04 outubro 2009

fernando pinto do amaral / schubert, d.714











Demorámos um ano a aprender
alguns gestos de assombro e maravilha,
a voz da adolescência que desperta
silenciosa, depois do degelo,
e nos derrete a neve que envolvia
o próprio coração, agora aqui
à flor das nossas bocas.

Afogado na tua presença,
repito cada vez com menos estranheza
uma palavra: nós.
A sua vibração é um relâmpago
no crepúsculo da sala
e volto a encontrar a flor azul
que brota dos teus olhos, sempre em busca
de um sobressalto iluminado
quando dizemos: "toma, este é o meu corpo,
revelado por ti."

Sei hoje como é perder a inocência
e conservá-la ainda num recanto
desta sala de espelhos onde vive
a luz da tua imagem entre vozes
que celebram em coro o espírito das águas,
essa primeira esperança confiada
por Deus às nossas vidas.








fernando pinto do amaralàs cegas
relógio d´água
lisboa
1997






02 outubro 2009

al berto / lunário








(...)

Um dia, quando a minha memória de homem fugitivo
alcançar a idade de um deserto, debruçar-me-ei num poço e
tentarei beber o tempo esquecido do teu rosto. Estarei lucidamente
morto, eu sei, e os meus olhos já não prenderão a adolescência,
nem as imagens que dela se soltaram. E a minha cegueira surgirá
cercada por frondosas árvores e pássaros, mas não os verei mais.
O rosto, o teu rosto, já não conseguirá atrair-me para o fundo
circular do poço.

O tempo de sedução terminou. Terás de me tocar, terás de
trocar o tacto dos olhos pelo tacto dos dedos. Apenas persistirá o
jogo, a cumplicidade, e uma ténue vibração do corpo que se
perdeu contra o meu corpo.

Por isso me ergo daqui e atravesso estas imagens coladas às
paredes, e ao atravessá-las descubro que estou perdido, e
condenado também a perder-te.

Levanto-me do fundo de mim mesmo e abandono a casa, os
bens que herdei, e vou pela memória daqueles vestígios que se me
cravaram no interior das pálpebras, mas não semeio nem recolho
nada. Apenas persigo os passos que outrora abandonei pelas
cidades onde te procurei, antes mesmo de saber que existias.

E perco-me, perco-me onde a sombra dos corpos é um
sudário de melancolia sobre o mar. Mas, ainda aqui estou, quase
vivo, atento ao movimento perene de tuas mãos sobre o meu
corpo. E sem bússola, nómada até aos ossos, sigo pela noite onde
aportei, e não reconheço a casa que me destinaram para morrer.

(...)

As cidades seduziram-me com imagens de abismos
subterrâneos, vertigens de esperma que se vende, compra e troca. E sonhar
com essas cidades de medo e fascínio é ainda uma maneira de
saciar parte do desejo que me assola. Mas já só existo no que de
mim se cristalizou nas palavras, e é tão pouco...

De imobilidade em imobilidade a vida avançou, avançou
por ininteligíveis iluminações. Hoje, neste fim de século,
desloco-me sem saber como dentro das fotografias que revestem as paredes
deste quarto. E é-me indiferente estar aqui. Sempre que posso fujo,
fujo no olhar que cegou o meu. Porque eu fujo e vou com tudo
aquilo que me chama e toca. Vou com o azul dos olhos do
marçano ali da esquina, vou com as folhas das árvores no outono da
minha rua, vou com a noite à procura da manhã sobre o rio. Vou
pelos arranha-céus acima e contemplo dos altos terraços o sono
esbranquiçado dos mortos. Vou com o teu corpo que me desgasta a
memória doutros corpos e me transforma em esquecimento... vou,
vou sempre, pela humidade dos cardos presos em tua boca.

Abro depois as mãos, e não há mar nas suas linhas, nem
barcos que venham descansar na ponta dos dedos, e a linha do
coração - repara - é uma calosidade. E por uma noite da
imensa cegueira, quando já morar definitivamente em ti,
abandonar-te-ei... à hora dos répteis recolherem o calor nas fissuras do
tempo.

Intacto, irei à procura do merecido repouso.







al berto
lunário
assírio & alvim
1999




29 setembro 2009

henri michaux / mais um infeliz






Ele morava na rua de Saint Sulpice. Mas deixou a casa.
«Perto demais do Sena, disse ele, e um passo em falso dá-se num repente».
Foi-se embora.

Pouca gente pensa no facto de a água existir;
água profunda, e por toda a parte.
Os rios dos Alpes não são tão profundos,
mas são extremamente rápidos (o que vem dar ao mesmo).
A água é sempre a mais forte,
seja lá qual for a maneira como se apresente.
E como se encontra por todos lados, em quase todas as estradas...
bem pode haver pontes e mais pontes — basta faltar uma
e a pessoa afoga-se, tão certo como antes de haver pontes.

