31 março 2021

leopoldo maría panero / dedicatória

 
 
Para além de onde
ainda se esconde a vida, resta
um reino, resta cultivar
como um rei a sua agonia,
fazer florescer como um reino
a suja flor da agonia:
eu que tudo prostituí, ainda posso
prostituir a minha morte e fazer
do meu cadáver o último poema.
 
 
 
leopoldo maría panero
a canção do croupier do mississípi e outros poemas
trad. jorge melícias
antígona
2019





30 março 2021

manuel resende / voltar para casa

 
 
Mas porque tem a pessoa de voltar para casa
E seguir o rasto das árvores no chão,
Pelo caminho conhecido, com o coração mirrado nas mãos
E as mãos nos bolsos como um apontamento antigo?
Não haverá outra história para viver, um jornal para cada um,
E súbita a esperança a queimar os lábios, a palpitar na boca,
Pronta a saltar e a arder todo o corpo?
Mas porque tem a pessoa de voltar para casa
Cabisbaixa?
 
 
manuel resende
em qualquer lugar
poesia reunida
edições cotovia
2018





29 março 2021

joan margarit / passeando

 
 
Gosto de caminhar sozinho pelas ruas,
com as mãos atrás das costas, sem pressa,
entre as pessoas e os carros matinais.
Cumpridor, aquele rapaz
foi obediente toda a vida.
Hoje sai de trás daquele
que, durante tantos anos, foi o seu disfarce de homem.
Há algumas coisas que não mudaram,
coisas breves e suaves, como as ausências
que as primeiras luzes acendem no crepúsculo.
Recorda quando ao rapaz que hoje regressa
lhe explicavam que os mortos estavam no céu.
Este céu que é às vezes tão azul,
que é tão frio quando se afasta da terra,
tão negro quando se acendem as estrelas.
O rapaz regressa e agarra-o pela mão.
Os dois vão-se afastando
até serem um ponto no céu. Aves que passam.
 
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020




28 março 2021

bernardo soares / nenhuma ideia brilhante consegue entrar em circulação...

 
 
Nenhuma ideia brilhante consegue entrar em circulação se não agregando a si qualquer elemento de estupidez. O pensamento colectivo é estúpido porque é colectivo: nada passa as barreiras do colectivo sem deixar nelas, como real de água, a maior parte da inteligência que traga consigo.
 
Na mocidade somos dois: há em nós a coexistência da nossa inteligência própria, que pode ser grande, e a da estupidez da nossa inexperiência, que forma uma segunda inteligência inferior. Só quando chegamos a outra idade se dá em nós a unificação. Daí a acção sempre fruste da juventude — devida, não à sua inexperiência, mas à sua não-unidade.
 
Ao homem superiormente inteligente não resta hoje outro caminho que o da abdicação.
 
s.d.
 


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
europa-américa
1986




 

27 março 2021

virgínia woolf / está uma noite lindíssima

 
 
(1921)
Quinta, 15 de Setembro
 
 
Está uma noite lindíssima – serena; o cavalo branco e o cavalo baio pastam juntos; as mulheres saem de casa sem motivo e ficam a olhar: ou a tricotar; o galo debica no prado no meio das galinhas; há estorninhos nas duas árvores, os campos de Asheham depois da ceifa ficaram da cor da belbutina branca; o Leonard está a armazenar maçãs por cima da minha cabeça. E o sol entra por uma cortina de pérolas de vidro; de modo que o vermelho e o verde das maçãs que ainda estão nas árvores fica pálido; a torre da igreja, uma mão-de-judas em prata erguendo-se entre as árvores. Irá isto evocar alguma coisa? Estou tão ansiosa por guardar este retalho, sabes. (…)
 
 
virgínia woolf
diário primeiro volume 1915-1926
trad. maria josé jorge
bertrand editora
1985

 




26 março 2021

herberto helder / as imagens

 
 
[…]
 
Num país estrangeiro, ao norte, cercados pela noite onde a neve palpita friamente.
 
O ruído chega ao quarto como um vapor ligeiro, indistintamente iluminado.
 
