31 julho 2025

pierre louÿs / ao navio

  

XLVII
 
Belo navio que me trouxeste seguindo de perto as costas da Jónia,
entrego-te às vagas cintilantes. É, com pé ligeiro, que
salto para o areal.
 
Regressas à terra em que a virgem é a amiga das ninfas.
Não te esqueças de agradecer às conselheiras invisíveis
e entrega-lhes, como oferenda, este raminho
que eu própria colhi.
 
Foste pinheiro e, nas montanhas, teus ramos agudos,
teus esquilos e teus pássaros oscilavam ao ritmo
do vasto e inflamado vento sul.
 
Que agora o vento norte seja teu guia e, ao sabor
do mar paciente, te empurre devagar para o cais,
ó nave negra escoltada por golfinhos.
 
 
pierre louÿs
o sexo de ler de bilitis
elegias em mitilene
trad. maria gabriel llansol
relógio d´água
2010




30 julho 2025

maria alberta menéres / duas linhas de cor ao alto

  
 
Duas linhas de cor ao alto
e no meio um pedaço de alguém
A seta é escura      O pássaro
fugiu de noite
Eu encontrei-o quando ele não
estava perdido
e consolei-o de tristeza
quando ele já era triste
 
 
 
maria alberta menéres
os mosquitos de suburna (1967)
poesia completa
porto editora
2020
 



29 julho 2025

manuel de castro / a voz quase silêncio

  
vai-se perdendo a voz quase silêncio
um corpo agora oco     gasto     frio
a morte é uma cor que foi escolhida
para encontrar a direcção do vento
 
o homem que foi um feto      que foi um peixe
que foi o ar     que foi o sangue e o gesto
atravessa o mar com círculos nos braços
possuído no seu próprio destino
na descoberta dos focos submarinos
 
ao nível das estrelas mais brilhantes
e no entanto desde há muito extintas
pode encontrar-se o grande amor final
pesar-se no seu som e qualidade
 
garganta de alcatrão fundente
vai-se perdendo a voz, quase silêncio
 
                 do livro «A estrela rutilante» (1960)
 
 
 
manuel de castro
antologia da novíssima poesia português
m. alberta menéres, e. m. de melo e castro
moraes editora
1971
 


28 julho 2025

nuno guimarães / o quarto

  
[…]
O ar que, dentro dos pulmões, circula
altera-se. É o mesmo das imagens,
denso; as árvores, o ferro, o seu vapor
de enxofre: os dias mortos – de atenção
 
e gasto perceptivo. E onde pôr,
agora, a exacta dimensão? Na mão
cremada, no fogo imensurável?
Medir-se com imagens, breves
 
desvios da matéria? A régua jaz
sobre a madeira, a cama, outras mobílias
inexactas à vista – todo o real
oscila no seu leito. Ou haverá,
 
porém, outro rigor: visível, táctil,
um rasto de paisagem, de sentidos?
então, já póstumo e alheio,
o que descreve, neutro, ainda brilha.
 
 
 
nuno guimarães
rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001
 


27 julho 2025

bernardo soares / a renúncia é a libertação. não querer é poder.

  
A renúncia é a libertação. Não querer é poder.
 
 
Que me pode dar a China que a minha alma me não tenha já dado? E, se a minha alma mo não pode dar, como mo dará a China, se é com a minha alma que verei a China, se a vir? Poderei ir buscar riqueza ao Oriente, mas não riqueza de alma, porque a riqueza de minha alma sou eu, e eu estou onde estou, sem Oriente ou com ele.
 
 
Compreendo que viaje quem é incapaz de sentir. Por isso são tão pobres sempre como livros de experiência os livros de viagens, valendo somente pela imaginação de quem os escreve. E se quem os escreve tem imaginação, tanto nos pode encantar com a descrição minuciosa, fotográfica a estandartes, de paisagens que imaginou, como com a descrição, forçosamente menos minuciosa, das paisagens que supôs ver. Somos todos míopes, excepto para dentro. Só o sonho vê com (o) olhar.
 
