal
memória.
 
V
Um mito embalsamaram
no coração sem metafísica.
Entre sinais de voo e de metáfora
entre um cantar e a sua escrita.
 
 
 
(1) Amorado: voc. arc., fora da morada, exilado
 
 
 
nuno guimarães
dispersos
entre sílabas e lavas
poesia completa
assírio & alvim
2024




 

11 dezembro 2024

miguel oliva teles / nesta manhã

 
 
 
nesta manhã
o sol tímido e inclinado não chega
para desenvencilhar as mãos apertadas pelo frio
fiz apenas desenhos na estrada
recortando o perfil das árvores
e dando sombras às grades do jardim.
 
nesta manhã
chegam-me várias saudades
amores como esse sol
de uma fervura imensa
mas distante radiância.
 
e as mãos, guardo-as no peito
porque é nessas figuras cortadas
nas silhuetas de luz e escuro
e nas texturas que guarda o rocio
que vos conjuro
 
nas mãos ao peito
(quais luvas!)
há saudade
e há calor aprisionado.
 
 
 
miguel oliva teles
errando
editora urutau
2021




10 dezembro 2024

eugénio de andrade / um rio te espera

 



 

 

Estás só, e é de noite,
na cidade aberta ao vento leste.
Há muita coisa que não sabes
e é já tarde para perguntares.
Mas tu já tens palavras que te bastem,
as últimas,
pálidas, pesadas, oh abandonado!
 
Estás só
e ao teu encontro vem
a grande ponte sobre o rio.
Olhas a água onde passaram barcos,
escura, densa, rumorosa
de lírios ou pássaros nocturnos.
 
Por um momento esqueces
a cidade e o seu comércio de fantasmas,
a multidão atarefada
em construir pequenos ataúdes
para o desejo mais puro e mais sagrado,
a cidade onde cães devoram,
com extrema piedade,
crianças cintilantes
e despidas.
 
Olhas o rio
como se fora o leito
da tua infância:
lembras-te da madressilva
no muro do quintal,
dos medronhos que colhias
e deitavas fora,
dos amigos a quem mandavas
palavras inocentes
que regressavam a sangrar,
lembras-te da tua mãe
que te esperava
com os olhos molhados de alegria.
 
Olhas a água, a ponte,
os candeeiros,
e outra vez a água;
a água!,
água ou bosque,
sombra pura
nos grandes dias de verão.
 
Estás só.
Desolado e só.
E é de noite.
 
 
 
eugénio de andrade
até amanhã (1951-1956)
poemas
edit. inova
1971




09 dezembro 2024

vasco graça moura / o mês de dezembro

 
 
 
V

cada cidade tem uma gramática
e sombrias gaivotas; a juventude
tem um fulgor terrestre; ambas
a zona de fractura, o tempo, a orla
 
vulnerável; o acesso ao inverno
passa por elas. cada cidade
tem um teclado; contraponho:
a juventude vai-se deformando
 
mas ter amado e conhecido não lhe interessa
são canções de experiência, simulacros
de rosa doente. apenas o presente
lá onde o sol se cala para ambas
 
 
 
vasco graça moura
o mês de dezembro
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007



 

08 dezembro 2024

camilo castelo branco / os amigos

 



 

Amigos cento e dez, e talvez mais,
Eu já contei. Vaidades que eu sentia!
Supus que sobre a terra não havia
Mais ditoso mortal entre os mortais.
 
Amigos cento e dez, tão serviçais,
Tão zelosos das leis da cortesia,
Que eu, já farto de os ver, me escapulia
Às suas curvaturas vertebrais.
 
Um dia adoeci profundamente.
Ceguei. Dos cento e dez houve um somente
Que não desfez os laços quase rotos.
 
– Que vamos nós (diziam) lá fazer?
Se ele está cego, não nos pode ver…
Que cento e nove impávidos marotos!
 