Falando baixo, enquanto a neve desliza pela janela e um comboio passa, brutal.
 
Isto ao mesmo tempo que a noite, a neve e o rumor.
 
E a conversa interrompe-se, tendo ficado pelo meio uma qualquer palavra, com sentido, essa também, porque todas as palavras eram animadas de uma inspiração capital.
 
Era tudo terrivelmente importante.
 
Tudo é importante, enquanto a noite cria o seu labirinto e o quarto se desloca para o coração do labirinto.
 
Estamos inclinados um para o outro, por dentro, e eu sinto uma vertigem leve, como se soubesse que o chão poderia não ser completamente seguro, e o abismo sempre prometido se fosse revelar.
 
O amado e terrível abismo.
 
[…]
 
 
herberto helder
apresentação do rosto
as imagens
porto editora
2020





25 março 2021

samuel beckett / o que é certo…

 
 
(…)
 
O que é certo é que, daqui a uma hora, será tarde de mais, daqui a meia-hora será noite, e ainda assim, não há a certeza, de quê, a certeza absoluta de quê, de que a noite impeça impeça o que o dia permite, àqueles que sabem governar-se, que querem governar-se, e que podem governar-se, que podem continuar a tentar. O nevoeiro dissipar-se-á, eu sei, por mais distraído que se esteja, o vento vai refrescar, quando a noite cair, e na montanha haverá o céu nocturno, com as suas luzes, e as dias Ursas para me servirem de guia, mais uma vez, de guia para os meus passos, esperemos pela noite. Tudo se enreda, os tempos enredam-se, primeiro só lá tinha estado, agora continuo a lá estar, daqui a pouco ainda lá estarei, penando a meia encosta, ou nos fetais que bordejam o bosque, são larícios, não tento compreender, nunca mais tentarei compreender, é assim que se diz, para já estou aqui, desde sempre, para sempre, vou deixar de ter medo das palavras caras, não são nada caras. Não me lembro de ter vindo, nunca poderei ir-me embora, estou de olhos fechados e sinto na face o húmus áspero e húmido, caiu-me o chapéu, não caiu longe, ou o vento levou-o para longe, apeguei-me muito às minhas coisas. Ora é o mar, ora é a montanha, em muitas alturas foi a floresta, a cidade, e também a planície, também já experimentei a planície, deixei-me ficar como morto em todos os cantos, de fome, de velhice, assassinado, afogado, e também sem motivo, muitas vezes sem motivo, de tédio, é coisa que dá alento, um derradeiro suspiro, e depois os quartos da minha santa morte, na cama, derreado ao peso dos meus penates, e resmungando sempre, as mesmas coisas, as mesmas histórias, as mesmas perguntas e respostas, bom menino, bastante, no extremo do meu mundo de ignorantes, nem uma imprecação, não, eu não era assim tão estúpido, ou então já não me lembro.
 
(…)
 
 
 
 
samuel beckett
novelas e textos para nada
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2006





24 março 2021

marguerite yourcenar / poderias mergulhar…

 
 
Poderias mergulhar como um só bloco no nada para onde vão os mortos: consolar-me-ia se me legasses as tuas mãos. Apenas as tuas mãos subsistiriam, separadas de ti, inexplicáveis como as dos deuses de mármore que se tornaram pó e cal dos seus próprios túmulos. Elas sobreviveriam aos teus actos, aos miseráveis corpos que acariciaram. Entre as coisas e ti, elas já não seriam intermediários: seriam elas próprias, transformadas em coisas. Voltando a ser inocentes, pois tu já lá não estarias para fazer delas cúmplices, tristes como galgos sem dono, desconcertadas como arcanjos a quem já nenhum deus dá ordens, as tuas mãos vãs repousariam sobre os joelhos das trevas. As tuas mãos abertas, incapazes de dar ou de agarrar qualquer alegria, ter-me-iam deixado cair como uma boneca quebrada. Beijo ao nível do pulso essas mãos indiferentes que a tua vontade já não afasta das minhas; acaricio a artéria azul, a coluna de sangue que outrora, incessante como o jacto de uma fonte, surgia do solo do teu coração. Como pequenos soluços satisfeitos, encosto a cabeça como uma criança, entre as palmas cheias de estrelas, de cruzes, de precipícios daquilo que foi o meu destino.
 

marguerite yourcenar
fogos
trad. de maria da graça morais sarmento
difel
1995





 

23 março 2021

luís miguel nava / sem outro intuito

 
 
Atirávamos pedras
à agua para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificavam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.
 
