31 dezembro 2023

antónio franco alexandre / corto viaggio sentimentale, capriccio italiano

 
 
39
 
outra vez volto
a olhar. O paraíso
é assim: à semelhança do inferno,
mas em tudo diferente.
Por exemplo: aqui trocamos os nomes todos,
cada dia é uma nova
constelação. Do outro lado
dos teus olhos,
quando o retrovisor espreita
por cima dos teus ombros,
fica um mundo suspenso,
o manso amor, o vento.
 
 
 
antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999
 



30 dezembro 2023

antónio cândido franco / não me interessa nenhum dom sebastião

 
 
3
 
Não me interessa nenhum Dom Sebastião
fora de mim
como não me interessa nenhuma realeza
salvo a do coração.
 
Há mais Rei nesta minha anarquia
que em qualquer monarquia do mundo.
E há mais saudade no meu nada
que em qualquer memória do passado.
 
O sebastianismo é a descoberta no Homem
daquilo que já não é do Homem
mas da criança eterna e presente.
O sebastianismo é a consciência da criança no Homem.
 
Essa consciência é que é a forma contente de estar triste.
Essa consciência é que é a antiga tristeza lusitana
tão próxima e tão real aqui.
A saudade impossível
a saudade do presente
a saudade que já mão é saudade
mas nada e presença.
 
Se no Inverno
a saudade é a consciência da Primavera
e no Homem
ela é a consciência de ser menino
então nada há aqui de memória ou de desejo
de lembrança do antigo ou de esperança no porvir
de desespero do mesmo
ou de ânsia de qualquer outro.
 
O que há é a presença intemporal de tudo
no instante único e eterno deste presente.
 
Esta saudade é que me faz ser
mas ser nada.
 
E na escuridão e no silêncio desta casa
fria e nua
eu sou a alegria e a plenitude do canto
a graça e a consciência da luz.
 
 
 
antónio cândido franco
apeadeiro
revista de atitudes literárias
nr. 1 primavera 2001
quasi
2001




29 dezembro 2023

francisco brines / com quem farei amor?





 
 
 
                     A Juan Luis Panero
 
 
     Neste copo de genebra bebo
os cercados minutos da noite,
a aridez da música e o ácido
desejo da carne. Só existe,
onde o gelo se ausenta, cristalino
licor e medo à solidão.
Esta noite não haverá a mercenária
companhia, nem gestos de aparente
calor num escasso desejo. Longe
está hoje minha casa, a ela chegarei
na deserta luz da madrugada,
despirei meu corpo, e nas sombras
hei-de jazer com o tempo estéril.
 
 
 
francisco brines
aún no (1971)
ensaio de uma despedida
(antologia 1960-1986)
trad. josé bento
assírio & alvim
1987
 


28 dezembro 2023

elio pecora / circeo

 
 
 
Ulisses, inventor de brigas,
saiu do mar revolto
numa enseada de pedras.
Sob uma pérgula de uvas
remeteu todo o vigor
para Circe, a mais insaciável.
Dos muros do Ciclope
espreita os momentos da água
– remendada a vela,
Oleado o leme,
Volta à tarde ao navio
Imóvel atrás das rochas.
 
 
elio pecora
poemas escolhidos
motivetto (1978)
tradução de simoneta neto
quasi
2008




 

27 dezembro 2023

rui diniz / a solidão é a única certeza

 
 
A solidão é a única certeza.
Escutai: os pássaros gritam
nas azinhagas.
O relógio ausente,
a memória rachada.
Um porto de espera,
O odor vívido de mar.
já nem a tribo é refúgio
e a travessia do deserto
deixou um sabor amargo
na promessa nómada.
As ilhas são só origem
as cidades expulsam
o poeta.
Só a brancura da folha
estendida na mesa
coma sua ânsia de tinta
e o seu desejo de palavras
só essa virtualidade
nos é destino.
«A lâmpada funde-se
entre os dedos,
o silêncio apodrece.
Há flores por toda a parte,
definhando.»
a solidão é-nos destino.
Dela damo-nos conta
quando o encontro se desfaz,
entre gafes,
balbuciamentos.
Respiro, é tarde.
O teu retrato exude
a melancolia
de todas as distâncias.
Suspiro, cismo.
Um corvo crocita
de árvore em árvore.
No passado que se aproxima
terei sido esquecido.
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022




26 dezembro 2023

sophia de mello breyner andresen / a pequena praça

 