«Tome Hemostil, dizia o médico,
isso é do sangue.»
«Tome Antastene, dizia o médico,
isso é dos nervos.»
«Tome bals dizia o médico,
isso é da bexiga.»

Oh! a água,
toda essa água pelo mundo fora!








henri michaux
as minhas propriedades
trad. josé carlos gonzález
fenda
1998


27 setembro 2009

hans-ulrich treichel / verão








De súbito, na rua, está
outra vez um calor inconcebível,
o matraquear das sandálias de pau, as raparigas
abrem as blusas, não me atrevo
a sair da minha pele hirta
de suor e suspiro pelo Inverno,
que tem o seu lado bom, escuridão eterna,
humidade salgada, botas pesadas como pedras,
e o desejo das blusas abertas,
sandálias de pau e luz.








hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994





23 setembro 2009

andre breton e paul éluard / a força do hábito





A mesa está posta na sala de jantar; as torneiras distribuem água límpida, água tépida, água quente, água perfumada. O leito é tão grande para dois corno para um. Depois do rebento vai chegar a folha e depois da folha a flor e depois da chuva o bom tempo. Por que é chegada a hora, os olhos abrem-se, o corpo ergue-se, a mão estende-se, o fogo acende-se, o sorriso disputa às rugas da noite a sua curva sem malícia. E são os ponteiros do relógio que se abrem, que se erguem, que se estendem, que se acendem e que marcam a hora do sorriso. O raio de sol dá volta à casa em blusa branca. Ainda vai nevar, ainda vão cair algumas gotas de sangue pelas cinco horas mas não será nada. Oh! tenho medo, acreditei de repente que já não havia rua diante da janela, mas há, sim, lá está ela. O farmacêutico está quase a levantar a porta de ferro. Não tardará em haver mais gente à roda que no moinho, O trabalho talha-se, forja-se, desbasta-se, calcula-se. A mão volta a encontrar com prazer na ferramenta familiar a segurança do sono.

Assim isso dure!

O espelho é uma maravilhosa testemunha, variando sem cessar. Depõe com calma, com força, mas quando acabou de falar, nota-se que ele se corrige acerca de tudo. É a personificação corrente da verdade.

Sobre o caminho ricochete obstinadamente enlaçado às pernas da que volta a partir hoje tal como tornará a partir amanhã, sobre os jazigos ligeiros da despreocupação, mil passos em cada dia casam-se com os passos da véspera. Já se regressou, voltará a regressar-se sem se fazer rogado. Todos passaram por ali, indo da sua alegria à sua mágoa. É um pequeno refúgio com um imenso bico de gás. Põe-se um pé à frente de outro e aí vamos.

As paredes cobrem-se de quadros, as festas suavizam-se com ramos de flores, o espelho embacia-se de humidade. Quantos faróis sobre um regato e o regato está na vasa do rio. Dois olhos semelhantes, para servir o teu único rosto, — dois olhos cobertos pelas mesmas formigas. O verde está quase uniformemente distribuído pelas plantas, o vento segue as aves, não se corre o risco de ver morrer as pedras. O que se produz não é um animal domesticado, mas um animal domador. Ora! é a ordem imprescritível de uma cerimónia já tão faustosa, em suma! É o revólver de repetição que faz aparecer as flores no vaso, o hálito na boca.

O amor, com o tempo, renuncia tão bem a ver distintamente a noite.

Quando não estás lá, há o teu perfume que me procura. Não consigo fazer com que me restitua senão o oráculo da tua fraqueza. A minha mão na tua mão tão pouco se parecia com a tua mão na minha mão. A infelicidade, vês, a própria infelicidade ganha em ser conhecida. Tinha-te recebido como quinhão, não podes deixar de lá estar, és a prova de que existo. E tudo está de acordo com esta vida que para mim fiz para ter a certeza de ti.
— Em que pensas?
— Em nada.






andre breton e paul éluard
as mediações
a imaculada concepção
tradução franco de sousa
estúdios cor
1972








21 setembro 2009

antonio gamoneda / o vigilante da neve







Fingia um rosto no ar (fome e marfim dos hospitais
andaluzes); na extremidade do silêncio, ele ouvia a
campainha dos agonizantes. Olhava-nos e nós sentía-
mos a nudez da existência. Velozmente, abria todas
as portas e derramava o vinho sobre o gelo de ama-
nhecer. Depois, a soluçar, mostrava-nos as garrafas
vazias.








antonio gamoneda
livro do frio
(2-o vigilante da neve)
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999







16 setembro 2009

luís quintais / cf






Nos teus lábios a noite
descreve um arco.
É o ciclo da melancolia
que se fecha.
Talvez não regresse.
Por outros sinais
lamentaremos a beleza
que, nos teus lábios,
a noite fez cessar.








luís quintais
lamento
anos 90 e agora
uma antologia da nova poesia portuguesa
por jorge reis-sá
quasi
2001








14 setembro 2009

salvador dali / a conquista do irracional





(Extracto do texto inserto em Edições Surrealistas - 1935)


Em 1935, Dali consagrou a Picasso um poema que reunia todas as suas ideias e premonições sobre a experiência genial daquele que considera como o seu outro pai.