 

luís miguel nava
vulcão
poesia
assírio & alvim
2020




22 março 2021

fernando pinto do amaral / as time goes by

 
 
Fizera uma promessa: ir ao encontro
de uma estranha miragem, mal sabia
porquê – pedia apenas
«qualcosa da bere». Seria ridículo
ensinar truques ao destino, ouvir
a fala de um só deus. Ficava ali
sob o antigo temor da beleza,
sob o poder da noite. Ousadias, receios,
tudo parecia igual.
 
Luminosos golfinhos sorriam,
enfeitavam o cais, esse caos
reflectido nos seus olhos. Sim,
talvez fosse esse rosto a construir
o decorrer do tempo, um sentimento
em música de fundo – esplanadas
ao longo de palmeiras, a caminho
da maior solidão. Em San Remo
há mais de «cinco esquinas» e o Frágil
desaparecera noutro mar, submerso
em «prazer e glória» - «a flight for love
and glory». A Agustina
tem deveras razão, é necessário
o sofrimento. Ainda bem
que as promessas não são para cumprir
e há uma porta aberta sobre a água.
 
 
 
 
fernando pinto do amaral
até chegar o dia
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000





21 março 2021

albano martins / para um desenho de júlio

 
júlio


O lápis,
o carvão
desenham
a margem fluida
dos cabelos
e das rosas,
os espelhos,
a
nudez dos apelos
 
 
albano martins
inconcretos domínios
edições nova renascença
1980





20 março 2021

rené crevel / a ponte da morte

 
 
(…)
 
Ora uma noite, que noite?, perceberam finalmente as prostitutas que os pés não eram para torturas de veludo negro mas nudez da pele, tal qual uma nudez de areia. E assim os tacões, que andaram séculos a fazê-las cair, todos se partiram e nasceram flores de sémen nas pedras do macadame. Mentiras, porém, já não podiam tolerar-se, finas fossem como as palmilhas de corda, e a vadiagem atira as alpercatas para lá do horizonte. Explodi, ó cores. Os criminosos têm mãos azuis. E vós, raparigas, se quereis bocas vermelhas basta passar nos lábios o dedo que o derradeiro amor vos manchou. No fundo do mar ressuscitam todos os africanos crédulos que tinham querido fazer uma viagem barata e afinal morrido à boca das fornalhas. Hão-de ser peixes, não tarda, que já vão de pernas ficando transparentes. Ouvi à luz dos monstros eléctricos as suas canções sem palavra nenhuma. Carregam-lhe no umbigo, os hipocampos, como um botão de campainha eléctrica. Serão horas do chá? Nada disso. Pontos de interrogação com cabeça de cavalo, das florestas de água sobem aos olhos de sábios europeus para rebentar na sua pele terrestre. Em pleno céu o navio-fantasma escreve a sua dança. Apartam-se muros que quiseram prender os ventos do espírito. Um sol de enxofre e amor acende-se atrás das pregas de um veludo cuja placidez tem excessivo peso. Os homens de todo o mundo compreendem-se pelo nariz. Um imprevisto geyser joga à casa do diabo as pedras que tinham querido revestir o chão. Vai uma ponte do planeta minúsculo à liberdade.
 
E da ponte da morte venham ver, venham todos ver, como a cabeça se ilumina.
 
 
 
rené crevel
filhas do vento
trad. aníbal fernandes
& etc
1984




19 março 2021

eugénio de andrade / de passagem

 
 
Vinham ao fim do dia.
Talvez chamados pelo brilho
dos dentes, ou das unhas,
ou dos vidros.
 
