L. do D.
Reconheço hoje que falhei, só pasmo, às vezes, de
não ter previsto que falharia. Que havia em mim que prognosticasse um triunfo?
Eu não tinha a força cega dos vencedores ou a visão certa [?] dos loucos...
Era lúcido e triste como um dia frio.
Tenho elementos espirituais de boémio, desses que
deixam a vida ir como uma coisa que se escapa das mãos e a tal hora em que o
gesto de a obter dorme na mera ideia de fazê-lo. Mas não tive a compensação
exterior do espírito boémio — o descuidado fácil das emoções imediatas e
abandonadas. Nunca fui mais que um boémio isolado, o que é um absurdo; ou um
boémio místico, o que é uma coisa impossível.
Certas horas-intervalos que tenho vivido, horas
perante a natureza, esculpidas na ternura do isolamento, ficar-me-ão para
sempre como medalhas. Nesses momentos esqueci todos os meus propósitos de vida,
todas as minhas direcções desejadas. Gozei não ser nada com uma plenitude de
bonança espiritual, caindo no regaço azul das minhas aspirações. Não gozei
nunca, talvez, uma hora indelével, isenta de um fundo espiritual de falência e
de desânimo. Em todas as minhas horas libertas uma dor dormia, floria
vagamente, por detrás dos muros da minha consciência, em outros quintais, mas o
aroma e a própria cor dessas flores tristes atravessavam intuitivamente os
muros, e o lado de lá deles, onde floriam as rosas, nunca deixaram de ser, no
mistério confuso do meu ser, um lado de cá — esbatido na minha sonolência de
viver.
Foi num mar interior que o rio da minha vida
findou. À roda do meu solar sonhado todas as árvores estavam no outono. Esta
paisagem circular é a coroa-de-espinhos da minha alma. Os momentos mais felizes
da minha vida foram sonhos, e sonhos de tristeza, e eu via-me nos lagos deles
como um Narciso cego que gozou a frescura próximo da água, sentindo-se
debruçado nela, por uma visão anterior e nocturna, segredada às emoções
abstractas, vivida nos recantos da imaginação com um cuidado materno em
preferir-se.
Sei que falhei. Gozo a volúpia indeterminada da
falência como quem dá um apreço exausto a uma febre que o enclausura.
s.d.
fernando
pessoa
livro do
desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982
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