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24 novembro 2023

jorge velhote / bolonha, chuva e menina

 




 
                                                   para Mário Cláudio
 
 
 
No seu peito colegial, coberto de rumorosos plátanos de verona,
abriguei os dedos, a caruma das estrelas,
brancas pombas.
 
A claridade do dia findara; o odor da terra húmida
entardecia coalhando o azul de uns olhos que vindimavam
o sangue, o irisado da alma:
 
chovia. Pelo curriculum do vento partimos, misturando o amargo linho
                                                                                   [dos segredos,
A verdade dos sorrisos.
Por furtivos pomares, inquietos canaviais,
o corpo escondemos, os relâmpagos,
mágoas de silêncio –, prudentíssimas labaredas.
 
Embora chovesse, e muito, o corpo imitava o sol, secava
a erva. Penumbras de sombra a cada passo setembro
mordia de luz, modulava a ternura, intensamente.
Pelos campos, entre o íntimo perfume das vozes, um arado de loucura,
uma lágrima de engenhar sulcos, sementes, folhas, gomos de água,
galhos de melancolia,
 
gerações de chuva, secretos tanques enredando a noite,
a literária morte: o labirinto fulgurante de um versátil estilo
de aprendizagem desmedida.
 
Seduzida, na mão
um ramo de chuva, um jardim
de macerados lábios
 
dedicados.
 
 
 
jorge velhote
colóquio letras nr. 90
março 1986
fundação calouste gulbenkian
1986
 



09 novembro 2023

jorge velhote / fria é a água na escuridão

 





 
.13.
 
Há uma árvore. Ignoras o seu nome
 
ou o vento que faísca nos seus ramos
 
como um braço contra a morte.
 
Há a água. Subitamente despedindo
 
contra o vento os caminhos
 
o canto altíssimo das aves.
 
E nos teus pulmões germina uma palavra
 
como um testamento – uma página
 
cerzindo a fotografia
 
de uma bala.
 
 
 
jorge velhote
âmago
edições sem nome
2018
 





03 junho 2021

jorge velhote / calculada melancolia

 
 
De um e do outro tudo sabíamos. O mar,
o rio, se cruzando pelas nossas largas calças,
os brinquedos de lata golpeando a curiosidade,
o primeiro sabor do sangue.
Alguns antecedentes, limalhas de sol, silenciosas ferrugens
que, entre mesas e chávenas de café,
se permutam.
 
Dessa espécie de som, dessa perdida água,
vivíamos os dias, lendo livros, olhando montras,
as belíssimas mulheres que nos cotejavam o olhar, manobrando
ancas, os metálicos lábios como relógios,
detalhes.
 
Sem uma única palavra, calculada melancolia,
comovidos, os corações cambiávamos,
triunfantes.
 
 
 
jorge velhote
hífen 2 abr / set 88
cadernos semestrais de poesia
1988





 

01 março 2021

jorge velhote / janela indiscreta

  
 
O jardim que rodeia a casa antiga
é um sobressalto no silêncio
penumbroso da luz. A sombra
das tuas pernas, movendo-se,
desperta-me a boca. Um arbusto que pulsa como um peixe
percorre-me repousadamente.
 
No limite contemplado das janelas dignas
de oitocentos, a névoa desce com a noite,
estreita o vento na fralda da camisa, frustra
a inquieta adolescência de um rosto impúdico.
Abre janelas ao murmúrio do tempo,
ao vagaroso esvoaçar
do pensamento. Irremediavelmente, a barba cresce
 
fiel à distância.
 
 
 
jorge velhote
hífen 2 abr / set 88
cadernos semestrais de poesia
1988






18 novembro 2020

jorge velhote / fria é a água na escuridão

 
 
.2.
 
Eras sem destino como o vento.
 
Ou os pássaros exactamente.
 
Sob o abismo do silêncio a imensidão
 
das sombras é como estrume.
 
Ou a pureza dos pastores.
 
