30 junho 2021

mário-henrique leiria / esperar-te

 
 
esperar-te
esperar-te da mesma maneira solitária
com que se tem
saudades da paisagem numa vista
ficar incerto
– talvez desconhecido –
olhando as mãos vazias e inúteis
um cigarro somente
enquanto passam minúsculos animais
e o fumo te espera também
esperar
esperar apenas e não já esperar-te
esperar qualquer coisa
um rio que corra lentamente
um grande desastre de automóveis
o desmoronar da torre antiquíssima
um corpo que apareça de súbito
esperar
só por esperar
tanto pode ser que venhas
com que não venhas
que nunca venhas
depois
quando chegares
já eu parti.
 
 
 
mário-henrique leiria
obras completas
poesia
e-primatur
2018






 

29 junho 2021

steve klepetar / aula

 
 
Ela ensinou-me a apanhar chuva com a língua,
a saborear a cidade e as nuvens. Segurou a minha
mão e ensinou-me a ser pássaro, a deslizar
 
para um corpo de ossos vazios, a espreitar das copas
das árvores, a bicar, arranhar e voar. Ensinou-me
a sentir o vento como os seus dedos no meu cabelo,
 
a como não ter medo de saltar para a rebeldia
da sua voz, a música do seu corpo, mel
a pingar dos seus dedos como fios de ouro pegajosos.
 
 
 
steve klepetar
o filho da bebedora de café
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018





28 junho 2021

jack gilbert / o segredo

 
 
Existe uma beleza fácil nas estátuas de bronze
resgatadas do oceano, mas há valor
no informe onde a nossa doce mente é criada.
A verdade é como uma pérola, disse Francis Bacon.
É bela à clara luz, mas o carbúnculo
é mais precioso pelo seu profundo rubor se mostrar melhor
a várias luzes. «Um pouco de mentira
sempre aumenta o prazer.» Quando os chineses faziam
um círculo de pedras no topo dos seus poços,
uma ficaria enviesada de modo que o círculo
parecesse mais redondo. Irregularidade é o segredo
da música e da voz da grande poesia.
Quando um homem recorda a beleza do seu amor perdido
é a parte imperfeita dela que mais relembra.
O Pártenon arrasado é magnificado pelo seu dano.
 
 
 
jack gilbert
deixem-me ser ambos
trad. leonor castro nunes e marcos pereira
destrauss
2020





27 junho 2021

jorge de sousa braga / a ferida aberta

 
 
Há uma ferida aberta que
Sangra ciclicamente  um
 
Cíclame que floresce às
Horas mais inapropriadas
 
Quem me dera poder guardar
Todos esses milhões de flores
 
Que acabam diariamente em
Pensos higiénicos nos contentores
 
 
jorge de sousa braga
a ferida aberta
assírio & alvim
2001





26 junho 2021

josé luís peixoto / na hora de pôr a mesa

 
 
na hora de pôr a mesa, éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva, cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho, mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco.
 
 
josé luís peixoto
a criança em ruínas
quasi
2002






 

25 junho 2021

eunice de souza / alvorada II

 
 
Falamos através de continentes.
É pouco provável que nos voltemos a encontrar.
Não posso fumar, não posso viajar,
nenhuma felicidade, claro.
Sentindo um vento frio nas costas
renunciamos à filosofia.
Acabaram os amantes errantes, maridos,
passarões não propriamente sensatos.
Ainda temos a idade com que nos conhecemos.
 
 
 
eunice de souza
coração de abacate
trad. francisco josé craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2018

 




24 junho 2021

josé miguel silva / má sorte que ela fosse mercenária

 
 
 
                                         It´s a miracle you’re not cynical.
                                                                                  Felt
 
 
Não era só a bela do bairro, era a lusa Marilyn
dos arrabaldes portuenses. Alta, toda loira,
só lhe faltava miar. De longe e de perto a segui
ao longo dos anos mais tolos. Uma tarde,
no acaso de uma rua: meu amor perdido,
ainda moras em Vilar do Paraíso?
Quando lhe telefonei dias depois
quis perguntar quanto é que eu ganhava.
Ao saber que era tudo lágrimas e livros,
ouvi – ai sim? – como arrefecia o paraíso
do outro lado da linha. Os meus 25 anos
aprenderam aí uma lição qualquer.
Mas já não me lembro muito bem
que aplicação ela teve, na gorada sequência
desses meses. A que só volto, agora,
porque já posso rir-me à vontade.
 
