18 janeiro 2020

josé saramago / não há mais horizonte



Não há mais horizonte. Outro passo que desse,
Se o limite não fosse esta ruptura,
Era em falso que o dava:
Numa baça cortina indivisível
De espaço e duração.
Aqui se juntarão as paralelas,
E as parábolas em rectas se rebatem.
Não há mais horizonte. O silêncio responde.
É Deus que se enganou e o confessa.



josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018








17 janeiro 2020

luís falcão / o clarão dos gritos



O clarão dos gritos
rasurando
nos seus próprios fundamentos
a matéria luminosa
que se insinua nos limites do silêncio
acendendo
na quietude de uma ordem imprescritível
a devastação
daqueles que pensavam vir apenas por uma noite



luís falcão
bruma luminosíssima
artefacto
2016







16 janeiro 2020

francis ponge / o fogo



     O fogo classifica: primeiro, todas as chamas se dirigem num certo sentido…
     (Não se pode comparar o andar do fogo senão ao dos animais: é preciso que ele deixe um lugar para vir a ocupar um outro; anda ao mesmo tempo como uma amiba e como uma girafa, sacode o pescoço, rasteja de pé)…
     Depois, enquanto as massas metodicamente contaminadas desabam, os gases que se libertam vão sendo transformados numa única rampa de borboletas.


francis ponge
alguns poemas
tradução de manuel gusmão
livros cotovia
1996











15 janeiro 2020

claudio rodríguez / adeus



Trocaria a vida por qualquer coisa
esta tarde. Qualquer coisa pequena,
se alguma há. Martírio é o sereno
rumor sem escrúpulos dos teus sapatos
rasos, que já não voltam. Que vitórias
quer quem ama? Porque são tão direitas
as ruas? Não olho para trás, mas
já não te sei perder de vista. Esta
é a terra do escárnio: os amigos dão
informações falsas. A minha boca
beija o que morre, e aceita-o e até a pele
do lábio é a do vento. Adeus. É útil,
normal este facto, dizem. Aceita
as nossas coisas, tu que podes tê-las.
Eu vou para onde me levar a noite.



claudio rodríguez
sem epitáfio
trad.miguel filipe mochila
língua morta
2019







14 janeiro 2020

rafael mendes / ano novo



a felicidade contagia as casas
afloram bons dias, abraços
saudações aprazíveis a desconhecidos
buzinas e rojões rasgam o céu

famílias relembram histórias
tantas vezes já repetidas
mas apreciadas com esmero
como a impúbere criança

quando já alto o dia
uns repousam vencidos pela fartura
outros permanecem em silêncio
gozando dos momentos derradeiros

rápido virá o amanhã
e tudo não será como hoje

lá a corrupção e a chaga
aqui remanso e júbilo



rafael mendes
ensaio sobre o belo e o caos
editora urutau
2019






13 janeiro 2020

konstandinos kaváfis / quando se excitam



Procura guardá-las, poeta
por muito que sejam poucas as coisas que podem ser detidas.
As visões do teu erotismo.
Mete-as, meio escondidas, nas tuas frases.
Procura segurá-las, poeta,
quando se excitam na tua mente,
à noite, ou no esplendor do meio-dia.



konstandinos kavafis
os poemas
II (1916-1918)
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
2005








12 janeiro 2020

vitorino nemésio / ultra-violeta



Sonho muito.
Tiro pedaços de sangue à noite, pretérito do dia
(Eu é que fico pretérito – preterido: - a noite irá).
Esclareço assim pequenas confusões adiantadas no senso,
Na cinza científica (azoto, silício, etc.),
No preconceito serial caligrafado a néon.
Escrevo torto/morto
E de repente tenho boa letra, vivo e não rimo:
Fugiu do meu sangue o ritmo do tambor auricular,
E, à sístole que fecha, a diástole abre e levanta
A Catedral do Homo Sapiens que abençoa sem mitra
                                                                    [os ignorantes,
O Poeta de sangue, dador de sangue,
Cheio de picadas e rosas como uma pulga e um lençol,
Uma roseira brava ou um avental de menina,
Seja Rosa de Lima ou vá pela mão do Snr. Rosa.

Sangro muito.
Forço a protecção do epitélio
Destruindo o equilíbrio aos glóbulos sem núcleo,
Meras esferas admiráveis, rubras,
Levemente gordurosas,
Pã, pã, reflectindo o silêncio interior nas almofadas
E tingindo as estradas da pintura sagrada do acidente
(Cruz ao morto!).

Sangro muito.
Avermelho o branco deslumbrante até ao infra
E deliro ainda mais sobre o violeta, que queima:
Por isso há quem me chame o Pelicano esvaído,
Mas eu, o pai dos Nomes, chamo-me só Poeta,


vitorino nemésio
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987






11 janeiro 2020

federico garcia lorca / ai!


