Dói-me um país neste país que levo.
Sou este povo que a si mesmo se desterra
meu nome são três sílabas de trevo.
Quem nunca fui é um grito na memória.
E há um naufrágio em mim se de quem fui me lembro
há uma história por contar na minha história.
Cicatrizes as minha condecorações.
Nas minhas mãos é que é verdade D. Quixote
trago na boca um verso de Camões.
lavrou as ondas e mondou a espuma
e andou achando como a vindimar
terra plantada sobre o vento e a bruma.
lavrando a mágoa como se lavrar
não fosse mais do que a perdida guerra
entre o não ser na terra e o ser no mar.
eu que tudo mandava e nunca fui senhor
eu que ficando estive sempre ausente
eu que fui marinheiro sendo lavrador.
em cada porto onde plantei o meu sinal.
Eu que fui descobrir e nunca descobri
que o porto por achar ficava em Portugal.
se vos disser que fui pirata e ladrão.
Eu que fui como Fernão Mendes Pinto
o diabo e o deus da minha peregrinação.
e vi cobiça onde diziam haver fé.
Eu que reguei de sangue os campos das batalhas
onde morria sem saber porquê.
viagem. (Pátria-Penélope bordando à espera.)
Eu que já fui Ulisses. (Ai do lusíada:
roubaram-lhe Lisboa e a primavera.)
eu que trago na boca um verso de Camões
eu é que sou capaz de ser o D. Quixote
que nunca mais confunda moinhos e ladrões.
eu que trago nas mãos o meu país
eu que sou esta árvore arrancada
este lusíada sem pátria em Paris.
(E foi meu sangue o vinho meu suor o pão).
Eu que só tenho as lágrimas de sal
que me deixou el-rei Sebastião.
O herói sou eu: aqui sem pão nem glória.
Eu camponês no mar e marinheiro em terra
Todo-O-Mundo e Ninguém. Sou eu que faço a história.
Este sem pátria a quem a Pátria dói?
Eu que fui camponês poeta e marinheiro
eu que fiz Portugal quero saber quem foi
Se eu agora morresse sabia por quê.
Venham tormentas e punhais. Quero batalhas.
Eu que sou Portugal quero viver de pé.
o canto e as armas
centelha
1974