30 julho 2021

fátima maldonado / signo dos peixes

 



7

Um prédio em construção,
quantas vezes nos fizemos amor
sentindo misturar a cal no cimento.
O baque da massa granulosa
tinia-me por dentro como polegar em sino,
coice da mão contra jarro de vidro.
Tu continuavas vaivindo sobre mim
lembrando-me o engenho
de açúcar no repouso
a nora em alcatruzes
o moído do grão.
Ouvia o tossir de um pedreiro mais idoso
quando enfim descansavas.
O teu peito deitado
atrás das minhas costas
soava na lata do prato
ou no metal do copo
os arranjos tardios da lancheira manchada
por pingos que a unha
já não pode arrancar.
Rápidos subíamos até à varanda,
juntos nos sentávamos,
colunas partidas juncavam o chão.
Vendo à frente o mar de repente baço,
povoado e lento
esvaindo-se em barcos, sereias, guindastes,
chaminés listradas, gaivotas à volta,
o olhar cansado, sentindo-me húmida,
ouvia nos dentes pulsar o teu sangue.
O cheiro que ressumas fazia por cima
de nós um dossel,
a tarde azulada caía de manso.
Ao fundo a igreja e seus minaretes,
a lua espreitava por trás do zimbório,
caía a poalha de um império desfeito
sobre Lisboa enfim pacificada.
 
 
 
fátima maldonado
sem rasto
signo dos peixes
averno
2021

 





29 julho 2021

antónio josé forte / os meus aviadores

 
 
No ano primeiro do fim da melancolia
enquanto os dias e as noites se devoram
é por mim que escrevem os aviadores
com a minha letra solitária
sobre a multidão no deserto
 
podem ler quando eu passo
despido de trevas
 
á a caligrafia da serpente
das praias do tempo da minha infância
onde amanhece
quando faço o gesto de matar
 
posso mandar os meus aviadores escrever
quando passarem sobre os Pirenéus
ao lado da fome da multidão no deserto
 
no avião mais alto      que vai explodir
voa a minha angústia
 
podem ver
na linha do horizonte
uma asa de sangue contra o rosto
a minha máscara de amante
de bruços sobre a terra
 
sou eu à espera dos meus aviadores
 
 
 
antónio josé forte
uma faca nos dentes
caligrafia ardente
parceria a. m . pereira
2003





28 julho 2021

maria teresa horta / os silêncios

 
 
Não entendo os silêncios
que tu fazes
nem aquilo que espreitas
só comigo
 
Se escondes a imagem
e a palavra
e adivinhas aquilo que não
digo
 
Se te calas
eu oiço e eu invento
Se tu foges
eu sei, não te persigo
 
Estendo-te as mãos
dou-te a minha alma
e continuo a querer
ficar contigo
 
 
 
maria teresa horta
poesia reunida
só de amor
dom quixote
2009

 





27 julho 2021

agustina bessa-luís / criar

 
 
 
     «Os judeus pedem milagres, os gregos pretendem a sabedoria.» Nada melhor do que estas palavras de São Paulo, palavras evidentemente dum romano, ainda que transfigurado pela pressão do seu caso, o seu espinho, como lhe chamou. Sem este espinho, a vontade criadora, continuaremos a pedir milagres e encher-nos de sabedoria. O espírito que cria uma obra ou que a projecta, é um espinho na carne; é um combate formidável que só muito palidamente nos é sugerido nos grandes teatros da turbulência humana. Criar é, ao mesmo tempo, obediência e revolta. Tem dois sexos, a aparência e as condições. É austero prazer e alegria corajosa; é uma arte curativa e é uma lei dinâmica.
 
 
 
agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008





26 julho 2021

inês dias / travessa da praia

            


                                 Tudo é margem. Eterno chama o mar.
                                                                        Gottfried Benn
 
 


Foi antes de qualquer poema.
O rio, ao fundo, não era
o da minha aldeia,
mas dividíamos o mundo
sem saber ainda de Tratados,
de um lado a nossa soleira,
do outro a da menina que parecia
um anjo e, garantiam as vizinhas,
estava de morte marcada.
 
Jurávamos não travar, não negar
a recompensa ao vencedor,
e descíamos depois pelos carris,
com a bicicleta testando
uma vocação precoce para a queda
de que nos protegia o olhar
das avós – ao menino e ao borracho…
Um dia disse em voz alta
as saudades da praia e
murmuraram-me ao ouvido,
como se fosse um búzio malicioso
pousado na calçada. Devolvi um sim:
ele abriu o fecho das calças para
urinar atenciosamente na areia
das obras, onde escrevemos castelos
até à hora de jantar, anunciada
pelo passeio manso da Melita,
a cadela do Sr. João.
 
 
inês dias
voo rasante
antologia de poesia contemporânea
mariposa azual
2015






25 julho 2021

gunnar ekelöf / a prova da água

  
Então disse-me:
Os únicos poetas que me interessam
são os que levam cuidadosamente
com mãos nervosas
um vaso cheio de sangue
em que caiu uma gota de leite
ou um vaso cheio de leite
em que caiu uma gota de sangue…
Agora que já o vi, agora quero ver
a firme captura de um vaso cheio até cima
de água do manancial.
 
