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15 julho 2023

a. m. pires cabral / a andorinha ou tudo é relativo

 
 
Da andorinha dificilmente se dirá
que é um animal feroz. Pelo contrário,
convêm-lhe adjectivos como grácil.
 
Mas a grácil andorinha abre
para o mosquito uma boca aterradora.
 
 
 
a.  m. pires cabral
resumo, a poesia em 2009
assírio & alvim
2010





06 março 2023

a. m. pires cabral / águas novas



 

Além de fornalhas, a noite também pode
ser um cadeirão onde repouso,
revolvendo na boca os caroços do tempo
como rebuçados de mentol,
 
sentado de perfil contra a luz fria
que vem pela janela, comparável
a um peixe que, sequestrado num charco,
espera libertar-se assim que venham
águas novas de Novembro.
 
 
a.  m. pires cabral
a noite em que a noite ardeu
cotovia
2015
 



 

28 junho 2020

a. m. pires cabral / amar




Amar foi durante muito tempo
gravar iniciais adolescentes,
no fuste das tílias.

Era então uma espécie
de idade de ouro do amor.

Mas tive de aprender à minha custa
que amar pode ser tão envolvente
como um polvo:
ama-se em muitas frentes.

Aprendi que amar, entre outras coisas,
é também navegar as águas da noite
adultamente
sem bússola e sem cautelas,
à proa fugidia dum batel.

E que, em casos mais desesperados,
é ir aos trambolhões de mar em mar.
Tumultuosamente. Sem ser correspondido.
E em chamas, se preciso for.


a.  m. pires cabral
a noite em que a noite ardeu
cotovia
2015





16 maio 2017

a. m. pires cabral / regresso da noite



E, no fim de cada noite,
no fim da trabalhosa noite
barrela de cada noite

– se acaso a noite cumpriu
a missão de que está encarregada –

regresso à luz o dia de alma enxuta,
pronta para ser passada a ferro.


a.  m. pires cabral
a noite em que a noite ardeu
cotovia
2015





07 janeiro 2016

a. m. pires cabral / epígrafe



Se algum dia alguém chegar a ler
este dizer agreste,
provavelmente pensará: que pálida lanterna;
não é deste metal que a luz é feita.

Calma. Pois não.

Mas quem assiduamente
visita os desvãos onde a noite se acoita
não precisa de mais que o clarão desta treva,
desta cegueira sem cão se sem bengala,
para no escuro rasgar o seu caminho
e nele ir progredindo às arrecuas.


a.  m. pires cabral
a noite em que a noite ardeu
cotovia
2015




23 setembro 2011

antónio manuel pires cabral / recado aos corvos





Levai tudo:
o brilho fácil das pratas,
o acre toque das sedas.

Deixai só a incomensurável
memória das labaredas





antónio manuel pires cabral
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990