 
 
 
josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d´água
2003





23 junho 2021

antónio reis / poemas quotidianos

 
 
27
 
Conheço
entre todas
a jarra que enfeitaste
 
têm o jeito
com que compões o cabelo
as flores
que tocaste
 
 
antónio reis
poemas quotidianos
tinta da china
2017





22 junho 2021

josé saramago / aniversário

 
 
Pai, que não conheci (pois conhecer não é
Este engano de dias paralelos,
Este tocar de corpos distraídos,
Estas palavras vagas que disfarçam
O intransponível muro):
Já nada me dirás, e eu não pergunto.
Olho, calado, a sombra que chamei
E aceito o futuro.
 
 
 
josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018





21 junho 2021

eugénio de andrade / matéria solar

 
 
49
 
Sei onde o trigo ilumina a boca.
Invoco esta razão para me cobrir
com o mais frágil manto do ar.
 
O sono é assim, permite ao corpo
este abandono, ser no seio da terra
essa alegria só prometida à água.
 
Digo que estive aqui, e vou agora
a caminho doutro sol mais branco.
 
  
 
eugénio de andrade
matéria solar
poesia
fundação eugénio de andrade
2000





 

20 junho 2021

bob dylan / deitei tudo a perder

 
 
Outrora tive-a nos meus braços
Ela disse que ficaria para sempre
Mas eu fui cruel
Tratei-a como um idiota
Deitei tudo a perder
 
Outrora tive montanhas na palma da mão
E rios que aí corriam todos os dias
Devo ter estado louco
Nunca soube o que tinha
Até que deitei tudo a perder
 
O amor é tudo o que existe, faz o mundo girar
O amor e somente o amor, não se pode nega-lo
Não importa o que penses sobre ele
Simplesmente não serás capaz de passar sem ele
Aceita o conselho de alguém que tentou
 
Assim se encontrares alguém que te dê todo o seu amor
Leva-o para o teu coração, não o deixes perder-se
Porque uma coisa é certa
De certeza que ficarás a sofrer
Se o deitares a perder
 
 

bob dylan
canções 1962-2001
volume 1 (1962-1973)
nashville skyline
trad. angelina barbosa e pedro serrano
relógio d´água
2008





 

19 junho 2021

arthur rimbaud / sensação

 
 
 
Pelas tardes azuis de Estio, irei pelos trilhos,
Picado pelas espigas, calcar a erva miúda:
Sonhador, sentirei o frescor que os pés pisam.
Virá banhar o vento a minha fronte nua.
 
Irei sem dizer nada, sem pensar em nada:
Mas o amor infinito subirá no meu ser,
– Boémio, pela Natureza, de bem longa jornada,
Feliz, como se fosse comigo uma mulher.
 
Março de 1870
 
 
 
jean-arthur rimbaud
poesia
obra completa
trad. miguel serras pereira e joão moita
relógio d´água
2018






 

18 junho 2021

fiama hasse pais brandão / das lágrimas

 
 
A pequeníssima aranha assusta
a criança que eu estava a olhar,
e chora. “Meu duplo filho,
não temas a intensa labuta
da caçadora de insectos.
Ela estende uma rede, tão frágil
que a podes romper com o menor dedo.
A menos que, antes do gesto, encontres
a beleza do tecido luminoso,
quando a aranha ofende o Sol
roubando-lhe alguns raios,
ou a beleza da água que ela retém,
como diamantes sem preço,
rosácea de lágrimas.”
 
 
fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002





17 junho 2021

maria gabriela llansol / o começo de um livro é precioso

 
 
195
 
Paixão. Atirou-lhe rosas vermelhas que a magoaram
Na cara. Levantou as saias (num gesto espontâneo de
Protecção) e cobriu-a com o algodão leve da combinação.
Havia lágrimas. Como havia alguma podridão de espírito
A embaciar as vidraças. Um raio de sol casto atravessou-as
E, por um ponto único, deu-lhe a mão, pedindo-lhe que as
Baixasse.
 