 
 
camilo castelo branco
os poemas da minha vida
mário soares
público
2005
 
 
 


07 dezembro 2024

manuel resende / porto-cidade sem nome

 
 
 
Esse abismo despejado sobre nós,
Que foi azul e se enche do ser nocturno dos homens,
Vibrado de luz no espesso nevoeiro nocturno –
Esse abismo é um deserto aéreo onde não se vive,
Porque é pura a distância à nossa volta,
Com a sua presença enorme, sem palavras.
É tão grande, tão completamente tudo,
Que aqui pareço ser livre e grande como ele.
Mas onde está tudo? E que tudo? Tudo mais não é do que
Um futuro que se aproxima,
Uma coisa que não se sabe e perigosa.
Que ser é este que imprime figuras no ar?
É o longe e o perto, o antigo e o presente, tempo esmagado
         contra
Um ar mudado em parede volumosa e sólida.
Nele não há pátria, nem vida, nem minutos que se sucedam.
A máquina da cidade parou de respirar.
Um homem que passeie neste desdobrável d eprédios
Perde sem saber o seu nome,
Entre os cães que dormem na rua.
E nem o rio que corre corre, congelado.
 
 
 
manuel resende
em qualquer lugar seguido por
o pranto de bartolomeu de las casas
poesia reunida
edições cotovia
2018
 



06 dezembro 2024

luís miguel nava / o tanque de bashô

 
 
 
          O tanque junto a que o crepúsculo mo traz é o de Bashô.
          A água maravilha-se.
 
 
          Inquinam-se as imagens, a pequena rotação do outono, o dia decom-
põe-se, o sangue explode contra a claridade.
 
          Um nó de leite a nudez cresce pela água



luís miguel nava
onde à nudez
poesia completa (1979-1994)
publicações dom quixote
2002




05 dezembro 2024

manuel gusmão / conheci um jovem

 
 
Conheci um jovem que me dói às vezes,
um pouco, no futuro. e não tenho amigas.
perco-me nelas, desentendo-me ao ponto
de já não estar ali e de correr depois
pela coberta dos navios, pelas pontes,
pelas praias onde a neve cai.
 
Tenho o doce do teu sangue alastrando
Em pasta, nuvens pesadas no céu da
Boca. Se eu não te morresse como estarias tu
Crescendo, meu querido amigo,
                    e u é?
 
E essa que me chamas é ainda já
a outra, a escura floresta
                                     e selvagem
 
e áspera e forte
que conheço de se tocarem as pétalas
                    na paixão?
 
 
 
manuel gusmão
dois sóis, a rosa
a arquitectura do mundo
a rosa falante ou o amoroso palimpsesto (1972, 1982)
caminho
1990




04 dezembro 2024

luiza neto jorge / recanto 2

 
 
 
Viver, entretanto, é ver, ir vendo
e também ver inclui dormir
sem que nada se desfaça ou exclua
no interior dos sonhos.
 
Pensemos no comércio de viver: passagem dos navios
quando, a passar, se retém a espessa
água do tempo, da tempestade.
 
Um comércio, apenas – desvio da moeda
da trajectória do ouro
para o papel.
 
Sempre viver inclui andar percorrer voar
de avião ou com os braços ou num ser de mais
rodas que nos conduza
a outro sentido ambulatório.
 
 
 
luiza  neto jorge
dezanove recantos (1970)
poesia
assírio & alvim
1993
 



03 dezembro 2024

luís veiga leitão / filho do povo

 
 
 
Filho do povo criado nas alturas
com pinheirais em torno e um vento cru
rachando a solidão das fragas duras
que nos tratam por tu
 
 
Daí
esta sede saibrosa que nos cresta
(nem sei ó meu irmão como tu medras)
 
 
Daí
esta fome surda de giesta
comendo a terra das próprias pedras
 
 
Filha dos montes que não têm nome
e pastora de um corpo na verdura
que o rebanho do tempo breve come
 
 
– Um relâmpago a tua formosura
 
 
 
luís veiga leitão
ciclo de pedras
portugália
1964





02 dezembro 2024

pedro homem de mello / carta a eugénio de andrade

 
 
