Devia ser nos começos do verão, os inumeráveis
jacarandás de Jerez de la Frontera estavam em flor. Nos pátios da luxuosa
vivenda onde me haviam instalado (que o Governo confiscara a um riquíssimo
produtor de vinhos da região por fraude fiscal, agora destinada a hospedar
gente da cultura), os repuxos erguiam os seus irisados fios de água para logo
os deixar cair molemente na face doutras águas cativas em grandes taças de
mármore, onde já flutuavam uma ou outra flor de jacarandá. Aquele rumor, a que
se misturava às vezes algum canto de ave, parecia-me então a música do paraíso.
Durante aqueles dias, eu ficava por ali sentado
toda a manhã com os meus papéis e um copo de água, que o caseiro me punha em
cima da mesa, um copo de cristal com grinaldas de flores gravadas na parte
superior, poucas coisas haverá tão bonitas como um copo de água fresca no
verão, mesmo quando o vidro não tem a o brilho e a transparência do cristal. O caseiro,
cuja voz vinda doutro pátio me prendia a atenção com cantares andaluzes muito
ornamentados, também colocava cuidadosamente à noite, na minha mesa de
cabeceira, um copo de água em tudo semelhante àquele de que falei. E como lhe
referisse a beleza, ele ofereceu-me, ao partir, o que estava no meu quarto,
como lembrança da minha passagem pela casa. É esse copo que, desde então – e já
lá vão tantos anos! – tenho à cabeceira, e sempre com água fresca, como se o
verão e a luz dos jacarandás durassem eternamente.
Foz do Douro, 24.3.2001
eugénio de andrade
inimigo rumor número 14
1º semestre 2003
livros cotovia
2003