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26 janeiro 2024

adam zagajewski / as tardes infindáveis

 
 
Eram essas, as tardes infindáveis, em que a poesia me abandonava.
O rio corria dolentemente, empurrando barcos preguiçosos para o mar.
Eram essas, as tardes infindáveis, a costa de marfim.
As sombras jaziam nas ruas, as vitrinas exibiam altivos manequins,
que me olhavam, com ar de desafio e ousadia.
 
Dos liceus saíam professores de rostos vazios,
como se Homero os tivesse derrotado, humilhado, morto.
Os vespertinos traziam notícias inquietantes,
mas nada mudava, ninguém se apressava.
Nas janelas não havia ninguém, tu própria não estavas lá,
até as freiras pareciam ter vergonha da sua vida.
 
Eram essas, as tardes infindáveis em que a poesia se desvanecia
e ficava sozinho com o demónio opaco da cidade
como um pobre viajante, de pé, em frente à Gare du Nord
com uma mala demasiado pesada, atada com uma corda,
sobre a qual caía a chuva, a chuva preta de Setembro.
 
Oh, diz-me como me curar da ironia, do olhar
que vê mas não trespassa; diz-me como me curar
de estar calado.
 
 
 
adam zagajewski
sombras de sombras
trad. marco bruno
tinta-da-china
2017




12 julho 2023

adam zagajewski / a alma

 




 

Tu sabes que não nos é permitido usar o teu nome.
E nós sabemos que és inexprimível,
anémica, muito frágil e suspeita
de misteriosas faltas na infância.
Sabemos que não te é permitido morar agora
nem na música, nem nas árvores do crepúsculo.
Sabemos – ou melhor, assim nos foi dito –
que não existes em lado nenhum.
E no entanto continuamos a ouvir a tua voz fatigada
– no eco, na queixa, nas cartas que nos
escreve do deserto grego Antígona.
 
 
 
adam zagajewski
sombras de sombras
trad. marco bruno
tinta-da-china
2017




04 julho 2021

adam zagajewski / os bárbaros

 
 
Nós é que éramos os bárbaros.
Pensando em nós é que vocês tremiam nos vossos palácios.
Era por estarem à nossa espera que o vosso coração batia desordenadamente.
Das nossas línguas é que vocês diziam:
talvez se componham só de consoantes,
de frufrus, sussurros e folhas secas.
Nós é que vivíamos nas florestas negras.
De nós é que tinha medo Ovídio em Tomi,
Nós é que adorávamos deuses com nomes
que vocês não conseguiam pronunciar.
Mas também nós conhecemos a solidão
e a angústia, e desejámos a poesia.
 
  
 
adam zagajewski
sombras de sombras
trad. marco bruno
tinta-da-china
2017





30 setembro 2020

adam zagajewski / fim de verão

 
O comboio suburbano corria através dos desertos residenciais
como um punhal sedento do coração.
Dos altifalantes chegava a voz dum dos ditadores
e um esquilo saltava de ramo em ramo,
fugindo ao meu olhar.
Fim de Verão, as pesadas pinhas dos cedros.
uma freira num grosso hábito castanho
sorri como alguém que tivesse percebido tudo.
Na oleosa superfície do charco perseguem-se as libélulas,
os barcos navegam de esguelha e afundam-se na púrpura de um sol sonolento,
a canícula toca em cada coisa e em cada pele como um alfandegário.
O carteiro dormita no banco, da carteira em pele
derramam-se as andorinhas das cartas, no relvado derrete-se o gelado,
as toupeiras constroem morros em memória de sombrios heróis,
que ninguém vai conhecer. Árvores escuras erguem-se
sobre nós e, por entre elas, chamas verdes.
Vai-se aproximando Setembro, e a guerra, e a morte.
 
 
 
 
adam zagajewski
sombras de sombras
trad. marco bruno
tinta-da-china
2017



17 maio 2019

adam zagajewski / mudança



Havia meses que não escrevia
nem um único poema.
Vivia com humildade, lendo os jornais,
pensando no enigma do poder
e nas causas da obediência.
Olhava para os pores-do-sol
(escarlates, cheios de inquietação),
escutava o emudecimento das vozes dos pássaros
e o silêncio da noite.
Via os girassóis a pendurarem
as cabeças ao lusco-fusco, como se um carrasco distraído
passeasse por entre os jardins.
No parapeito recolhia-se
a doce poeira de Setembro enquanto os lagartos
se escondiam nas curvaturas dos muros.
Dava longos passeios,
sedento duma coisa só:
dum relâmpago,
duma mudança,
de ti.



adam zagajewski
sombras de sombras
trad. marco bruno
tinta-da-china
2017






07 março 2019

adam zagajewski / antigamente



Antigamente conseguíamos acreditar nas coisas
invisíveis, nas sombras e nas sombras delas,
numa luz escura e rósea como uma pálpebra.
Ah, as mandíbulas da máquina fotográfica
mordem as imagens. Conseguimos acreditar agora
só no antigamente, exactamente como o pobre
antigamente acreditava em nós, netos e bisnetos,
sonhando que um dia viríamos a sair da armadilha que
em cada geração encenam Danton
e Robespierre, Beria e outros ambiciosos
discípulos. Uma vez que não há refúgio,
há refúgio. Porque as coisas invisíveis
também existem, com sons
que ninguém ouve. Não há
consolação e há consolação, sob o
cotovelo do desejo, lá onde cresceriam
pérolas, se as lágrimas fossem dotadas de memória.
E contudo o patinador não perde o equilíbrio,
saindo às arrecuas do precipício. Contudo
tanto a alvorada como o leiteiro se levantam cedo
e correm na neve, deixando brancas pegadas,
que se enchem de água. Um pequeno pássaro bebe essa água
e canta mais uma vez
salva a desordem das coisas e a ti e a mim
e ao próprio canto.




adam zagajewski
sombras de sombras
trad. marco bruno
tinta-da-china
2017