31 julho 2024

agustina bessa-luís / agustina por agustina

 
 
 
Eu não dou sossego a quem me ouve, não deixo que parem no dia santo, porque ponho pedra firme até na água e projecto na criança de mama, e pingo de azeite na porta perra, e juízo no louco que se faz desentendido e diz: «Isto não é comigo.»
*
Não sou vaidosa. Sou contente, sou feliz e agradecida dos meus dotes de coração, dos meus talentos, da luz dos meus olhos, da saúde física, do vigor moral. Bens momentâneos – bem o sei. Valores falíveis e facilmente dispersos no tempo. mas é nesta alegria, nesta exaltação vital, que está o meu cântico à vida – humano e, contudo, esplêndido, divino e, contudo, humilde.
*
Eu não sou justa, ajuízo as coisas. Eu e a justiça somos pura coincidência; o facto de isto se repetir faz talvez o prodígio, mas não a certeza.
*
Nunca me senti cansada a descrever o humano, precisamente porque participo de tudo o que é humano. Nunca me senti marcada em misteriosa contradição com o comum dos outros, nunca experimentei o sentimento de estar à parte, de estar isolada. Eu consigo participar da despreocupação dos momentos vividos, e posso revelá-los pela palavra, sem que eles de alterem e se intensifiquem pela observação.
*
 Minha obra é portuguesa, constituída por sentimento e gente portuguesa até à medula.
*
Tudo o que eu escrevo se destina a interessar as pessoas na sua própria entidade. Daí, muitas vezes, ela ter um efeito devastador, a obra e a pessoa que a produz. Sobretudo a pessoa, devo dizer. Eu desmarco os outros da rotina, espanto a manada. Depois os efeitos são maravilhosos, combinam com a imortalidade.
*
Se eu não sou poética, apesar de dizerem que sou, cada vez com mais veemência e singular teimosia sei descobrir nas coisas comuns uma directa via que as leva ao coração, que as torna capazes de serem mais doces do que a lírica mais melodiosa.
*
Não quero como assunto nada de extravagante, mesmo com timbre de lírico. Não quero brilhar, nem convencer, coisa que os poetas querem muitas vezes. Quero ser sóbria de palavras, constante de gratidão, verídica de fidelidade para quem confia em mim.
*
Para mim é fácil ser verdadeira quanto à minha insinceridade.
 
 
 
agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008




30 julho 2024

irene lisboa / saímos os três da casa de g..

 
 
SAÍMOS os três da casa de G.. E fomos esperar um autocarro. Ele disse-me: há-de vir a nossa casa. E ela ficou calada.
Têm uma casa nova, encantadora, oiço dizer, onde recebem a nata das letras, política e artes, onde deram e darão grandes saraus, etc.. Mas porque havia eu de ir a casa deles, se até aqui nunca de mim se lembraram? Conhecemo-nos há trinta anos, perto ou certo.
E nunca me retribuíram um certo convite, feito e aceite há dezoito, em que lhes ofereci um jantar de galinha… Ou então, ele mo quis pagar ontem: ao que ela ainda se recusou.
Nesse tal dia, ou noite, tão recuados! ela, preciosa, desdenhosa, dizia com aquela graça franca de quem se sente fora do seu ambiente, desnivelada: e eu que detesto canja! tudo o que cheire a galinha…
Uma mulher encantadora, natural, amável, sociável e caprichosa: com isto se diz tudo.
 
 
irene lisboa
1949 a 1957
solidão II
portugália editora
1966





 

29 julho 2024

ana hatherly / 463 tisanas

 
 
222
 
Estamos no campo. Vamos apanhar amoras. Vamos correndo, rindo como crianças. Quando regressamos a casa temos as mãos tingidas e feridas de mugir as silvas. Preparando as amoras para a sobremesa penso: eis o caviar silvestre!
 
 
ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006
 



28 julho 2024

antónio reis / poemas quotidianos


 
41
 
Partem todos
 
o abandono os leva
um barco
o medo
 
Quando voltam
para nenhum de nós
é um segredo
 
 
antónio reis
poemas quotidianos
tinta da china
2017
 






 

27 julho 2024

eduardo pitta / foi longa e dura…

 
 
 
Foi longa e dura a batalha do silêncio
por mesas de café, improváveis becos,
pátios e terraços.
 
