19 julho 2010
adonis / um espelho para o século xx
Um caixão com a cara de um rapaz
Um livro
Escrito no ventre de um corvo
Um animal selvagem escondido numa flor
Um rochedo
A respirar com os pulmões de um lunático:
É isto
É isto o Século Vinte
adonis
a palavra interdita
trad. maria de lurdes guimarães
campo das letras
2001
15 julho 2010
e. e. cummings / pode nem sempre ser assim
[ i ]
pode nem sempre ser assim; e eu digo
que se os teus lábios, que amei, tocarem
os de outro, e os teus dedos fortes e meigos cingirem
o seu coração, como o meu em tempos não muito distantes;
se na face de outro os teus suaves cabelos repousarem
nesse silêncio que eu sei, ou nessas
palavras sublimes e estremecidas que, dizendo demasiado
ficam desamparadamente diante do espírito vozeando;
se assim for, eu digo se assim for –
tu do meu coração, manda-me um recado;
que eu posso ir junto dele, e tomar as suas mãos,
dizendo, Aceita toda a felicidade de mim.
Então hei-de voltar a cara, e ouvir um pássaro
cantar terrivelmente longe nas terras perdidas.
e. e. cummings
xix poemas
trad. jorge fazenda lourenço
assírio & Alvim
1998
14 julho 2010
amalia bautista / xerazade
Levo já quase mil noites com fábulas
e a cabeça dói-me e tenho seca
a língua e esgotados os recursos,
a imaginação. E nem sequer
sei se me salvarei com as mentiras.
amalia bautista
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004
12 julho 2010
gil t. sousa / do teu nome
21/
sobra de todo o silêncio
o raro acorde
do teu nome
a que solidão altíssima
me entregas
quando te deixas morrer assim
no abraço faminto
do tempo?
gil t. sousa
falso lugar
2004
10 julho 2010
r. lino / palavras do imperador hadriano no princípio do sono
há um pouco de vento fustigando a tarde
- mas não mais que um pouco –
e o meu corpo exposto às dunas
cai como ao princípio da noite.
hoje e ontem
escorrem-me pelos olhos
enquanto estendo as mãos
e por elas inscrevo o gosto do tacto pela areia.
disseram-me que o homem
estava escrito no homem
e o tempo dele: linhas cruzadas
ou ilhas ou maior profundidade,
nunca pude ler as tuas mãos
e das linhas apenas percebi
como pelos gestos tu me afirmavas
ou negando
me reafirmavas: dunas pelo vento
e de novo partíamos.
não posso, no entanto, pedir contas
à tua ausência. no simulacro
da coragem, quantas vezes
teremos dito o que negávamos
e a tua boca
mais perto da minha
teria, apesar
a certeza de que ninguém perde ninguém
e que os negócios do estado
apenas confirmam
entre as misérias de uns
e os ousados roubos de outros
como passa sobre essa certeza
o tempo
ao correr das sociedades
e dos impérios
no princípio desta noite.
r. lino
palavras do imperador hadriano
1984
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987
08 julho 2010
jorge reis-sá / danny boy
Vou finalmente fechar o postigo, expirar a entrada mais feliz
do meu coração. É altura, José, de deixar as flores secarem,
o poço ganhar a escuridão que vem ameaçando há anos.
Soltarei de vez os canários e os pardais que prendi
naquela gaiola, junto ao coberto. Da mesma forma
que o farei contigo – segue o teu caminho e deixa que
este pobre velho que a vida baralhou encerre os seus pulmões
e procure noutra casa entradas maiores para o maior coração.
jorge reis-sá
vou para casa
quasi
2008
06 julho 2010
rui lage / les baigneuses
...........................para o Agostinho Santos
nas margens do rio depois de jantar
um vulto equipado de isqueiro
e tabaco de enrolar
passa a pente fino cabelos
que as casas deitam nas águas
com fachadas anoitecidas
e postigos iluminados,
quais do banho saídas
ou das telas de Degas
níveas mulheres de robe
e turbante a fumegar.
rui lage
corvo
quasi
2008
05 julho 2010
jean daive / éden
Uma mulher a medir.
Uma mulher de braços estendidos
transfere comprimentos ou
proporções.
Ela calcula
o sono desse homem que nunca
mais dormirá.
É preciso que se saiba
que tudo começa
pela ampliação
fotográfica
de uma vírgula.
*
Isso
tece um som,
Um afrouxar
repentino,
esse líquido ladeando uma luz
para uma fotografia
em que o cinzento predomina,
Aquilo que vês é composto
de um homem e uma mulher
justamente.
Cadeirão. Sentado a um canto.