 
 
maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003





16 junho 2021

maria alberta menéres / quando o sol não vier

 
 
XLIII
 
Quando o sol não vier
nesse dia diferente do que sei,
quando tudo o que traz a madrugada
for tão sincero e extenso
como esta areia fria,
farei então, da bruma e do silêncio,
todas as mãos que me faltam,
 
 
e nelas repousarei!
 
 
 
maria alberta menéres
meditação
poesia completa
porto editora
2020

 



15 junho 2021

ruy belo / acontecimento

 
 
Aí estás tu à esquina das palavras de sempre
amor inventado numa indústria de lábios
que mordem o tempo sempre cá
E o coração acontece-nos
como uma dádiva de folhas nupciais
nos nossos ombros de outono
Caiam agora pálpebras que cerrem
o sacrifício que em nossos gestos há
de sermos diários por fora
Caiam agora que o amor chegou


 
ruy belo
todos os poemas I
dedicatóra
assírio & alvim
2004





14 junho 2021

antónio franco alexandre / syrinx, ficção pastoral

 
 
III
 
Quem diria, vou viver
além do século gasto,
só é pena o calendário
me trocar a identidade
(Venho contigo ao jardim
com dedos vazios de rimas
quem diria, eu que vou ser
presidente dos cantores)
Tenho na boca o aço
do pesadelo real
fiquei preso à voz do eco
é banal! Ao telefone
só, de plástico, etc.,
procura, sigilosa, desejável foto
(enfim, por fax, a cores).
Quem diria, preso à voz
não sei de quem, que me ouvia.
 
 
antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999

 




13 junho 2021

fernando pinto do amaral / escotomas

 
 
3.
Apagaram-se as luzes. Na memória
vibra a última sombra, a solidão
de um anjo cego abrindo pouco a pouco
os olhos. Desta noite
nascem todas as noites de quem fala
em silêncio e afoga
as suas dores no sangue incandescente
de uma estrela já morta, a cintilar
sob escuros escombros, entre sonhos
ainda por viver. Em cada alma
escorre um fio de mercúrio, essa lágrima
anunciando o paraíso, algures
no interior da treva.
 
 
 
fernando pinto do amaral
às cegas
relógio de água
1997




12 junho 2021

joão miguel fernandes jorge / das nossas mãos que restará fazer?

 
 
Das nossas mãos que restará fazer?
 
Quem há-de lembrar
a cadeira a porta a árvore?
 
O tempo sobre o nosso sangue
o sangue sob o nosso corpo
das nossas mãos que restará fazer?
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019






11 junho 2021

luís miguel nava / no fogo da memória

 
 
Começa-se o silêncio a desenhar
nos interstícios da carne, a que se prendem
imagens que no fogo
lento da memória se apuraram
de dia para dia e que o passado
nos serve agora como uma iguaria.
 
 
luís miguel nava
o céu sob as entranhas
poesia
assírio & alvim
2020




 

10 junho 2021

agustina bessa-luís / portugal


De repente, cada um de nós vê um território banhado de mar agitado e frio, com manhãs verdes de nevoeiro e com os campos onde os nomes das mais pequenas ervas nos fazem humedecer os olhos
 
*
 
Evidentemente que Portugal é Europa. Mas uma Europa de refugiados, um lugar mantido em independência para servir de exílio a vencidos e enganados. Uma Suíça doutro padrão, onde nada se agita e tudo se murmura. Portugal foi mundo de mercadores, pátria para imigrados, delícia dos tímidos e calamidade para santos e perversos. Para o meio termo é boa casa, e não o digo em tom pejorativo, muito pelo contrário. E Alijó, no tempo das cerejas, tem a medida de Wall Street.
 
