(…)
Ora uma noite, que noite?, perceberam finalmente as
prostitutas que os pés não eram para torturas de veludo negro mas nudez da
pele, tal qual uma nudez de areia. E assim os tacões, que andaram séculos a
fazê-las cair, todos se partiram e nasceram flores de sémen nas pedras do
macadame. Mentiras, porém, já não podiam tolerar-se, finas fossem como as
palmilhas de corda, e a vadiagem atira as alpercatas para lá do horizonte. Explodi,
ó cores. Os criminosos têm mãos azuis. E vós, raparigas, se quereis bocas
vermelhas basta passar nos lábios o dedo que o derradeiro amor vos manchou. No fundo
do mar ressuscitam todos os africanos crédulos que tinham querido fazer uma
viagem barata e afinal morrido à boca das fornalhas. Hão-de ser peixes, não
tarda, que já vão de pernas ficando transparentes. Ouvi à luz dos monstros
eléctricos as suas canções sem palavra nenhuma. Carregam-lhe no umbigo, os
hipocampos, como um botão de campainha eléctrica. Serão horas do chá? Nada disso.
Pontos de interrogação com cabeça de cavalo, das florestas de água sobem aos
olhos de sábios europeus para rebentar na sua pele terrestre. Em pleno céu o
navio-fantasma escreve a sua dança. Apartam-se muros que quiseram prender os
ventos do espírito. Um sol de enxofre e amor acende-se atrás das pregas de um
veludo cuja placidez tem excessivo peso. Os homens de todo o mundo
compreendem-se pelo nariz. Um imprevisto geyser joga à casa do diabo as pedras
que tinham querido revestir o chão. Vai uma ponte do planeta minúsculo à
liberdade.
E da ponte da morte venham ver, venham todos ver,
como a cabeça se ilumina.
rené crevel
filhas do
vento
trad. aníbal fernandes
& etc
1984