Diante da chuva o medo cresce
 
como o bosque inacessível.
 
Mais tarde, destinaste à morte
 
um relâmpago de tristeza.
 
E a serenidade das sementes.
 
 
 
jorge velhote
âmago
edições sem nome
2018

 



08 agosto 2020

jorge velhote / fria é a água na escuridão



.1.

Há uma luz branca que chega
como antes chegou uma luz
negra ou o frio vertiginoso
do esquecimento.
Olhavas as tuas mãos
enquanto nas veias escorriam
líquidos furiosos abrasando.
Por vezes a melancolia inclinava-te
a cabeça para lugares enxutos
e velozes. Ou escuros.
Vias os melros entre ramagens ocultos
como sombras e tangias o vento
para selar o inverno.



jorge velhote
âmago
edições sem nome
2018






17 agosto 2019

jorge velhote / fria é a água na escuridão



.6.

É apenas um sino frio como um cristal
Um rastro ungido pela neblina.
Quase poderia tocar-lhe como o vinho toca as ânforas.
Ou a piedade toca o pranto.
Ou extermina a inocência.



jorge velhote
âmago
edições sem nome
2018












08 fevereiro 2019

jorge velhote / fria é a água na escuridão




.11.

Na noite cintilam entre paredes
os despojos da pele e uma labareda
devastando os ossos dispara
a cegueira.
Infinitamente desce no teu olhar
apenas uma gota de luz
que varre das pedras a poeira inútil
a dor e a loucura.



jorge velhote
âmago
edições sem nome
2018






31 janeiro 2012

jorge velhote / acqua

   

                                                           para António Osório


                                                                          Ora passa e declina
                                                                          in quest'autunno che inced
                                                                          con lentezza indicibille,
                                                                          il miglior tempo della nostra vita     
                                                                                                                              
                                                                               Cardarelli


1.

eu não tinha relógio
nem húmidos dedos para habitar
de palavras
apenas lentíssimos olhos
sobre a chuva
como fogo

mas como contemplar teu rosto
crepitando
se das cinzas do vinho e do mel
cresciam as aves
que ocultavas
como música

como invadir a casa
de silêncio
se nas  pálpebras da água

e sobre a terra
um ofício de segredos
como láagrimas

me perturba


2.

eu começara perdendo fascinado
o outono
a azul respirado límpido

mas gravando
o corpo desses agudos
nomes
na loucura da água
recomeço rente às pedras
il miglior tempo della nostra vita







jorge velhote
1979



24 outubro 2010

jorge velhote / piazza s. marco







A sabedoria é para os barcos
sob as pontes da noite,
a alma, o oiro.
Aqui dormiria, à distância singular
de um beijo, um lençol de água,
um travesseiro de cuidada pedra.
Outras coisas da infância, mas devagar, outros corpos a penumbra percorrendo,
a poeira da luz espiando os sapatos, a navalha chamuscada.

Também eu herdei a perigosa ilusão
da bicicleta, um silêncio
danado por mulheres, pelo ardor cristalino do álcool,
no limbo mais rasgado do mundo;
o segredo tão natural da pintura
na profecia azul dos mosaicos,
no carvão amargo da noite;
certos vestígios pelo tráfico outrora florescente:
sedas, frutos, tabaco, pequenos tesouros,
caixinhas de laque, sandálias
gastando, dia após dia, a mágoa.

Que posso fazer pelas pedras desta praça senão
cobri-las de aves, trapos, moedas
e pela poalha do crepúsculo seduzir os vitrais,
os óleos santos, o sândalo, o bolor intenso das paredes?
Cambiar a chuva pelos claustros do vento, o vidro
de oficiante fogo, como
em Murano a família Barelli?


Que poderei comprar para o vazio
deste anoitecer? um pouco do meu sol?
daquele mar, um punhado de areia?





jorge velhote
colóquio letras nr. 90
março 1986
fundação calouste gulbenkian
1986