 
Nada mais havia para argumentar.
 
 
Decerto haveria gente capaz de supor
que seria fácil
fazer as malas aos sentimentos.
 
 
Os outros continuariam como dantes.
 
 
 
eduardo pitta
olhos calcinados
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011





 

26 julho 2024

andrea cohen / alameda

 



 

Concordou em vivermos
juntos só depois
 
de termos pendurado imagens
de lugares em todas
 
as paredes, de modo que houvesse,
para onde se olhasse,
 
uma ruela ou uma alameda
verde, um ponto de fuga para
 
em direcção a ele nos movermos.
 
 
 
andrea cohen
serenamente sobre as lanternas
trad. francisco josé craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2024




25 julho 2024

alejandra pizarnik / quarto solitário

 
 
               
Se te atreves a surpreender
a verdade desta velha parede;
e as suas fissuras, rasgões,
formando rostos, esfinges,
mãos, clepsidras,
certamente virá
uma presença para a tua sede,
provavelmente partirá
esta ausência que te bebe.
 
 
 
alejandra pizarnick
antologia poética
los trabajos y las noches (1965)
tradução fernando pinto do amaral
tinta da china
2020
 



24 julho 2024

inger christensen / alfabeto

 
 
 
4
 
as diurnas pombas existem; os sonhadores, as bonecas,
os assassinos existem; as pombas, as pombas;
a neblina, a dioxina e os dias; os dias
existem; os dias e a morte; e os poemas
existem; os poemas, os dias, a morte
 
 
 
inger christensen
alfabeto
trad. ricardo marques
não (edições)
2024
 


23 julho 2024

paul auster / desenterrar

 



 

XV
 
Frágil amanhecer: a fronteira
da tua obscurecida lâmpada: ar
sem palavra: uma pendente
corola de cinza, arredondada em rosa.
Pões água na fervura
do mais pequeno
dos teus sóis: casca
de luz assoreada: a verdadeira semente
no pousio da tua palma, aprofundando-se
em torpor. Para lá desta hora, o olhar
ensinar-te-á. O olhar aprenderá
a desejar.
 
 
 
paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002
 





22 julho 2024

cesare pavese / não sabes das colinas

 
 
Não sabes das colinas
onde se verteu o sangue.
Todos nós fugimos
todos nós abandonámos
a arma e a honra. Uma mulher
olhava-nos enquanto fugíamos.
Só um de entre nós
estacou, de punho cerrado,
olhou para o céu vazio,
inclinou a cabeça e morreu
contra o muro, em silêncio.
É agora um farrapo de sangue
e um nome. Uma mulher
espera por nós nas colinas.
 
                 9 de Novembro de 1945
 
 
 
cesare pavese
a terra e a morte
virá a morte e terá os teus olhos
trad. rui caeiro
edições do saguão
2021
 




21 julho 2024

camilo pessanha / branco e vermelho

 



 

 

A dor, forte e imprevista,
Ferindo-me, imprevista,
De branca e de imprevista
Foi um deslumbramento,
Que me endoidou a vista,
Fez-me perder a vista,
Fez-me fugir a vista,
Num doce esvaimento.
 
Como um deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente e imenso,
Fez-se em redor de mim.
Todo o meu ser suspenso,
Não sinto já, não penso,
Pairo na luz, suspenso...
Que delícia sem fim!
 
Na inundação da luz
Banhando os céus a flux,
No êxtase da luz,
Vejo passar, desfila
(Seus pobres corpos nus
Que a distância reduz,
Amesquinha e reduz
No fundo da pupila)
 
Na areia imensa e plana
Ao longe, a caravana
Sem fim, a caravana
Na linha do horizonte,
Da enorme dor humana,
Da insigne dor humana...
A inútil dor humana!
Marcha, curvada a fronte.
 