*
 
Os Portugueses não são pontuais nem respeitadores das praxes. Não têm espírito de corpo, em suma, e aproveitam todas as ocasiões para o demonstrar. Eu creio que Benjamin Constant nunca poderia vislumbrar nos Portugueses algo que se parecesse com a alquimia da perseguição. Pois a unanimidade não lhes parece necessária nas opiniões; a oposição é vista como uma mania curável. Tudo a inteligência remedeia, e por isso a submissão é absolutamente fora de causa.
 
*
 
Quando nomeamos Espanha e Portugal, vemos o palco da História e nós como protagonistas. Isto diminui a nossa iniciativa, ao mesmo tempo que enriquece o nosso sentido de nação.
 
Eu creio que foi Dostoievski quem disse que para fazer um país é preciso a convicção de que ele, país, é o melhor do mundo; doutro modo, não se passa de constituir apenas um material etnográfico. Nós, Portugueses, sempre desenvolvemos uma vaidade expansiva frente ao orgulho caudaloso e sério do povo da Espanha. Às vezes até somos modestos por fora para melhor gozar o nosso vinculado prazer de superioridade. E quando nos louvam a humildade, não pressentem que ela é mais desdém do que caturra virtude de confessionário.
 
 
 
agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008




09 junho 2021

eduardo pitta / hesita bastante

 
 
Hesita bastante. O inferno
é uma disciplina como qualquer outra.
Dias de vinho e rosas
pagos a peso de flagelo.
O arrebatado comércio dos sentidos?
Na cidade aberta a dementada
 
 
 
eduardo pitta
arbítrio
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011





08 junho 2021

alejandra pizarnik / moradas

 
 
                  para Théodore Praenkel
 
 
Na mão crispada de um morto,
na memória de um louco,
na tristeza de uma criança,
na mão que procura o copo,
no copo inalcançável,
na sede de sempre.
 
 
 
alejandra pizarnick
antologia poética
los trabajos y las noches (1965)
tradução fernando pinto do amaral
tinta da china
2020






 

07 junho 2021

carlos poças falcão / lamenta-te, pois já não é alegre

 
 
Lamenta-te, pois já não é alegre
o vento sobre os campos.
Não há descoberta nem transfiguração
quando o calendário vem com as primícias.
 
Lamenta-te, lamenta-te.
Já não tens a nudez certa
nem a fragrância antiga.
 
 
carlos poças falcão
sombra silêncio
opera omnia
2018





06 junho 2021

juan vicente piqueras / papoilas


 
 
                                           A Izer Sarajlic
 
 
 
Sobre o antigo campo de batalha
onde morreram milhares de rapazes
volta a crescer o trigo, salpicado
aqui e ali por ardentes papoilas.
 
E dois apaixonados, que terão
mais ou menos a idade dos soldados
que então aqui morreram,
fazem amor entre as searas.
 
Derrubam o trigo. Esmagam as papoilas.
 
 
juan vicente piqueras
instruções para atravessar o deserto
trad.joão duarte rodrigues
e manuel alberto valente
assírio & alvim
2019





05 junho 2021

marcos foz / vir ao mundo nesta casa sem tecto

 
 
[…]
 
vir ao mundo nesta casa sem tecto
decreto lei súmula
será? Calibrar
nosso papel no arranjo
e só avisam quando a evasão
se ergue no papel vegetal e
a cidade pela noite com as suas mil e
duas patifes donzelias por decifrar
antros vorazmente escondidos
umas horas antes do toque das campainhas
oficiais a marcha das botas com
restos difíceis de cúpula nas reentrâncias
           & vigilantes em cada esquina
 
pouco importa termos um corpo que
falha amavelmente alguém que diz
querer morrer uma memoria apertada
num canto coberto a linho
branco que nenhuma navalha ou carimbo..
 