Om büsten, 1951
 
 

gunnar ekelöf
o destino da árvore é
transformar-se em papel
antologia de poesia sueca
poemas vertidos para português por
amadeu baptista
contracapa
2021



 

24 julho 2021

jenny mastoráki / a alegria da maternidade

 
 
À noite faço trabalhos perigosos.
Ato cordéis compridos
de janela para janela
e penduro jornais clandestinos.
Que queres, a poesia já não dá.
Já outros disseram tudo, dizem.
E depois, há já muitas que cantam
a alegria da maternidade.
A minha filha nasceu
como todos os bebés.
Ao que parece
vai deitar fortes pernas
para correr rápida nas manifestações.
 
 
 
jenny mastoráki
a grécia de que falas…
antologia de poetas gregos modernos
trad. manuel resende
língua morta
2021
 




23 julho 2021

wislawa szymborska / foto de multidão

 
 
Na foto da multidão
a minha cabeça é a sétima da ponta,
ou talvez a quarta da esquerda
ou a vigésima a contar do fundo;
 
minha cabeça não sei qual,
já não una, já não única,
já semelhante às iguais,
nem de mulher nem de homem;
 
os sinais que ela me dá
são particularmente nulos;
 
talvez a olhe o Espírito do Tempo,
mas ela a ele não o vê;
 
minha cabeça de estatística
alimentada de cabos e de aço,
a mais serena e globalmente;
 
sem vergonha de ser uma qualquer,
sem desespero de ser substituível;
 
como se eu de todo a não tivesse
à parte e ao meu modo;
 
como se tivesse sido escavado um cemitério
cheio de anónimas caveiras
muito razoavelmente conservadas
embora perecíveis;
 
como se ela já lá estivesse,
minha cabeça alheia, qualquer uma,
 
onde, se de algo se recorda,
talvez seja do profundo futuro.
 
 
 
 
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998
 





22 julho 2021

juan luis panero / dias sem rasto

 
 
Vi o mar pela manhã
contorcer-se e saltar
– verde negro e espumas ao vento –
com as primeiras chuvas de novembro.
No silêncio da minha casa
escuto o crepitar do fogo,
olho cinza e brasa, dança de chamas.
Sobre a lareira, alguns livros
recordam outros tempos, adornos
que dissimulam uma paixão perdida.
Nem grandeza nem miséria nem escolhidas palavras,
sozinho entre paredes brancas,
fantasma sozinho nesta aldeia de fantasmas.
Natureza, outono e nada acompanham-me
enquanto o frio se cola aos vidros,
deixa embaciadas de gelo as janelas.
O dia continua o seu discurso inútil
e sereno e perde-se na noite.
Ninguém me aproxima, nenhuma sombra, da minha vida,
também não estou a escrever o meu epitáfio,
falo com dor resignada acerca de dias sem rasto.
 
 
 
juan luis panero
poemas
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2003

 







21 julho 2021

louise glück / utopia

 
 
Quando parar o comboio, disse a mulher, tens de o apanhar. Mas como é que eu sei, perguntou a criança, que é o comboio certo? Será o comboio certo, disse a mulher, porque é a altura certa. Um comboio aproximou-se da estação; a chaminé baforava nuvens de fumo acinzentado. Estou tão assustada, pensa a criança, apertando ao peito as tulipas amarelas que irá oferecer à avó. O seu cabelo tinha tranças apertadas para aguentar na viagem. Depois, sem uma palavra, apanha o comboio, de onde vem um som estranho, não numa língua como a que ela fala, mais parecido com um gemido ou um choro.
 
 
 
louise glück
noite virtuosa e fiel
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
2021




20 julho 2021

carlos de oliveira / edgar allan poe

 
 
O inverno em Boston foi breve. Ele bebia. Sílabas abriam-se uma a uma pelos cantos do quarto. Gotas de álcool. Quem se lembra da chuva caída no seu nome?
 
Folheou toda a noite os livros ancestrais e encontrou qualquer coisa, ninguém sabe o quê, talvez o retrato de Annabel Lee. Esboçou-o na vidraça carregada de sombra e o quarto amanheceu.
 
«Mas isso pouco vale (diz a magia negra), o filtro apenas decompôs mais cedo o horror em luz, não alterou a solidão dos dias, que a noite separa uns dos outros para sempre».
 
 
 
 
carlos de oliveira
sobre o lado esquerdo
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1998




19 julho 2021

francesca cricelli / botão



 
Minha mãe insistia que pregasse o botão solto à camisa de linho.
Que removesse o fio que já não o prendia,
que refizesse o alinhavo entre as fissuras.
 
Que o mesmo se segurasse bem sobre o tecido,
para não ter de prega-lo quando enfim caísse,
poderia perdê-lo pelas ruas, sem notar.
 
Mãe que ensina a ver o frágil antes da quebradura.
Antes das coisas se perderam pelas ruas.
Antes do peito se expor à intempérie do tempo e do olhar.
 
Muito mais do que costura,
mãe, olhar atento às coisas por um fio.
 
Tê-las nos dedos com cuidado e paciência.
Refazer o caminho do fio entre os furos.
 
 
 
francesca cricelli
eufeme
magazine de poesia / 20
julho / setembro 2021
edições eufeme
2021






 


 

18 julho 2021

josé gomes ferreira / vivam apenas

 
 
Vivam apenas.
 
Sejam bons como o sol.
Livres como o vento.
Naturais como as fontes.
 
Imitem as árvores dos caminhos
que dão flores e frutos
sem complicações.
 
Mas não queiram convencer os cardos
a transformar os espinhos
em rosas e canções.
 
E principalmente não pensem na Morte.
Não sofram por causa dos cadáveres
que só são belos
quando se desenham na terra em flores.
 
Vivam, apenas.
A Morte é para os mortos!
 
 
josé gomes ferreira
comício 1934
poesia I
portugália
1972