03 julho 2024

pat boran / desde que te foste embora…




 
os dias aprenderam uma linguagem nova,
os anoiteceres falam em línguas –
 
as vozes da chuva na janela do quarto,
do vento a sussurrar na rua varrida pela chuva,
 
os canos de casa a barulharem,
torneira atrás de torneira.
 
A perda descobre novas canções
em instrumentos antigos.
 
 
 
pat boran
o sussurro da corda
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018




 

02 julho 2024

guillaume apollinaire / laços

 




 

 
Cordas feitas de gritos
 
Sons de sinos através da Europa
Séculos enforcados
 
Carris que amarrais nações
Não somos mais que dois ou três homens
Livres de todas as peias
Vamos dar-nos as mãos
 
Violenta chuva que penteia os fumos
Cordas
Cordas tecidas
Cabos submarinos
Torres de Babel transformadas em pontes
 
Aranhas-Pontífices
Todos os apaixonados que um só laço enlaçou
 
Outros laços mais firmes
Brancas estrias de luz
Cordas e Concórdia
 
Escrevo apenas para vos celebrar
Ó sentido ó sentidos caros
Inimigos do recordar
Inimigos do desejar
 
Inimigos da saudade
Inimigos das lágrimas
Inimigos de tudo o que eu amo ainda
 
 
 
guillaume apollinaire
poesia do século xx
(de thomas hardy a c. v. cattaneo)
antologia e tradução de jorge de sena
editorial inova
1978
 




01 julho 2024

john ashbery / a vida como um livro que se fechou

 



 

Apagámos todas as letras
E a afirmação mantém-se vagamente,
Como uma inscrição sobre a porta de um banco,
Com números romanos difíceis de decifrar,
E que, à sua maneira, talvez digam de mais.
 
Não estávamos a ser surrealistas? E porque é que
No bar estranhos observavam o teu cabelo
E as tuas unhas, como se o corpo
Não procurasse e encontrasse a posição mais confortável,
E a tua cabeça, essa coisa estranha,
Não ficasse cada vez mais problemática de cada vez que alguém fechava a porta?
 
Falámos um com o outro,
Levámos cada coisas só até onde podíamos,
Mas na ordem certa, e assim ela é música,
Ou qualquer coisa como música, falando da distância.
Temos apenas algum saber
E mais que a ambição necessária
Para o transformar num fruto feito de nuvem
Que nos protegerá até desaparecer.
 
Mas o seu sumo é amargo,
Não temos disso nos nossos jardins,
E tu devias subir até onde mora o saber
Com esse sarcasmo desprendido, para aí alguém
Te dizer de vez: não está aqui.
Só fica o fumo,
E o silêncio, e a velhice
Que fomos construindo como uma paisagem,
De alguma maneira, e a paz que bate todos os recordes,
E o cantar no campo, um prazer
Que há-de vir e não nos conhece.
 
 
 
john ashbery
uma onda e outros poemas
tradução colectiva / joão barrento
poetas em mateus
quetzal editores
1992