 
No fundo, há na nossa experiência da terra duas coisas — o universal e o particular. Descrever o universal é descrever o que é comum a toda a alma humana e a toda a experiência humana — o céu vasto, com o dia e a noite que acontecem dele e nele; o correr dos rios — todos da mesma água sororal e fresca; os mares, montanhas tremulamente extensas, guardando a majestade da altura no segredo da profundeza; os campos, as estações, as casas, as caras, os gestos; o traje e os sorrisos; o amor e as guerras; os deuses, finitos e infinitos; a Noite sem forma, mãe da origem do mundo; o Fado, o monstro intelectual que é tudo... Descrevendo isto, ou qualquer coisa universal como isto, falo com a alma a linguagem primitiva e divina, o idioma adâmico que todos entendem. Mas que linguagem estilhaçada e babélica falaria eu quando descrevesse o Elevador de Santa Justa, a Catedral de Reims, os calções dos zuavos, a maneira como o português se pronuncia em Trás-os-Montes? Estas coisas são acidentes da superfície; podem sentir-se com o andar mas não com o sentir. O que no Elevador de Santa Justa é universal é a mecânica facilitando o mundo. O que na Catedral de Reims é verdade não é a Catedral nem o Reims, mas a majestade religiosa dos edifícios consagrados ao conhecimento da profundeza da alma humana. O que nos calções dos zuavos é eterno é a ficção colorida dos trajes, linguagem humana, criando uma simplicidade social que é em seu modo uma nova nudez. O que nas pronúncias locais é universal é o timbre caseiro das vozes de gente que vive espontânea, a diversidade dos seres juntos, a sucessão multicolor das maneiras, as diferenças dos povos, e a vasta variedade das nações.
 
 
Transeuntes eternos por nós mesmos, não há paisagem senão o que somos. Nada possuímos, porque nem a nós possuímos. Nada temos porque nada somos. Que mãos estenderei para que universo? O universo não é meu: sou eu.
 
s.d.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982




26 julho 2025

mário de sá-carneiro / pied-de-nez

  
 
Lá anda a minha Dor às cambalhotas
No salão de vermelho atapetado –
Meu cetim de ternura engordurado,
Rendas da minha ânsia todas rotas…
 
O Erro sempre a rir-me em destrambelho –
Falso mistério, mas que não se abrange…
De antigo armário que agoirento range,
Minh’ alma actual o esverdinhado espelho…
 
Chora em mim um palhaço às piruetas;
O meu castelo em Espanha, ei-lo vendido –
E, entretanto, foram de violetas,
 
Deram-me beijos sem os ter pedido…
Mas como sempre, ao fim – bandeiras pretas,
Tômbolas falsas, carrossel partido…
 
                          Paris – Novembro de 1915
 
 
 
mário de sá-carneiro
poemas
biblioteca editores independentes
assírio & alvim
2007





 

25 julho 2025

pedro tamen / o vinho

  
1.
 
Isso de que gostámos tanto; impulso
sem que o fim, que dizem tão preciso,
se notasse; um beijo pela troca; pedra
no chão ainda; um rasgão no mais duro,
onde os corpos se abatem; um padre.
 
Demos? não demos? Porque aparece agora
esta questão de medo? – Um rio, meu amor,
um rio tem o sul… – Demos? não demos?
 
Dissemos amanhã sem o mais leve riso.
Um nervo porque sim caiu de lá no raso
dos amores. Tocámos os sinos, nós tocámos
os sinos. Vejam as nuvens (barcos, ananases…),
vejam os seios livres no sereno das noites.
 