 
Porto. Abril. Tantos de tal…
E contínuo a teu lado,
Hoje como ontem. Igual
A mim próprio: abandonado
Por todos, menos por ti.
Posto que tão diferente
Seja o berço em que nasci
Da praia, livre, onde passas
Com Sol a pino. Sorriste
Alheio às minhas desgraças?
Vê: mendigo sou que aceita
Mesmo uma côdea de pão,
Mas que traz na mão direita
A flor que as roseiras dão…
Vela pagada ou acesa?
– Sei que me podem comprar
Tudo, menos a nobreza
De sorrir quando há luar…
 
 
 
pedro homem de mello
eu desci aos infernos (1972)
poesias escolhidas
imprensa nacional-casa da moeda
1983




01 dezembro 2024

manuel alegre / lusíada exilado

 
 
 
Nem batalhas nem paz: obscura guerra.
Dói-me um país neste país que levo.
Sou este povo que a si mesmo se desterra
meu nome são três sílabas de trevo.
 
Há nevoeiro em mim. Dentro de abril dezembro.
Quem nunca fui é um grito na memória.
E há um naufrágio em mim se de quem fui me lembro
há uma história por contar na minha história.
 
Trago no rosto a marca do chicote.
Cicatrizes as minha condecorações.
Nas minhas mãos é que é verdade D. Quixote
trago na boca um verso de Camões.
 
Sou este camponês que foi ao mar
lavrou as ondas e mondou a espuma
e andou achando como a vindimar
terra plantada sobre o vento e a bruma.
 
Sou este marinheiro que ficou em terra
lavrando a mágoa como se lavrar
não fosse mais do que a perdida guerra
entre o não ser na terra e o ser no mar.
 
Eu que parti e que fiquei sempre presente
eu que tudo mandava e nunca fui senhor
eu que ficando estive sempre ausente
eu que fui marinheiro sendo lavrador.
 
Eu que fiz Portugal e que o perdi
em cada porto onde plantei o meu sinal.
Eu que fui descobrir e nunca descobri
que o porto por achar ficava em Portugal.
 
Eu que matei roubei eu que não minto
se vos disser que fui pirata e ladrão.
Eu que fui como Fernão Mendes Pinto
o diabo e o deus da minha peregrinação.
 
Eu que só tive restos e migalhas
e vi cobiça onde diziam haver fé.
Eu que reguei de sangue os campos das batalhas
onde morria sem saber porquê.
 
Eu que fundei Lisboa e ando a perdê-la em cada
viagem. (Pátria-Penélope bordando à espera.)
Eu que já fui Ulisses. (Ai do lusíada:
roubaram-lhe Lisboa e a primavera.)
 
Eu que trago no corpo a marca do chicote
eu que trago na boca um verso de Camões
eu é que sou capaz de ser o D. Quixote
que nunca mais confunda moinhos e ladrões.
 
Eu que fiz tudo e nunca tive nada
eu que trago nas mãos o meu país
eu que sou esta árvore arrancada
este lusíada sem pátria em Paris.
 
Eu que não tenho o mar nem Portugal.
(E foi meu sangue o vinho meu suor o pão).
Eu que só tenho as lágrimas de sal
que me deixou el-rei Sebastião.
 
Nem o Gama nem os doze de Inglaterra.
O herói sou eu: aqui sem pão nem glória.
Eu camponês no mar e marinheiro em terra
Todo-O-Mundo e Ninguém. Sou eu que faço a história.
 
Quem foi que fez de mim este estrangeiro
Este sem pátria a quem a Pátria dói?
Eu que fui camponês poeta e marinheiro
eu que fiz Portugal quero saber quem foi
 
Lusíada exilado. (E em Portugal: muralhas.)
Se eu agora morresse sabia por quê.
Venham tormentas e punhais. Quero batalhas.
Eu que sou Portugal quero viver de pé.
 
 
manuel alegre
o canto e as armas
centelha
1974