Eram de longe.
Do mar traziam
o que é do mar: doçura
e ardor nos olhos fatigados.
 
Chegavam, bebiam
a púrpura dos espelhos
e partiam.
Sem declinar o nome.
 
 
 
eugénio de andrade
obscuro domínio
poesia
fundação eugénio de andrade
2000





 

18 março 2021

joão miguel fernandes jorge / é uma casa…

 
 
É uma casa de parede coberta de heras e musgo
Corre um banco comprido,
são assim os bancos das aldeias do litoral.
 
É o presságio,
é o olhar sobre a planície.
 
É uma casa de chão batido.
As bilhas de barro chegam da proximidade das manhãs
sob a sombra de dunas e pinheiros.
 
Os barcos ainda não deixaram o porto.
Só depois de o sol nascer largam para ocidente.
Não temos ilusões,
 
a sombra não chega para esta memória.
 
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019




17 março 2021

carlos eurico da costa / a forma e o tempo

 
 
Para a Magda
 
 
 
I
Sobe pela noite como profundo grito
Para ver uma concha de falso fumo
Caminha nas trevas em coloridos braços
Para ver as mais ligeiras asas voltando o mundo
Sobe pela noite como arma inútil
Como insecto astro dilúvio ou fantasma
Para ver a imagem de outro dia.
 
Sim para reconhecer-te
Vem com nuvens nas espáduas
– Um rosto de ondas quentes
Rosto dos habitantes de um país que te arruína
Busto de mulher invisível pelos férteis campos.
Envolta nas colchas rubras da tua raça e rosas grenat
Surge respondendo aos gritos dos cantoneiros
Vem. Traz o branco curso lunar das tuas mãos
Para este quadro vazio onde docemente luto contra mim.
 
 
 
carlos eurico da costa
aventuras da razão
livraria morais editora
1965

 



16 março 2021

charles tomlinson / o momento

 
 
Observando dois surfistas a caminho das ondas,
Flutuando as pranchas ao seu lado enquanto ao longo
Do lento declive da praia, os joelhos, depois a cintura,
Penetram naquele abraço elementar,
Suspendo a escolha na dependência deles, enquanto uma
Onda de milhentas se forma e se aproxima:
E eles estão prontos para ela, ao rodarem
Como aves que se voltam para levitar no vento:
Tudo é certeiro agora ao deslizarem lado a lado:
Pelo que invejo o jeito dos seus corpos
Para aguentar e prolongar a descida veloz
Opto pelo momento em que as suas escolhas coincidem
E, em equilíbrio, como se no ar, hesitam
Numa culminação que com o mar partilham.
 
 
 
 
charles tomlinson
as escadas não têm degraus 3
trad  gualter cunha
livros cotovia
1990





 

15 março 2021

adonis / os dois poetas

 
 
Na cidade branca
Entre as migalhas de pão
Habitam dois poetas
O primeiro é negro – lua quebrada
De que as baleias procuram os restos
 
O outro é branco – tal uma criança
Dorme todas as noites
Com uma serpente negra
 
 
adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016





 

14 março 2021

joaquim manuel magalhães / a chuva nova canta sobre os dedos

 
 
A chuva nova canta sobre os dedos.
Ele ergue do lume, ela segura
a imaginação alagada no beiral.
O dia fica frio, não importa,
pode-se cantar, oh chuva nova,
molhado na secura desta lança
estalam nos ossos
actos despertos onde o pesar corre.
E se não corre, corre um corpo dentro dele.
 
 
joaquim manuel magalhães
dos enigmas
consequência do lugar
relógio d´água
2001




13 março 2021

fernando alves dos santos / a filha mais nova dum romano

 
 
A filha mais nova dum romano
vai para casa do seu secreto amante.
Com a mão pétrea solta os cabelos
e arruma, sem rigor, as verdades e as mentiras,
as que não lhe faltam e as que não tem:
este foi o único rasto que deixou.
 