Um rio, meu amor, um rio tem o sul,
que é onde é cor de casa a planta dos pés…
 
 
 
pedro tamen
o sangue, a água e o vinho
tábua das matérias
poesia 1956/1991
círculo de leitores
1995




 

24 julho 2025

pedro oom / poema



 

 
Tua boca
é um dia estreito
cheio de moscas
 
De noite
tem a cor azul-verde
dum veneno
como o mar.
 
 
pedro oom
actuação escrita
& etc
1980




 

23 julho 2025

jorge de sousa braga / foz

  
Com água no bico
aves marinhas combatem
o incêndio do crepúsculo
 
 
 
 
Sete da manhã
O sol acorda
com olheiras enormes
 
 
 
jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991
 



22 julho 2025

josé miguel silva / salão de beleza

  
 
Dorida visão, esta pobre velha à saída
do salão de beleza. apesar dos muitos
e pesados passos que deixou na terra,
ainda encontra forças para arrastar a alma
até ao reverso de um espelho e desenhar,
de memória, o contorno dos lábios,
armar o cabelo para mais uma ilusão.
Admirável a tenacidade das ervas
que à enxurrada opõem a verdura
de um grito e resistem à lição de Marco
Aurélio, ao prolongado cerco da realidade.
Admiráveis porque vestem de gala
para mais uma dança, já solitária,
num baile de fantasmas, todo mental,
sem darem crédito à melancolia
nem ouvidos ao tirânico juízo da crua,
da falsa, da estúpida carreta fúnebre.
 
 
josé miguel silva
ulisses já não mora aqui
língua morta
2014




21 julho 2025

manuel de freitas / quando sós à boleia do crepúsculo

  
                [para o Fernando Guerreiro]

                         
Não mais a literatura, os seus
fúteis e imperiosos desígnios
– julgamos dizer, insistindo
numa ourivesaria do terror
e em gestos que sabem o quanto
chegam tarde. quando sós,
à boleia do crepúsculo, dizemos
coisas assim, mentimos com
os dentes todos que não temos.
 
E a mentira (a literatura)
é ainda a improvável derrota
de que não nos salvaremos
nunca. Tão igual à vida, portanto:
pouso o copo, recupero o fôlego,
fumo uma silepse. Sei que vou morrer.
 
E isso que – talvez – nos diz
é uma evidência que escurece
(tivemos por amigo o desconforto).
 
Quanto ao mais, vamos andando.
Casados ou sozinhos. Mortos.
 
 
 
manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002





20 julho 2025

leopoldo maría panero / um louco tocado pela maldição do céu

  
 
Um louco tocado pela maldição do céu
canta humilhado a uma esquina
as suas canções falam de anjos e coisas
que custam a vida ao olho humano
a vida apodrece aos seus pés como uma rosa
e já perto do túmulo, passa junto dele
uma Princesa.
 
 
leopoldo maría panero
a canção do croupier do mississípi e outros poemas
trad. jorge melícias
antígona
2019




19 julho 2025

víctor botas / tentativas de felicidade

  
 
As páginas de um livro de Baroja
à sombra de uma árvore
no verão.
Um poema de Octávio Paz, de Larkin, de Pessoa
ou do meu amigo d’Ors,
na cama de um comboio Madrid-Paris.
A jovem que percorre
a manhã e as ruas, com as ondas
retumbando nos seus olhos.
Os meus filhos na praia de Salinas, tão felizes,
brincando com a areia.
A rosa solitária que se ilumina,
húmida e temerária,
num jardim qualquer da tarde.
O curioso olhar dos velhos.
O brilho da Lua.
Todas estas coisas podem ser motivo de inusual felicidade.
Todas estas coisas podem ser a tua cruz e o teu calvário.
Todas estas coisas podem ser a armadilha em que cais de bruços.
Todas estas coisas podem inclusivamente não ser nada.
Nada de nada, irmão.
 
 
 
víctor botas
poesia espanhola de agora vol. I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997


18 julho 2025

joão miguel fernandes jorge / neste silêncio

  

 
Neste silêncio.
 
Vês esta ruína
tempo em que plantámos cinzentos agapantos
e amámos esta música de pinheiros
esta companhia das coisas?
 