 
A minha vida tinha tomado a forma da pequena praça
Naquele outono em que a tua morte se organizava
                                               [meticulosamente
Eu agarrava-me à praça porque tu amavas
A humanidade humilde e nostálgica das pequenas lojas
Onde os caixeiros dobram e desdobram fitas e fazendas
Eu procurava tornar-me tu porque tu ias morrer
E a vida toda deixava ali de ser a minha
Eu procurava sorrir como tu sorrias
Ao vendedor de jornais ao vendedor de tabaco
E à mulher sem pernas que vendia violetas
Eu pedia à mulher sem pernas que rezasse por ti
Eu acendia velas em todos os altares
Das igrejas que ficam no canto desta praça
Pois mal abri os olhos e vi foi para ler
A vocação do eterno escrita no teu rosto
Eu convocava as ruas os lugares as gentes
Que foram as testemunhas do teu rosto
Para que eles te chamassem para que eles desfizessem
O tecido que a morte entrelaçava em ti
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
dual
caminho
2004
 




25 dezembro 2023

alberto caeiro / o mistério das coisas, onde está ele?

 
 
XXXIX
 
O mistério das coisas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio e que sabe a árvore
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as coisas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.
 
Porque o único sentido oculto das coisas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as coisas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.
 
Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: —
As coisas não têm significação: têm existência.
As coisas são o único sentido oculto das coisas.
 
s.d.
 
 
 
alberto caeiro
o guardador de rebanhos
poemas de alberto caeiro
fernando pessoa
ática
1946



24 dezembro 2023

josé de almada negreiros / não te desejo mal nenhum a ti

 



 
Não te desejo mal nenhum a ti
mas ao mundo
que deixa passar tanto engano,
que o permite
que o consente
que o aproveita
e tão imprudente
como se a natureza pudesse fazer o mesmo!
Não, não e não
no circo não há milagres
nenhum palhaço atravessará o círculo
sem rasgar o papel!
É o mistério deste meu amor por ti
que põe a viveza nos meus sentidos
e eu não sou louco a ponto de romper o mistério
a troco de paz para a minha inquietação.
Sou do amor
pertenço-lhe
obedeço-lhe a todas as formas que tomem as suas ordens
e conheço-lhas como aos meus dedos.
Não sou como tu, Amigo
que deixaste o mundo equivocar os teus sentidos
e pôr-te arremedos de sentidos
para mistificar a mímica.
Amo-te, Amigo
e não te posso ajudar a teres-te
como eu te tenho no meu amor por ti.
Atrapalhou-se-te a vida nas tuas mãos
mas tu lá estás embrulhado na tua atrapalhação
e os curiosos em roda
são os únicos que têm a certeza de te safares daí.
 
 
 
josé de almada negreiros
poemas
assírio & alvim
2017



23 dezembro 2023

juan luis panero / por vezes, muito raramente

 
 
Quando pouco na vida nos consola
do tempo, esse verdugo indiferente,
por vezes, muito raramente, na monotonia da noite,
entre repetidos sonhos, surge uma imagem
que reflecte o desejo que deixamos aí
e um rosto – a sua remota aparência – reconstrói
um intenso instantâneo da felicidade.
Quando tão misterioso privilégio nos chega,
acordar em seguida é viver o inferno:
não aquele jogo grotesco de chamas e demónios,
mas o demónio da luz de novo,
o fogo do primeiro cigarro.
 
 
 
juan luis panero
poemas
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2003
 



22 dezembro 2023

josé carlos barros / longe de casa

 




 

A Princesa
lava tachos e descasca batatas
das dez e meia às
quatro da tarde
e das seis às onze da noite.
Nos intervalos
varre o chão
e limpa as bancadas
da cozinha. Chega
a nem ter tempo
de usar a coroa.
 
 
 
josé carlos barros
o uso dos venenos
língua morta
2018
 



21 dezembro 2023

gonçalo m. tavares / os prédios dos pobres

 
 
O cão não urina junto à árvore
como já vi mulheres de banqueiros fazerem.
As duas patas de trás paralelas,
o rabo encostado ao tronco para evitar a queda,
e depois o mijo: quente, rápido e amarelo
como a cor dos prédios dos pobres
assinalados com a subtileza possível
          pelo arquitecto.
 
 
 
gonçalo m. tavares
1 poesia
relógio d´água
2004
 



20 dezembro 2023

tomás sottomayor / a tua voz

 





 
A tua voz – uma flor
Na noite sob o meu peito.
A tua voz – como leite
Ou a ideia apenas
Do que não tem nome.
 