O grito deixa no vento
uma sombra de cipreste.

(Deixai-me neste campo
chorando.)

Tudo se perdeu no mundo.
Não ficou mais que o silêncio.

(Deixai-me neste campo
chorando.)

O horizonte sem luz
está mordido de fogueiras.

(Já vos disse que me deixeis
neste campo
chorando.)



federico garcia lorca
poemas
trad. de eugénio de andrade
assírio & alvim
2013






10 janeiro 2020

maria gabriela llansol / causa amante


 4 – foi a observar as beguinas migratórias que
      aprendi muito sobre o comportamento das aves;
      pelo verde, e pelo Inverno, espero o momento
      em que me seja revelado
      quantos do nome de João
      fizeram o meu nome.
      As beguinas que migram,
      não encontraram aqui nem o alimento,
      nem o modo de vida adequado.
      Não declaram morto o que está morto:
      pensam que adormeceu, e não o acordam.



maria gabriela llansol
causa amante
a regra do jogo
1984






09 janeiro 2020

jorge de sena / aprender


I
Passo a minha mão pela tua cabeça,
recurvamente, atentamente, e só com dedos brandos,
olhando-a como passa e vendo onde passou.

Quero tanto saber o que tu pensas.

II
O que tu pensas, mas apenas como,
e quando e o porquê, e não
que estejas pensando ou não que a minha mão,
atenta e recurvada, passa brandamente.

Quero saber aquilo que nem sabes.

III
Aquilo que nem sabes – como saberias
o que o pensar é antes de pensar-se?

A mão que pousa e vai passar atenta.
O olhar que espera ver passar o gesto.
A tácita lembrança de volver os olhos.
A brisa que sabemos vai soprar tão mansa,
ainda antes, no fremir de pétalas ou folhas,
mas não na expectativa do arrepio prévio.

IV
Por que esperaste, ciente, a pele da minha mão?


jorge de sena
fidelidade (1958)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972







08 janeiro 2020

juan vicente piqueras / proposta de epitáfio



Em criança fui imortal. Em adolescente
rebelei-me contra o que agora sou.
Em jovem fui selvagem. Fiz sofrer
e sofri muito mais do que quis.
Pouco a pouco a morte (era semente
e parecia alheia) foi crescendo
dentro de mim, feliz, recuperando
o que era seu e eu soube de que era feita
a vida já bem tarde. Na velhice
beijava a água e abraçava o ar
como o doente abraça a esperança
ou o náufrago a espera. Nunca o mundo
foi tão belo como antes de partir.
Agora já não existe. Agora sonho
que o que já não sou volta a nascer.



juan vicente piqueras
instruções para atravessar o deserto
trad.joão duarte rodrigues
e manuel alberto valente
assírio & alvim
2019







07 janeiro 2020

joão luís barreto guimarães / a mesma chuva de sempre



Voltamos para casa tarde
(a cama: ainda
por fazer)
o lençol afeiçoado àquele
vinco da manhã e
percebo pela imagem como assentimos a pressa
como o
dia é uma partida com a meia cinzenta rota
no dedo grande do pé. Eu e
o cadeirão de madeira gastamos o
mesmo número de ombros
(hoje usou o dia inteiro a
minha camisa aos quadrados).
O fim de tarde repousa em vasilhas
junto à entrada no
canto da sala onde fomos deixando apinhoar o
monte de jornais antigos com recortes por fazer
(na nódoa que
assentimos: passasse a ser parte integrante do
padrão do sofá)
no cabelo que imolaste ao
meu lado do lençol testemunhando que ontem
ontem sim
ontem sim. A
felicidade entra em casa em sacos de hipermercado –
está de volta o estranhamento de
fugaz tranquilidade por
sabermos que o ruído que insiste sobre o telhado
não
é o céu a cair
(não são anjos a chorar)
são apenas os acordes da
mesma
chuva de sempre.



joão luís barreto guimarães
rés-do-chão (2003)
o tempo avança por sílabas
poemas escolhidos
quetzal
2019





06 janeiro 2020

mário cláudio / orvieto, 15.9.86



tiago manuel


Orvieto, 15.9.86

Na máscara de um etrusco se transformava, às vezes. Brilhava no bronze que o poente tingia, a cada instante se esfarelando. Era um grito de guerra, o estertor da posse consumada. Adiava-se por terrenos semeados, necrópoles acabadas de exumar, vindimas de mosto e sangue. Dele se contava que havia conhecido a alegria mortuária, o gesto pequeno com que ao além se transita. Bastava isso à respiração, em sua companhia viajávamos nas galerias da terra.



mário cláudio
hífen 1 out. 87/ mar. 88
cadernos semestrais de poesia
1987