Olha
quase colina
não respira
salta no pensamento a outra coisa,
 
Ensina-me.
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019



17 julho 2025

antónio maria lisboa / sinalização ossificada

  
 
A aranha-termómetro mergulhou no peso do meu nome
e deixou que ele falasse gota a gota:
 
«---- O sexo-limbo é um composto sobrevivente… etc., etc.»
Daí tirei conclusões que tudo me permitem:
 
___ A borracha-centopeia furada ao lado pela parede–
–telefone
a invenção dum novo dialecto para falar às formigas
a auto-fixação dum purificador nos buracos do vento
uma complicação perfeita para
objectivada em gesso morder o cio na boca… etc., etc.
 
 
 
antónio maria lisboa
ossóptico e outros poemas
poesia
assírio & alvim
1995
 


16 julho 2025

joaquim manuel magalhães / estava ali por esse dia

  
 
Estava ali por esse dia.
Diante da janela, além
nos bancos de trás. Sorriu,
o ar ergueu-se em labirintos,
a tarde pousou-lhe na tez.
A cultura tornou-se um conflito
de desalento. No fim da aula
fomos tomar café.
 
Diante dos outros tocava só
na sua chávena, no maço
dos cigarros, era o seu corpo
que eu queria atingir.
 
Não és real, eu não existo.
Raízes desertas do auriga.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
de súbito
uma luz com um toldo vermelho
editorial presença
1990




 

15 julho 2025

luís miguel nava / essas manhãs

  
 
Essas manhãs, as mais profundas e por que eu caminho para as ondas, manhãs como um poço, no perfil das águas ouço-as eclodindo o leite a avolumar-se pelas cristas, esta página redu-las a uma árdua anotação. A luz por dentro agora invadem-na outra sondas.
 
 
luís miguel nava
películas
poesia completa (1979-1994)
publicações dom quixote
2002





 

14 julho 2025

manuel antónio pina / azul

  
 
A luz, se formos luz. A sombra
se formos sombra: os olhos, sombra;
o coração, sombra; a própria luz
do pensamento, exílio e sombra.
 
Na infância (pois fomos
jovens um dia) atrás dos reposteiros
o invisível vigiava
o nosso sono desperto.
 
Agora que acordámos
do amarelo e do azul
e do branco e do azul
e do coração e do azul,
 
como regressaremos
a este mundo?
(O azul não é deste mundo,
nem os olhos são deste mundo).
 
À nossa porta batem
Inúteis lembranças: sombras.
Cegámos. Os amigos (sombras)
morreram de doenças de velhos,
 
o enfarte, a solidão, ou só
de morte, e nem
uma réstia de azul iluminou
o seu último olhar.
 
Se ao menos tivéssemos
envelhecido sem motivo, sem tempo,
desaparecido para dentro
lucidamente, como uma coisa desprendendo-se!
 
 
 
manuel antónio pina
moradas
todas as palavras, poesia reunida
assírio & alvim
2012





 

13 julho 2025

miguel torga / sagres

  
 
Vinha de longe o mar…
Vinha de longe, dos confins do medo…
Mas vinha azul e brando, a murmurar
Aos ouvidos da terra um cósmico segredo.
 
E a terra ouvia, de perfil agudo,
A confidencial revelação
Que iluminava tudo
Que fora bruma na imaginação.
 
E o resto do mundo que faltava
(Porque faltava mundo!).
E o agudo perfil mais se aguçava,
E o mar jurava cada vez mais fundo.
 
Sagres sagrou então a descoberta
Por descobrir:
As duas margens de certeza incerta
Teriam de se unir!
 
 
 
miguel torga
história trágico-marítima
poesia completa vol. II
dom quixote
2007




12 julho 2025

vitorino nemésio / dunas



 
Lá onde a garça deixa
O seu último ovo
E os juncos melodiosos vão ao vento,
Aí, nem uma queixa
Nem sentimento
Novo.
 
Lá onde areias, bicos, água, o extenso
Mar sozinho se der,
Lá, só um lenço
E um malmequer.
 
O lenço, humano, pequenino
E o malmequer selvagem:
Ele só, teimoso e fino,
Guarda segredo à aragem.
 