Até o chão, curvados,
Exaustos e curvados,
Vão um a um, curvados,
Os seus magros perfis;
Escravos condenados,
No poente recortados,
Em negro recortados,
Magros, mesquinhos, vis.
 
A cada golpe tremem
Os que de medo tremem,
E as pálpebras me tremem
Quando o açoite vibra.
Estala! e apenas gemem,
Pavidamente gemem,
A cada golpe gemem,
Que os desequilibra.
 
Sob o açoite caem,
A cada golpe caem,
Erguem-se logo. Caem,
Soergue-os o terror...
Até que enfim desmaiem,
Por uma vez desmaiem!
Ei-los que enfim se esvaem,
Vencida, enfim, a dor...
 
E ali fiquem serenos,
De costas e serenos…
Beije-os a luz, serenos,
Nas amplas frontes calmas,
Ó céus claros e amenos,
Doces jardins amenos,
Onde se sofre menos,
Onde dormem as almas!
 
A dor, deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente e imenso,
Foi um deslumbramento.
Todo o meu ser suspenso,
Não sinto já, não penso,
Pairo na luz, suspenso
Num doce esvaimento.
 
Ó Morte, vem depressa,
Acorda, vem depressa,
Acode-me depressa,
Vem-me enxugar o suor,
Que o estertor começa.
É cumprir a promessa.
Já o sonho começa...
Tudo vermelho em flor...
 
               Clepsidra (1920)
 
 
 
camilo pessanha
edoi lelia doura
antologia das vozes comunicantes da
poesia moderna portuguesa
organizada por herberto helder
assírio & alvim
1985




20 julho 2024

jaime rocha / zona de caça

 



 

36.
 
É o tempo das cinzas. O tempo em que os pagens
procuram o rasto nos espelhos. O tempo do choro.
O corpo da mulher regressa para a luz e eles
caminham nessa direcção, indiferentes aos gestos
e à música. Os seus pés são feitos de chumbo, secam
junto aos muros para que as plantas cresçam e a
mulher se possa deitar enquanto a lua percorre
o seu ciclo de nudez. O cavaleiro contempla a morte,
uma árvore quieta entre dois cabeços, um pombo
com uma asa ferida, comendo a própria cria. Tudo
se resume a pedras deixadas por um deus anterior
e entre elas uma zona de uvas, um átrio, uma
morada onde ela poisa os cabelos sem se magoar.
 
 
 
jaime rocha
zona de caça
relógio d´água
2002
 



19 julho 2024

paul éluard / ainda escuto a voz

 



 

 

Ainda escuto a voz
 
Ama ama
Igual ao castanheiro te sentirás ficar
 
Floresta será a tua sombra
Na tua fronte poisam os pássaros e as estrelas
 
Só poderás dormir um sono todo outro
E outros olhos sem sono vigiarão nos teus
 
Ficarás como louco ao pensares na ventura
E tomarás nos braços as ramagens do sol
 
 
 
paul éluard
poemas políticos
trad. carlos grifo
editorial presença
1971



18 julho 2024

jack gilbert / além do prazer

 
 
 
Gradualmente percebemos que o que se sente não é tão importante
(por muito encantador ou cruel) como o que o sentimento contém.
Não o que nos acontece na infância, mas o que estava
dentro do que aconteceu. Ken Kesey sentado nos bosques,
atrás da sua cerca de motas esbranquiçadas, disse que quando
escrevia em ácidos, não estava a escrever sobre isso.
Usava o que escrevia como clarões para encontrar o caminho de volta
ao que conhecia então. A poesia regista
sentimentos, prazeres e paixão, mas a melhor procura
o que está além do prazer, fora do processo.
Não tanto a paixão quanto aquilo para que pode o fervor
ser um caminho. A poesia pesca-nos para encontrar um mundo
peça por peça, como a fotografia interrompe o fluxo
para nos dar tempo de ver cada coisa separada e suficiente.
O poema escolhe parte do nosso inesgotável fluir em diante
para conhecer o seu mérito com atenção.
 