 
 
fernando alves dos santos
diário flagrante [poesia]
edição perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
2005





12 março 2021

henrique risques pereira / recordações

 
 
A paz inalterável do amor gratuito que ninguém quer
a saudade sempre penetrante do amigo morto que ninguém quis
os flagelos para os outros e para sempre com os outros
os nossos irmãos inexplicáveis de perfis irreconhecíveis
a caligrafia escrita no tempo
tudo isto
talvez valha qualquer verdade que te disse
e me esqueci.
 
 
 
henrique risques pereira
transparência do tempo
(poesia)
edição de perfecto e. cuadrado
quasi
2003





11 março 2021

antónio manuel azevedo / sem propósito de imprimir

  
 
Já todos o conhecíamos da pequena corte
tinha aquelas mãos de fazer ouro.
 
Chegava de noite e trazia os das cantigas.
Eram amigos que lhe aprendiam as falas
os encenados lugares do corpo, diabos
sedutores, fadas da pequena vida
pois que vida lhe vejo chamar.
 
Ordenava o curto prazer, a esperança
longa, ficava depois de terem ido.
 
Bebia enganos madrugada dentro
onde temor sempre atiça e o receio
melhor cabe, derivava em cerveja
a nau de seus amores. Deixava
em seus cadernos estas desventuras
farsas de segredos para dele caçarmos
para si sempre mudo.
 
 
 
 
antónio manuel azevedo
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990





 

10 março 2021

julio martínez mesanza / cidade de muitas torres

 
 
Durante muitos anos construíram
sólidas torres. Fizeram-nas altas:
torres de ataque e torres defensivas,
e ao combate civil se acostumaram.
Depois a emulação e o ouro escasso
buscaram os mais pobres materiais.
Amiúde caía uma das torres:
também se acostumaram ao escombro.
Por atacar a lei sobre edifícios
desse lugar absurdo me expulsaram.
Ao ver pela primeira vez de longe
aquela proliferação de torres
que nenhuma muralha protegia,
causou-me riso um símbolo evidente.
Desde então eu dedico os meus esforços
a investigar a causa dessas torres,
a redigir libelos infamantes,
a treinar minha hoste mercenária.
 
 
 
julio martínez mesanza
trípticos espanhóis 1º.
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998






 

09 março 2021

jack gilbert / antes do amanhecer em perugia

 
 
Sentei-me três dias
abismado pelo amor.
Vi durante três noites
as gradações do sombrio.
Da luz. Vi
três manhãs despontarem,
e em todas elas fui apanhado
desprevenido
pelos sinos estrondosos.
O meu coração fendido
como um melão.
E não sarará.
Dá-se
sem sentido
às velhas
que carregam o leite.
Aos homens que varrem, desastrados.
Aos telhados.
Deus me ajude.
 
 
 
jack gilbert
deixem-me ser ambos
trad. leonor castro nunes e marcos pereira
destrauss
2020






08 março 2021

pier paolo pasolini / o pranto da escavadora

 
 
I
 
Amar, conhecer
é o que conta, não ter amado,
ou ter conhecido. Angustia
 
viver de um amor passado.
A alma já não cresce.
Neste calor encantado
 
da noite profunda, aqui,
entre os meandros do rio e as visões
adormecidas da cidade constelada de luzes,
 
onde ecoam ainda mil vidas,
o desamor, o mistério, e a miséria
dos sentidos tornam-me hostis
 
as formas do mundo que, até ontem,
eram a minha razão de existir.
Triste, cansado, volto para casa,
 
por negros largos de mercado, tristes
ruas em redor do porto fluvial,
por entre barracas e armazéns que se misturam
 
aos últimos campos. Aqui reina um silêncio
de morte: mas, mais em baixo, na avenida Marconi,
ou na estação de Trastevere, a noite
 
parece ainda amena. Para os seus bairros,
para os seus subúrbios, regressam em motas
ligeiras – de fato-macaco ou calças
 
de trabalho, mas cheios de um ardor festivo –
os jovens, com um companheiro no selim,
rindo, sujos. Os últimos fregueses
 
conversam, de pé, em altos gritos,
aqui e ali, na noite, às mesas
das tascas ainda iluminadas e quase vazias.
 