Fermenta, singelo
Um rebento na escuridão.
 
 
 
tomás sottomayor
auberge ravoux
língua morta
2021
 




19 dezembro 2023

luís filipe parrado / no catálogo do mundo

 
 
 
De todos os temas à disposição no catálogo do mundo,
deste mundo, não de outro qualquer,
o que mais me arrebata é
o das flores de plástico. São todas muito doces
e muito tristes,
nos seus vasos de porcelana,
um tema sem dúvida fascinante.
Para começar,
pensem só no que seria a nossa vida se desconhecêssemos
o calor, a sede, o frio.
 
 
 
luís filipe parrado
roma não perdoa a traidores
língua morta
2021
 



18 dezembro 2023

josé miguel silva / nocturno

 




 

A arte já sabemos nasce
da imperfeição das coisas
que trazemos para casa
com o pó da rua
quando a tarde finda
e não temos água quente
para lavar a cabeça.
 
Tentamos regular
com açudes de orações
o curso da tristeza
mudamos de cadeira
e levamos a note
a dizer oxalá
como se a palavra
praticasse anestesia.
 
 
josé miguel silva
ulisses já não mora aqui
língua morta
2014



17 dezembro 2023

konstandinos kaváfis / trouxe à arte

 
 
Dou-me ao enleio aqui.     Desejos e sensações
trouxe à Arte –     umas meio vistas,
caras e linhas;     de inacabados amores
umas memórias incertas.     A ela me deixe.
Sabe formar     Figura da Beleza;
quase imperceptível     completa a vida,
combina impressões,      combina os dias.
 
 
 
konstandinos kavafis
os poemas
I (1919-1932)
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
2005





16 dezembro 2023

heiner müller / welcome to santa monica

 
Um homem a morrer entra no salão do hotel
Onde outros moribundos matam o seu tempo
Curto ou longo entre nascimento e morte
A falar de negócios ou sós com um copo
No qual habita o esquecimento o recém-vindo
Está marcado com o signo de uma outra morte
A sua figura as suas mãos o olhar e a estatura
Já metade anjo ou uma gravura
De Dürer o pedante da melancolia
Um homem beija-o ele é mesmo de carne
Os seus dias ainda não estão contados
Se é permitido acreditar no que vemos
Eles desaparecem por detrás de uma coluna
Em imitação de mármore passado algum tempo
Uma imagem como tirada de um velho filme
Vejo entre uma palmeira em vaso e uma coluna
O homem de boa saúde sentado num cadeirão
E uma mão já quase descarnada
Que acaricia a sua cabeça uma vez várias vezes
Ele não pode parar ela conta as horas
Frente à embassy da nossa pensão
Com o aquecimento avariado Old World Charm
Diz a tabuleta e Proibido entrar
Um antigo combatente chora o seu gato
Que se esconde no jardim da pensão
He’s my only friend in life you know
I watch him not allowed to enter the garden
I’m afraid they stolen him the name is Tiger
A vida não é o mais elevado de todos os valores
Tiger’s the name Tier Tiger
 
 
 
heiner müller
poemas (1949-1995)
trad. adolfo luxúria canibal
officina noctua
2021





15 dezembro 2023

harold pinter / luz do dia

 




 
Atirei um punhado de pétalas sobre os teus seios.
Arranhada pela luz do dia, jazes petalisada.
Assim a tua pele imita o rubor, a cabeça
Roda em todos os sentidos, exibindo um massacre de flores.
 
Eu levo-te então das trevas até ao dia,
E pouso pétala sobre pétala.
 
                                                     
                                         1956
 
 
 
harold pinter
várias vozes
tradução jorge silva melo e francisco frazão
quasi
2006
 




14 dezembro 2023

henri michaux / a estátua e eu

 
 
 
Nos meus tempos mortos, ensino uma estátua a andar. Dada a sua imobilidade exageradamente prolongada, não é nada fácil. Nem para ela. Nem para mim. Dou-me conta de que uma grande distância nos separa. Não sou tão imbecil que não me dê conta disso.
 
Mas não se pode ter todas as boas no nosso jogo. Ou então, adiante.
 
O que interessa é que o seu primeiro passo seja bom. Para ela, tudo reside nesse primeiro passo. Bem sei. Sei disso muito bem. Daí a minha angústia. Por conseguinte, aplico-me. Aplico-me como jamais o fiz.
 