 
 
jack gilbert
deixem-me ser ambos
trad. leonor castro nunes e marcos pereira
destrauss
2020




17 julho 2024

rui diniz / notas de vigo

 
 
 
Em Vigo preocupei-me sobretudo com o calor excessivo.
Entrei num café claro para beber cerveja. Escrevi um
poema que não sei onde pára. No meio de tudo
o que me acontece e que por vezes desejei
que acontecesse, sou eu que me procuro. Uma pro-
cura relativa, comedida, bem entendido. Porque
a certa altura toma-me o cansaço.
E quase me destruo, ao pensar que cheguei a um
vazio oposto a tudo quanto procurava. A respeito
de mim em Vigo, quase nada. queria comprar
livros. Escolhi dois livros que depois verifiquei não
serem de grande utilidade. Mas ainda não os li.
Ah, gosto de cemitérios. Agradeço ao Nuno, isso. Mas
em Vigo os mortos deambulavam estranhamente
pelas próprias ruas e a galiza continuava deste
modo a ser-me insuportável.
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022



16 julho 2024

carlos de oliveira / descida aos infernos

 
 
12
 
Foi por isso que vim,
descendo aos infernos que ardem
no olhar futuro
dos animais fogosos
que estás criando
em teu ventre secreto.
 
Foi por isso que vim,
morrendo lentamente
as mortes embuçadas no trajecto.
 
 
 
carlos de oliveira
descida aos infernos
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1982




15 julho 2024

miguel serras pereira / de alguns rostos perdidos

 
 
 
De alguns rostos perdidos do rosto fica ou solta-se
anónimo esse brilho ao acaso deixado
esparso entre os lugares por onde um dia passaram
tão súbito de novo que assim talvez devêssemos
morrer como quem nele enfim de si se fosse
 
e deixasse ir-se a vida esquecida no seu rasto
 
 
 
miguel serras pereira
á tona do vazio & reprise
cinquenta anos de poesia de miguel serras pereira 1969-2019
véspera
barricada de livros
2022




 

14 julho 2024

pedro homem de mello / sopro

 
 
 
Passas como passa
O riso do vento
Mas na tua graça
Não há pensamento.
 
Porém, sem teu riso,
Que seria a graça
Do meu pensamento?
 
 
 
pedro homem de mello
jardins suspensos (1937)
poesias escolhidas
imprensa nacional-casa da moeda
1983





13 julho 2024

nuno guimarães / seguro então a vida em pleno

 
 
Seguro então a vida em pleno
solo. Aí me deito
com os sinais perpétuos: árvores,
bosque, sombra, a permanência
de objectos olhados ou suspensos.
Agora, a outra lei – extractos
De sol sobre a retina – cede. Ao fácil
 
vento, à comoção do ar
pensado, onde se vive. Deste lugar os
elementos se afastam. Estão mortos,
inactivos no foco. Ou pela sombra
gravados, suspensos de algum livro.
Criaram-se da luz! São objectos
perecíveis: na imprecisão
da imagem, no seu repouso
exterior – entre a ciência e a vista.
 
 
 
nuno guimarães
extractos
entre sílabas e lavas
poesia completa
assírio & alvim
2024
 



12 julho 2024

luís quintais / derrota

 
 
És o derrotado.
Por uma impressão, um domínio
de imagens onde os grandes trevos
desenham as suas sombras,
 
por um meio-dia sem esperança
ou virtude, uma floresta
de bichos atónitos no fulgor
desbrido de uma clareira.
 
Os nomes tinham coisas no início.
Depois perderam-se os nomes
na sua relação (sanguínea, densa)
com as coisas. As peças de que se compunha
a natureza deslocaram-se para parte incerta.
 
Escreves atestando a derrota.
 
 
 
luís quintais
nocturama
assírio & alvim
2024




11 julho 2024

josé miguel silva / o atalante – jean vigo (1934)



 

 
No dia em que fomos ver O Atalante
eu levava, por coincidência, um cubo de gelo
no bolso do casaco. Lembro-me de tremer
um pouco. Até aí, tudo bem. Pior,
foi quando te ouvi pronunciar, distintamente:
quem procura o seu amor debaixo de água,
acaba constipado.
Na altura, ri-me: pensei que galavas do filme.
Sou tão estúpido.
 