Magnífica e mísera cidade,
que me ensinaste o que os homens,
alegres e ferozes, aprendem em crianças,
 
as pequenas coisas em que a grandeza calma
da vida se descobre, como, por exemplo,
andar, duro e lesto, entre a multidão
 
das ruas, dirigir-se a outro homem
sem tremer, não ter vergonha
de verificar o dinheiro contado
 
com dedos lentos pelo empregado
que foge, suando, rente às fachadas
numa cor eterna de Verão;
 
defender-me, atacar, ter
o mundo diante dos olhos e não
apenas o coração, compreender
 
que poucos conhecem as paixões
em que vivi:
que, não sendo meus irmãos, são, porém,
 
meus irmãos, porque sentem, justamente,
paixões de homens
que, alegres, inconscientes, inteiros,
 
vivem de experiências
que nunca vivi. Maravilhosa e mísera
cidade que me fizeste viver
 
a experiência dessa vida
ignorada: até me fazeres descobrir
o que, em cada um, era o mundo.
 
Uma lua agonizando no silêncio
que dela vive alveja em violentos
clarões, que, miseramente, na terra
 
onde a vida se cala, nas belas avenidas,
nas velhas ruelas, cegam, mas não iluminam,
enquanto, lá em cima, farrapos de nuvens
 
quentes as reflectem até ao infinito.
É a noite mais bela do Verão.
O Trastevere, no seu cheiro a palha
 
de velhos estábulos, a pensões
vazias, ainda não dorme.
Nas esquinas escuras, nas pacatas paredes
 
ecoam rumores encantados.
Homens e rapazes regressam a casa
– sob festões de luzes que são agora o sol –
 
vão para os seus becos, pejados
de escuridão e lixo, naquele passo brando
que mais fundo se cravava na minha alma
 
quando amava realmente, quando realmente
queria compreender.
E, como então, desaparecem, cantando.
 
 
 
pier paolo pasolini
poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005





07 março 2021

natércia freire / ouve

 
 
Ouve: que rios me trazes
Que eu não tenha navegado?
Uns na Morte. Outros na vida,
No meu dormir acordado.
 
Ouve: que rumos me apontas
Que eu não tenha experimentado?
Com anjos e aves tontas
Está-se bem acompanhado.
 
Ouve: que vícios trarias
Que eu não soubera descrer?
Líquida sombra nos dias
A escorrer-me de mulher.
 
Ouve por fim: que mistérios
Mais fascinantes e claros?
Que frágil fio de aranha,
Me trarias que eu não tenha
Dançado, corrido, andado?
 
(Bruxaria dos meus ossos?
Equilíbrio sem passado?)
 
Ouve: não peças à paz
O que a paz te tem negado.
 
 
natércia freire
a segunda imagem
1969

 




06 março 2021

vergílio ferreira / inventar a alegria

 
 
267 – Inventar a alegria. Ou estar atento à sua revelação. Mas é preciso merecê-la e não estarmos tão sujos. Esquecer um pouco talvez o ódio a fome a morte. Guerras de carnificina odienta, imensa fome dos sub-humanos da humanidade. Inventar a alegria por sobre tudo isso ou estar limpo de todas as fezes da alma para que ela apareça. Porque há pássaros ainda a explica-la e há a luz. E há o que simplesmente existe e é miraculoso no seu ser. Que a paz te inunde e te lave e tu ressurjas na pureza de um mundo que vai começar…
 
 
vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001




05 março 2021

joan margarit / não deites fora as cartas de amor

 
 
Elas não te abandonarão.
Passará o tempo, apagar-se-á o desejo
– essa flecha de sombra –
e os rostos sensuais, inteligentes, belíssimos
ocultar-se-ão em ti, no fundo de um espelho.
Cairão os anos. Cansar-te-ão os livros.
Decairás ainda mais
e perderás até a poesia.
O ruído frio da cidade nos vidros
acabará por ser a tua única música,
e as cartas de amor que tiveres guardado
serão a tua ultima literatura.
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020