Flor breve,
Adeus das dunas,
O malmequer me quis bem.
Em seu corpo radiado o mar me escreve
De amores piratas, sobre escunas
Que já não salvam ninguém.
 
 
 
vitorino nemésio
nem toda a noite a vida
antologia poética
asa
2002



 

11 julho 2025

pedro homem de mello / emigrante

  
 
Partiram todos. Fico desterrado
Na mesma Pátria que me viu nascer.
E foi tão longo e breve o meu reinado!
E foi tão longo e breve o meu prazer!
 
Os pés finco na Terra. E, do outro lado,
Vagueia o mar onde há-de sempre haver
Caminhos o moiro destronado
Pode ouvir fontes ao anoitecer…
 
Partiram todos. Mas de flor ao peito,
(Flor de alguém que, ao deixar a minha rua
Se lembrasse de mim naquele instante?)
 
Beijo-lhe, então, as pétalas, no jeito
De quem recolha lágrimas da Lua,
Neste país, neste país distante…
 
 
 
pedro homem de mello
fandangueiro (1971)
poesias escolhidas
imprensa nacional-casa da moeda
1983




10 julho 2025

nuno vidal / cegarrega

  
 
Helena no riso nervoso
no recuo d’aflição
declaravas o amor escuso.
Amêndoa amarga
frivolidades da razão
a ver se pegava.
 
Éramos escolha fraquinha,
uma carga de desgostos
lumes bruxuleantes
arredios, teimosos
a errarmos assim
sem fim, sem mais além.
 
Gostei de ti no minimercado
à fruta
ao alçapão do leite
à cata dos rótulos.
Depois, abóbora.
A tarde caiu do nono
fogo, fingido nosso.
 
Partidos de meias verdades
num adeus de soslaio
e caras de caso.
Um final felizinho
azul, lua conforme.
 
Agora para castigo
dormes no cúmulo das escadas
que por agora vagou
e eu vou aviado
de calores e a pé
para o fim do mundo.
Um lindo par
mas nem uma jarra.
 
Podes escolher-me casacos, calções.
Este amor vai durar
sem nunca ser o teu homem
nem camisas engomadas, ou assim.
 
 
 
nuno vidal
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990






 

09 julho 2025

fernando luís sampaio / as vozes de marraquexe

  
 
Enquanto vai e não vem
A nossa sombra sob o palmar
Desfaz-se na poeira
Do atlas, o silêncio floresce
Na rosa do algodão poeirento,
O cantil gargareja à cintura.
 
A lâmina de aço brota
Das flâmulas tingidas de sangue,
Assim nos recebem à porta
Num gesto moçárabe e elegante,
A piscina murmura a leve frescura.
 
A tarde aquece as ramagens,
Um súbito vento açoita o açafrão
Que se desprende, a pedra infunde
O seu perfume raro e soturno sobre
As fachadas floridas ao anoitecer.
 
As mil vozes da cidade
Adormecem depois
Com a adaga do céu embainhada.
 
 
 
fernando luís sampaio
relâmpago
revista de poesia 29-30
out 2011 abril 2012




 

08 julho 2025

ruy belo / imóvel viagem

  
 
Coisas gloriosas se têm dito de ti
árvore mais verde de quantas há na vida
praia prometida no fundo dos mais belos
dos menos intencionais dos mais
inexplorados olhos
E só para ti senhor não haver
lugar na cidade nem mãos com que te ungir
Servissem-te ao menos meus dias de espaço
não tenho nada já para morrer
abrir-te os braços é tudo o que faço
 
Passaste numa nuvem pelos costumados gestos
qual onda que recua roubaste-mos ao dia
aí teve princípio toda a salvação
 
Havia-me colinas prometidas
e lagos redondos como a minha sede de cervo
Mas reduzi-me à tua irregular geografia
ó foz deste rio irrequieto
Não há nenhuma outra paisagem
mais do que a tua cruz simplificada
 
 
 
ruy belo
todos os poemas I
dedicatória
assírio & alvim
2004




07 julho 2025

alexandre o'neill / o enforcado

  
 
No gesto suspensivo de um sobreiro
o enforcado.
 