 
 
josé miguel silva
movimentos no escuro
relógio d’água
2005




 

10 julho 2024

fernando assis pacheco / o pensionista de caxias



 

 
Já o fotografaram em pijama agora de gilet claro e é o mesmo homem
fala baixo aos jornalistas com repetidas desculpas
por não saber responder a tal assunto (preso há três anos)
enquanto da Pide tem uma imprecisa e vaga como explicar lembrança
 
mas instado a dizer se aceitaria ainda uma vez ser o chefe
de uma qualquer polícia dessas que afinal «iguais em todo o lado»
encolhe os ombros. Por «honestidade» sim senhor repórter aceitaria
 
 
 
fernando assis pacheco
a profissão dominante (1982)
a musa irregular
tinta-da-china
2019
 



 

09 julho 2024

eugéne guillevic / carnac (fragmentos)

 
 
 
7
 
OUVE bem o que faz
A pólvora explodindo.
 
Ouve bem o que faz
O frágil violino.
 
 
 
guillevic
poesias de guillevic
tradução de david mourão-ferreira
editora ulisseia
1965
 




08 julho 2024

arsenii tarkovskii / pela noite

 
 
 
Pela noite concedias-me o favor,
Abriam-se as portas do altar
E a nossa nudez iluminava o escuro
À medida que genuflectia. E ao acordar
Eu diria «Abençoada sejas!»
Sabendo como pretenciosa era a bênção:  
Dormias, os lilases tombavam da mesa
Para tocar-te as pálpebras num universo de azul,
E tu recebias esse sinal sobra as pálpebras
Imóveis, e imóvel estava a tua mão quente.
 
 
arsenii tarkovskii
8 ícones
versão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987




07 julho 2024

antónio gedeão / amador sem coisa amada

 




 
Resolvi andar na rua
com os olhos postos no chão.
Quem me quiser que me chame
ou que me toque com a mão.
 
Quando a angústia embaciar
de tédio os olhos vidrados,
olharei para os prédios altos,
para as telhas dos telhados.
 
Amador sem coisa amada,
aprendiz colegial.
Sou amador da existência,
não chego a profissional.
 
 
 
antónio gedeão
poemas escolhidos
edições joão sá da costa
1999




06 julho 2024

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

 
 
 
VII. Noite Transfigurada
 
Criança adormecida, ó minha noite,
noite perfeita e embalada
folha a folha,
noite transfigurada,
ó noite mais pequena do que as fontes,
pura alucinação da madrugada
– chegaste,
nem eu sei de que horizontes.
 
Hoje vens ao meu encontro
nimbada de astros,
alta e despida
de soluços e lágrimas e gritos
– ó minha noite, namorada
de vagabundos e aflitos.
 
Chegaste, noite minha,
de pálpebras descidas;
leve no ar que respiramos,
nítida no ângulo das esquinas
– ó noite mais pequena do que a morte:
nas mãos abertas onde me fechaste
ponho os meus versos e a própria sorte.
 
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000
 


05 julho 2024

antónio gancho / arco-íris

 
 
 
A luz arco-irizante dos céus
numa noite de trovoada
estabelece-se depois de dia
num mistério o arco-íris.
Tem sete cores o arco-íris
ou o arco-íris compõe-se de sete cores
vermelho, violeta, anil, roxo, lilás, castanho e amarelo.
Depois destas sete cores acabada a trovoada
a gente pode parar, tirar o chapéu, etc., etc.
Ou aussitôt que l’idée du déluge se fût rassise
un lievre s’arrêta dans les sainfoins et les clochettes mouvantes
et dit sa prière à l’arc-en ciel à travers la toile de l’araignée
E depois é assim. Oh les pierres précieuses qui se cachaient
no fim do mundo onde fica o arco-íris
les fleurs qui regardaient déjà.
No entrementes Madame établit un piano dans les Alpes.
Pois ou aussitôt que l’idée du delúge acabou
ou assim mal acabou a ideia que já não havia de haver dilúvio
é que então uma lebre parou de repente entre as papoilas no feno e entre as
papoilas ou as campainhas de feno e
disse a sua prece ao arco-íris feito e apareceu o arco-íris
ao qual então a lebre disse uma prece fez uma prece.
E chovia muito nesse dia.
 