Estás sozinho na sala, Fumas
talvez, de queixo nos joelhos.
Entras
outra vez só
num
som da rua.
Vês sombras azuis
correndo
e no visor
a carne de comer.
*
Palavras penduradas
em que o cinzento predomina.
A gasolina pintada a cor-de-rosa
em redor de uma casa
aflui.
O jardim arde.
Uma pedra cai
e tu não és mais pesado.
Perfila-se um fim
como depois da história de uma paixão.
Mas evita-se um sentido cinético do mundo.
E a necessidade reencontrada
do isolamento.
Também
o teu cadeirão
se não articula
com o que o autor quer dizer?
Sorris. Apreendes uma separação.
*
Como é que se antecipa
o gaguejar,
um sistema de coordenadas?
O mundo de um filme
de longuíssima duração
não te subtrai.
Porque
este não é o mundo
que entra nos teus olhos.
É o fim do dia. É o fim das legendas.
A escuridão não tem pó
como a mulher.
Lateralmente
o fumo ondula
semelhante
a uma pulsação.
Mais tarde.
Um cansaço no quarto e na
cama o tempo é não gerado.
(de Narration d’équilibre 6, 7 8, 9)
jean daive
sud-express
poesia francesa de hoje
tradução pedro tamen
relógio d´água
1993
04 julho 2010
armando silva carvalho / a chave inglesa
Era um corpo inteiramente
português.
Transido de ternura
o óleo das suas mãos
protegia-me
o coração.
Não sei que mecanismo
despertava em si
quando chorava,
fazia crescer a relva,
meus dentes indecisos
como crias
corriam e devoravam.
Escreveu-me duas cartas
em cima de um tractor
e nelas descrevia
em frases simples
o modo tortuoso
que me fez traidor.
armando silva carvalho
as escadas não têm degraus nr. 3
livros cotovia
1990
03 julho 2010
yorgos seferis / a água quente…
A água quente lembra-me todas as manhãs
que não tenho mais nada vivo ao pé de mim.
yorgos seferis
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães
e nikos pratisinis
relógio d´água
1993
30 junho 2010
umberto saba / trabalho
Outrora
a minha vida era fácil. A terra
dava-me flores frutos abundantes
Hoje arroteio um terreno seco e duro.
A enxada
bate em pedras, em tojos. Tenho de cavar
fundo, como quem busca um tesouro.
umberto saba
dez poetas italianos contemporâneos em selecção
trad. albano martins
dom quixote
1992
28 junho 2010
martin earl / vinho
Quanto mais ao sul mais chegados à terra
São as culturas, dobradas como velhos japoneses
Sobre as pernas, um braço esticado, a olhar
Para trás por sobre os ombros, para as figuras
Que os outros fazem, todos assim, ou de joelhos
Pelo arame fora, enquanto vai descendo o sol:
Um Deus verde enlaçado, ao qual a mágoa
Segue a toda a parte, como por sistema –
A sua hora um copo de vinho cheio de tempo,
Onda semeada no sangue, sulco aberto
No cérebro, engenho aguçado demais:
Saem-lhe as ideias, em latim, sem rima.
Mas quando, à altura dos olhos, vejo
Jorrar a luz da janela que o atravessa,
Como se viesse de algures dentro
Do copo, ou dos olhos de quem bebe,
Eis que trespassa o coração, vai direita
Ao medo e leva tudo, eu sei que vou ficar.
martin earl
sonnets from the portuguese
trad. de manuel portela
oficina de poesia
revista da palavra e da imagem
nr. 1 série II
junho 2002
24 junho 2010
gil t. sousa / é como acordar
20/
é como acordar.
mas aquilo que flúi quando acordas,
aquilo que te liga os dias donde vens
aos dias a que queres chegar,
aquela abundância de razão e de consciência
que te dá sentido à vida...
esse movimento está ausente
e sentes-te como um fumo.
qualquer coisa te pode esmagar,
qualquer gesto te pode transportar
a um chão que não existe,
a um caminho
que os teus passos não sabem percorrer.
e as tuas mãos ficam húmidas desse delírio.
e os olhos caem-te aflitos no lugar da doçura ausente.
e ficas sem gritar,
ergues-te sobre esse dia que chega
e tudo é maior do que possas ter para te agarrar.
e deixas-te ir, etéreo como um fumo…
podia ser esse o minuto da loucura.
podia ser esse o momento de abraçar a luz
e estalar docemente numa noite qualquer.
como uma fenda de fogo,
como um punhal de lume
que enfim te rasgasse o mundo.
gil t. sousa
falso lugar
2004
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