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26 julho 2021

inês dias / travessa da praia

            


                                 Tudo é margem. Eterno chama o mar.
                                                                        Gottfried Benn
 
 


Foi antes de qualquer poema.
O rio, ao fundo, não era
o da minha aldeia,
mas dividíamos o mundo
sem saber ainda de Tratados,
de um lado a nossa soleira,
do outro a da menina que parecia
um anjo e, garantiam as vizinhas,
estava de morte marcada.
 
Jurávamos não travar, não negar
a recompensa ao vencedor,
e descíamos depois pelos carris,
com a bicicleta testando
uma vocação precoce para a queda
de que nos protegia o olhar
das avós – ao menino e ao borracho…
Um dia disse em voz alta
as saudades da praia e
murmuraram-me ao ouvido,
como se fosse um búzio malicioso
pousado na calçada. Devolvi um sim:
ele abriu o fecho das calças para
urinar atenciosamente na areia
das obras, onde escrevemos castelos
até à hora de jantar, anunciada
pelo passeio manso da Melita,
a cadela do Sr. João.
 
 
inês dias
voo rasante
antologia de poesia contemporânea
mariposa azual
2015






11 fevereiro 2014

inês dias / your funeral, my trial



O morto fica mais só
quando quem fala lhe rouba
a última memória desse barco
desmesurado da infância,
construído sem vista para o mar.

O morto fica mais só ainda,
quando quem ouve se esquece da música
para escolher o seu próprio funeral,
alinhando convidados e preferindo coroas
de plástico a condizer com as lágrimas.

O morto fica mais só ainda, se possível,
quando me distraio com o mel da luz
nos vitrais ou sigo o gato amarelado
para quem a morte é apenas uma questão de
sobrevivência, talvez um jogo, se algum rato
finge entregar-se com prazer às suas garras.

Hoje, pela primeira vez, não me chegam
os dedos para contar os meus dias de veladora.
Mesmo sabendo que nenhum ritual nos consola,
tento apaziguar a terra que se abre a meus pés,
plantando cravos condenados que nunca voltarão a florir.
E invejo secretamente o morto, porque já não precisa de
conhecer a flor preferida de ninguém:
pode simplesmente deixar-se estar,
na certeza de que o chão não lhe voltará a falhar.

Os mais sós, afinal, são sempre os sobreviventes.




inês dias
resumo, a poesia em 2011
documenta
2012



15 janeiro 2014

inês dias / et nunc manet in te



Meu amor,
a casa está tão sozinha que
os pássaros vêm morrer lá dentro.
Nada mudou, mas falta
a mão para acariciar o gato
e acolher a ninhada secreta,
o sorriso que enchia o tanque
e fazia crescer a horta.

Já ninguém apanha as laranjas mais altas
ou usa a sombra da nogueira.
E até os ciprestes se tornaram redundantes
ao ponto de os abatermos:
a ausência diz-se melhor no esplendor
inútil das rosas sem esse olhar,
nas papoilas raras que duram
o tempo de uma fotografia.

Um dia, deixaremos também uma casa assim,
casulo abandonado a sobreviver-nos.
Um de nós escutará as asas ansiosas
na chaminé, antes de pousar o livro
e amparar o último pássaro.
Só parecerá menos triste
porque não teremos, então,
nada mais a perder.



inês dias
resumo, a poesia em 2011
documenta
2012





31 julho 2013

inês dias / vento garrôa


{Parque Eduardo VII, 1954]


Ouve-me tu, desta vez.
Nem cercos precários,
desvios que nunca se encontram
ou compromissos com o absoluto:
não quero mais coincidir
com o tempo,
agora que deixei de coincidir
com a minha língua.

Quero um amor que tenha
a lealdade de um cancro,
que alastre apenas dentro de mim
e me escolha os ossos
com dedos ligeiros mas demorados
de nódoa negra.

Diz-me o sentido
e seguir-te-ei,
de palavras levantadas contra o frio,
até chegar o som da espinha
quebrada como um livro
que se cansou de ser aberto.


inês dias
resumo, a poesia em 2012
documenta
2013



27 maio 2013

inês dias / um estranho no meu túmulo



Chegámos tarde a nós.
Eu tinha a pele gasta, o coração no fio.
Tu eras um longo muro de cimento areado
em que deixava a carne inteira
a caminho do encontro.

A primavera ficava-nos sempre
à esquerda, e tu cada vez mais
dentro de mim até não sentir nada,
até estares já do outro lado.
Para trás, a cova matinal na almofada,
o postal entre a leitura suspensa,
o número a chamar de um fantasma.

Se apagar as marcas de onde pousaste
a cabeça sobre a minha vida,
se ganhar novo espaço para o fôlego,
faz-me só um favor:
nunca mais me reconheças.



inês dias
resumo, a poesia em 2012
documenta
2013



03 outubro 2012

inês dias / nostalghia





Ouvia-te falar e sentia
as chamas retomarem
as paredes do teu coração
de igreja abandonada.
O céu, nessa tarde,
era um leque de lantejoulas
ao rés do teu sorriso
e dos meus olhos encandeados.
Doía-me esse excesso de luz
que te fazia toda sombra,
o crepitar morno da pele
antes do incêndio consumado.

Sempre que dizias o seu nome,
Riscavas outro fósforo ─
ele avançava dentro de ti,
 nas mãos uma vela prestes a cair.
Amo demasiado o fogo
para a suster. Prefiro
redesenhar as nossas cicatrizes,
ser depois a memória da pedra
fria em pleno Verão.




inês dias
resumo
a poesia em 2011
assírio & alvim
2012