 
 
antónio gancho
gaio do espírito (dez. 85 / Fev. 86 )
o ar da manhã
assírio & alvim
1995




04 julho 2024

gonçalo m. tavares / perceber os deuses

 
 
 
Perceber os deuses e a catástrofe; melhorar o dia, percebendo.
Aproveitar o chão para subir: nada acontece no céu até lá chegarmos.
Atar o invisível ao quotidiano com uma corda de estender a roupa:
devorar dias, oferecê-los sobre a mesa como um almoço. Fugir.
Não têm factos: s Deuses bebem apenas: fumam velhos, recém-
-nascidos: no céu os animais valem tanto como os reis.
Só o sangue importa; e o modo como se morre.
Os Deuses também morrem, mas neles, os ossos, desaparecem
de forma distinta.
Como se fôssemos água: alguém nos bebe.
 
 
 
gonçalo m. tavares
1 poesia
relógio d´água
2004
 



03 julho 2024

pat boran / desde que te foste embora…




 
os dias aprenderam uma linguagem nova,
os anoiteceres falam em línguas –
 
as vozes da chuva na janela do quarto,
do vento a sussurrar na rua varrida pela chuva,
 
os canos de casa a barulharem,
torneira atrás de torneira.
 
A perda descobre novas canções
em instrumentos antigos.
 
 
 
pat boran
o sussurro da corda
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018




 

02 julho 2024

guillaume apollinaire / laços

 




 

 
Cordas feitas de gritos
 
Sons de sinos através da Europa
Séculos enforcados
 
Carris que amarrais nações
Não somos mais que dois ou três homens
Livres de todas as peias
Vamos dar-nos as mãos
 
Violenta chuva que penteia os fumos
Cordas
Cordas tecidas
Cabos submarinos
Torres de Babel transformadas em pontes
 
Aranhas-Pontífices
Todos os apaixonados que um só laço enlaçou
 
Outros laços mais firmes
Brancas estrias de luz
Cordas e Concórdia
 
Escrevo apenas para vos celebrar
Ó sentido ó sentidos caros
Inimigos do recordar
Inimigos do desejar
 
Inimigos da saudade
Inimigos das lágrimas
Inimigos de tudo o que eu amo ainda
 
 
 
guillaume apollinaire
poesia do século xx
(de thomas hardy a c. v. cattaneo)
antologia e tradução de jorge de sena
editorial inova
1978
 




01 julho 2024

john ashbery / a vida como um livro que se fechou

 



 

Apagámos todas as letras
E a afirmação mantém-se vagamente,
Como uma inscrição sobre a porta de um banco,
Com números romanos difíceis de decifrar,
E que, à sua maneira, talvez digam de mais.
 
Não estávamos a ser surrealistas? E porque é que
No bar estranhos observavam o teu cabelo
E as tuas unhas, como se o corpo
Não procurasse e encontrasse a posição mais confortável,
E a tua cabeça, essa coisa estranha,
Não ficasse cada vez mais problemática de cada vez que alguém fechava a porta?
 
Falámos um com o outro,
Levámos cada coisas só até onde podíamos,
Mas na ordem certa, e assim ela é música,
Ou qualquer coisa como música, falando da distância.
Temos apenas algum saber
E mais que a ambição necessária
Para o transformar num fruto feito de nuvem
Que nos protegerá até desaparecer.
 
Mas o seu sumo é amargo,
Não temos disso nos nossos jardins,
E tu devias subir até onde mora o saber
Com esse sarcasmo desprendido, para aí alguém
Te dizer de vez: não está aqui.
Só fica o fumo,
E o silêncio, e a velhice
Que fomos construindo como uma paisagem,
De alguma maneira, e a paz que bate todos os recordes,
E o cantar no campo, um prazer
Que há-de vir e não nos conhece.
 
 
 
john ashbery
uma onda e outros poemas
tradução colectiva / joão barrento
poetas em mateus
quetzal editores
1992