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20 março 2021

rené crevel / a ponte da morte

 
 
(…)
 
Ora uma noite, que noite?, perceberam finalmente as prostitutas que os pés não eram para torturas de veludo negro mas nudez da pele, tal qual uma nudez de areia. E assim os tacões, que andaram séculos a fazê-las cair, todos se partiram e nasceram flores de sémen nas pedras do macadame. Mentiras, porém, já não podiam tolerar-se, finas fossem como as palmilhas de corda, e a vadiagem atira as alpercatas para lá do horizonte. Explodi, ó cores. Os criminosos têm mãos azuis. E vós, raparigas, se quereis bocas vermelhas basta passar nos lábios o dedo que o derradeiro amor vos manchou. No fundo do mar ressuscitam todos os africanos crédulos que tinham querido fazer uma viagem barata e afinal morrido à boca das fornalhas. Hão-de ser peixes, não tarda, que já vão de pernas ficando transparentes. Ouvi à luz dos monstros eléctricos as suas canções sem palavra nenhuma. Carregam-lhe no umbigo, os hipocampos, como um botão de campainha eléctrica. Serão horas do chá? Nada disso. Pontos de interrogação com cabeça de cavalo, das florestas de água sobem aos olhos de sábios europeus para rebentar na sua pele terrestre. Em pleno céu o navio-fantasma escreve a sua dança. Apartam-se muros que quiseram prender os ventos do espírito. Um sol de enxofre e amor acende-se atrás das pregas de um veludo cuja placidez tem excessivo peso. Os homens de todo o mundo compreendem-se pelo nariz. Um imprevisto geyser joga à casa do diabo as pedras que tinham querido revestir o chão. Vai uma ponte do planeta minúsculo à liberdade.
 
E da ponte da morte venham ver, venham todos ver, como a cabeça se ilumina.
 
 
 
rené crevel
filhas do vento
trad. aníbal fernandes
& etc
1984