[…]
 
 
marcos foz
vaca preta
bestiário/snob
2021






 

04 junho 2021

claudio rodríguez / ao ruído do douro

 
 
E como eu reparava
que era tão popular pelas ruas
passei a ponte e, adeus, para trás tudo.
Mas até aqui me chega, apaguem-no, estou sempre
a ouvir aquele ruído e subo e subo,
ando de vila em vila, encosto o ouvido
ao voo do pardal, ao sol, ao ar,
eu sei lá, ao céu, ao peito das moças,
e sempre o mesmo som, igual mudança.
Que sítio é este sem trégua? Que hostes, que altas lides
me saqueiam a alma a toda a hora,
rendem a torre da divisa branca,
abrem aquele portilho, o silencioso,
o nunca falso? E és
tu, músico do rio, meu fundo fôlego,
lhaneza e voz e pulsar dos meus homens.
Seria tão melhor
Esperar! Hoje não posso, hoje estou duro
de ouvido, após tantos anos passados
com os de ruim terra. Mas eu voltei.
Campo da verdade, qual a traição?
Vejam como tanto tempo, tanta empresa
Fazem o mesmo ruído!
Vejam só como temos tido sempre
tanta pureza ao nosso lado, em casa,
e continuamos surdos!
Já nem mais uma tarde! Sê bem-vinda,
manhã. Estou pronto: que testemunhem
por mim os que ainda ouvem. Oh, rio,
fundador de cidades,
soando em tudo menos no teu leito,
faz com que o teu ruído seja canto,
seja o nosso trabalho vida afora.
Se um dia a solidão, o ver o homem
na venda, o vinho, o desamor ou o desânimo
assaltam o que bem fizeste teu,
põe-te como hoje em pé de guerra e guarda
todas as minhas portas e janelas
como sempre fizeste,
tu, que oiço agora como ouvia outrora,
tu, rio da minha terra, Duradouro.
 
 
 
claudio rodríguez
sem epitáfio
trad.miguel filipe mochila
língua morta
2019




03 junho 2021

jorge velhote / calculada melancolia

 
 
De um e do outro tudo sabíamos. O mar,
o rio, se cruzando pelas nossas largas calças,
os brinquedos de lata golpeando a curiosidade,
o primeiro sabor do sangue.
Alguns antecedentes, limalhas de sol, silenciosas ferrugens
que, entre mesas e chávenas de café,
se permutam.
 
Dessa espécie de som, dessa perdida água,
vivíamos os dias, lendo livros, olhando montras,
as belíssimas mulheres que nos cotejavam o olhar, manobrando
ancas, os metálicos lábios como relógios,
detalhes.
 
Sem uma única palavra, calculada melancolia,
comovidos, os corações cambiávamos,
triunfantes.
 
 
 
jorge velhote
hífen 2 abr / set 88
cadernos semestrais de poesia
1988





 

02 junho 2021

fernando lemos / hoje

 
 
Hoje
qualquer criança
podia ser dona do mundo
ao rasgar
este silêncio
de pele
que envolve a paisagem
 
 
fernando lemos
poesia
porto editora
2019








01 junho 2021

louise glück / a estrela da tarde

 
 
Hoje, pela primeira vez em muitos anos,
surgiu-me de novo
uma visão do esplendor da terra:
 
no céu do entardecer
a primeira estrela pareceu
tornar-se mais brilhante
enquanto a terra escurecia
 
até já não poder ficar mais escura.
E a luz, que era a luz da morte,
pareceu devolver à terra
 
o seu poder de consolo. Não havia
outras estrelas. Apenas aquela
cujo nome eu conhecia
 
pois na minha outra vida a
ofendera: Vénus,
estrela da tarde,
 
a ti dedico
a minha visão, já que nesta superfície vazia
 
derramaste luz suficiente
para tornar o meu pensamento
de novo visível.
 
 
 
 
louise glück
averno
tradução de inês dias
relógio d´água
2020