Coloco-me junto dela de modo rigorosamente paralelo: o pé, como ela, levantado e rígido tal estaca enterrada na terra.
 
Porém nunca é exactamente igual. Ou o pé, ou a curva, ou o porte, ou o estilo, há sempre qualquer coisa que falha e o tão esperado arranque não pode ter lugar.
 
É por isso que cheguei a um estado em que eu próprio já quase não consigo andar, tomado de uma rigidez, todavia toda feita de impulso, e o meu corpo fascinado faz-me medo e já não me leva a parte nenhuma.
 
 
 
henri michaux
aparições (1946)
antologia
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
1999
 


13 dezembro 2023

manuel de freitas / but not for me (billie holiday)

 




 

                         

Desistir do rosto, dos propósitos, das
palavras. Há sílabas assim.
Com a vergonha do afecto
emprestada ao desalinho das mesas.
 
Por ali, encenando a imobilidade,
a rudeza de haver dor.
Eu sei que não virás.
Bebo por ti, sem ti, contra ti,
com o coração no bengaleiro
a fingir que não, não faz diferença.
 
E o pior é que até faz,
por muito que ninguém o saiba.
 
 
 
manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002





12 dezembro 2023

manuel antónio pina / tudo o que te disser

 
 
São feitas de palavras as palavras
e da melancolia da
ausência da prosa e da ausência da poesia.
 
É o que falta que fala
do lugar do exílio
do sentido e da falta de sentido.
 
Tudo o que te disser
tudo o que escrever
sou eu a perder-te,
 
cada palavra entre
o que em mim é corpo
e é nela sopro.
 
 
 
manuel antónio pina
em prosa provavelmente
todas as palavras, poesia reunida
assírio & alvim
2012
 



11 dezembro 2023

rui knopfli / fim de tarde no café

 




 
Na tarde cor de azebre
falávamos de coisas amargas.
Ali, na mesa triste do café
com moscas adejando
sobre restos de açúcar
e um copo de água
morna de esquecida,
falávamos da amargura das coisas,
entre rostos graníticos e enxovalhados,
entre estranhos e estranhos
de estranhos e os que,
nada tendo de estranhos,
cuidam de cuidar
o que se passa entre estranhos.
Na tarde comprida e silenciosa
tecíamos gestos inúteis
e palavras entre dentes,
mergulhados na paisagem geométrica
do café. Do café tão cheio de gente
e fumo e moscas e caras tristes
e afinal tão profundamente,
tão desesperadamente vazio.
 
 
 
rui knopfli
motivações
memória consentida
20 anos de poesia 1959/1979
imprensa nacional -casa da moeda
1982
 



10 dezembro 2023

alberto de lacerda / bach

 



 
No claro silêncio desnudo,
      a Geometria dança livremente.
 
Eu sinto, eu creio, eu canto, e a luz é tanta
que a sala se esboroa por completo
e o céu cobre, em palácio, o mundo inteiro.
 
Sou a recta sublime que se cumpre
desde o centro da terra ao infinito.
 
 
 
alberto de lacerda
cadernos de poesia
II série, fascículo 8
Lisboa 1951
campo das letras
2004
 




09 dezembro 2023

rolf dieter brinkmann / poema

 
 
Paisagem destruída, com
latas de conserva, as entradas das casas
vazias, o que há lá dentro? Aqui cheguei
 
à tarde, de comboio,
duas panelas atadas
ao saco de viagem. Agora deixei
 
para trás os sonhos que sopram
numa encruzilhada. E pó,
pavana fragmentada, néon
 
morto, jornais e carris,
este dia, que me resta agora,
um dia mias velho, mais afundado e morto?
 
Quem é que disse que a isto
se chama vida? Eu retiro-me
para outros tons de azul
 
 
 
rolf dieter brinkmann
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
tradução de joão barrento
assírio & alvim
2001
 
 

08 dezembro 2023

samuel beckett / sobressaltos


 
(…)
 
Tinha havido um tempo em que às vezes ele levantava a cabeça o suficiente para ver as mãos. O que havia delas para ver. Uma deitada sobre a mesa e a outra por cima dela. em repouso depois de tudo o que tinham feito. Levantava a antiga cabeça por um momento para ver as antigas mãos. Depois deitava-a outra vez sobre elas para que também ela repousasse. Depois de tudo o que tinha feito.
 
(...)
 
 
 
samuel beckett
sobressaltos
trad. miguel esteves cardoso 
o independente
05-01-1990