Badalo que ninguém ouve,
espantalho que ninguém vê,
suas botas recusam o chão que o rejeitou.
 
Dele sobra o cajado.
 
 
 
alexandre o´neill
a saca de orelhas (1979)
poesias completas
assírio & alvim
2000




 

06 julho 2025

álvaro de campos / há tanto tempo que não sou capaz

  
 
Há tanto tempo que não sou capaz
De escrever um poema extenso!
Há anos...
 
 
Perdi a virtude do desenvolvimento rítmico
Em que a ideia e a forma,
Numa unidade de corpo com alma,
Unanimemente se moviam...
Perdi tudo que me fazia consciente
De uma certeza qualquer no meu ser...
Hoje o que me resta?
O sol que está sem que eu o chamasse...
O dia que me não custou esforço...
Uma brisa, com a festa de uma brisa
Que me dão uma consciência do ar...
E o egoísmo doméstico de não querer mais nada
Mas, ah!, minha Ode Triunfal ,
O teu movimento rectilíneo!
Ah, minha Ode Marítima
 
A tua estrutura geral em estrofe antiestrofe e epodo!
E os meus planos, então, os meus planos —
Esses é que eram as grandes odes.
E aquela a última a suprema a impossível!
 
9-8-1934
 
 
 
álvaro de campos
livro de versos,
fernando pessoa
estampa
1993




05 julho 2025

miguel serras pereira / rebentação

  
 
Pela rebentação dos anos vai o meu amor
Vai no coração branco dos astros e ao alto dos mastros
Recordo-o de repente desconhecido a caminho
porque é ele o navio que me embarca e esqueci
 
Chama-se ilha que habita as encruzilhadas da brisa
Repassa de infinito o silêncio da amada
É o sono do tempo é uma planície de trigo
e no seu voo quem sou ondula entre dois passos
 
Regressa mais que a morte ao rosto de ninguém
como se houvesse mar partiríamos os dois
E nos surpreenderia a noite e eu poderia ao partir
tocar no teu rosto que nunca toquei
 
 
 
miguel serras pereira
á tona do vazio & reprise
cinquenta anos de poesia de miguel serras pereira 1969-2019
o mar a bordo do último navio (1998)
barricada de livros
2022




 

04 julho 2025

sandra costa / manual da vida breve

  
 
2.
 
Por detrás da casa onde cresci,
havia uma velha ameixoeira.
 
Quando os pássaros começam
a cantar entre os telhados,
as ameixoeiras têm flores
muito juntas, muito brancas,
que nunca esqueço.
 
Consta que certas árvores
dão frutos.
 
 
 
sandra costa
manual da vida breve
poesia reunida 2003-2021
officium lectionis edições
2021
 


03 julho 2025

isabel de sá / ela escreveu-me duas palavras…

  
 
Ela escreveu-me duas palavras nem sei bem porquê. Nunca compreendeu não haver em mim qualquer aderência ao mundo. Considerando que o desejo é uma coisa da alma, terei que realizá-lo sem a presença do corpo.
 
Existe a tentação d eme deixar levar pela corrente da vida. Talvez, no fim dela, eu possa escrever uma frase que contenha todo o sentido, sabedoria e impulso que procurei dar-lhe.
 
 
 
isabel de sá
semente em solo adverso (poesia reunida)
o nosso amor desfaz o trio
officium lectionis edições
2022
 


02 julho 2025

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

  
 
IX Madrigal
 
Tu já tinhas um nome, e eu não sei
se eras fonte ou brisa ou mar ou flor.
Nos meus versos chamar-te-ei amor.
 
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000




01 julho 2025

fernando namora / aforismo

  
Entre o arco e o alvo
há a conivência do gesto
e da paixão.
Cada um de nós
é ele mesmo
e o seu adversário.
Por isso o amor
jamais se purga
do que nele é pressentido
ressentimento.
 
 
 
fernando namora
nome para uma casa
livraria bertrand
1984