O fenómeno biológico
e dinástico
que constitui o cubismo
de
Picasso
foi
o primeiro grande canibalismo imaginativo
que ultrapassa as ambições experimentais
da física matemática
moderna.

A vida de Picasso
constituirá a base polémica
ainda incompreendida
segundo a qual
a psicologia física
abrirá de novo
uma brecha de carne viva
e de obscuridade
na filosofia.
Visto que por causa
do pensamento materialista
anárquico
e sistemático
de
Picasso
poderemos conhecer fisicamente
experimentalmente
e sem necessidade
as novidades «problemáticas» psicológicas
de sabor kantiano
dos «gestaltistas»
toda a miséria
dos
objectos de consciência
localizados e confortáveis
com os seus infames átomos
as sensações infinitas
e
diplomatas.

Porque o pensamento hipermaterialista
de Picasso
demonstra
que o canibalismo da raça
devora
«a espécie intelectual»
que o vinho regional
compromete
a berguilha familiar
das matemáticas fenornelogistas
do futuro
que existem «figuras estritas»
extrapsicológicas
intermediárias
entre
a gordura imaginativa
e
os idealismos monetários
entre
as aritméticas transfinitas
e as matemáticas sanguinárias
entre a entidade «estrutural»
de um «linguado obsidiante»
e a conduta dos seres vivos
em contacto com o «linguado obsidiante»
porque o linguado em questão
permanece
totalmente alheio
à compreensão
da
teoria gestaltista
já que
essa teoria da figura
estrita
e da estrutura
não possui
meios físicos
que permitam
a análise
nem mesmo
o registo
do comportamento humano
em comparação
com as estruturas
e as figuras
representando-se
objectivamente
como
fisicamente delirantes
pois
não existe
nos nossos dias
que eu saiba
uma física
da psico patologia
uma física da paranóia
o que não poderia ser considerado
senão
como
a base experimental
da próxima
filosofia
da
psico-patologia
da próxima
filosofia da actividade «crítico-paranóica»
a qual um dia
tentarei examinar polemicamente
se tiver tempo
e disposição.









salvador dali
diário de um génio
tradução de josé luís luna
ulisseia
1965








13 setembro 2009

gil t. sousa / ainda que…





8/


ainda que nunca mais anoitecesse e no coração de um pensamento (de um pensamento súbito) cantasse um navio de areia

ainda que na corrente nada voltasse, nada soubesse voltar





gil t. sousa
falso lugar
2004




09 setembro 2009

josep maria llompart / amaram-se, souberam...






Amavam-se, sabei,
vicente aleixandre






Amaram-se; souberam
a urgência do sexo, como as veias
num momento se podem encher de água
salobra, de sol estival, de peixes
voadores.
Escondiam-se
na noite do pinhal ou pelos mornos
cantos de sombra.
Sentiam, fatigados,
o rumor da borrasca ou o longínquo
zumbir da cidade.
Ao acordar pela manhã ela acreditava
sentir no quarto um perfume de rosas,
e ele pensava o primeiro verso
de um poema que afinal nunca escreveu.
As bodas foram muito excitantes.
Têm um filho notário na península
e uma filha com noivo.
São gente a que chamam respeitável.

Regressam a casa ao fim da tarde, vagarosos,
saboreando, cansados, o crepúsculo.
Algumas vezes os olhos se lhes perdem,
com uma ponta de impaciência, entre os ramos
das árvores da rua, como se buscassem
um resto de vigor ou de carícia.
Olham os anos, o céu, as horas
secas,
o relógio e a poeira. Caminham. Calam.









josep maria llompart
(palma de mallorca, 1925)
quinze poetas catalães

trad. egito gonçalves
ed. limiar, porto
1994






08 setembro 2009

arsenii tarkovskii / o verão partiu








O Verão partiu
E nunca devia ter vindo.
Será quente o sol
Mas não pode ser só isto.








arsenii tarkovskii
8 ìcones
versão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987






04 setembro 2009

agustina bessa-luís / saúde






Direi como disse um médico famoso: «O ser humano que matava com uma lança os leões treme hoje com a picada duma mosca.» Isto quer dizer alguma coisa de angustiante, e nós sabemos que a angústia nos mantém em cativeiro. O modo de vida urbano propagou-se à província, o homem levou as suas doenças até ao sertão mais impenetrável, e uma série de maldições pesa sobre a nossa saúde tornada delicada. O sabor do vinho tornou-se venenoso, o sol já não tem o mesmo efeito abrasador e doce na nossa pele; pomos o pé com precaução no solo, desinfectamo-nos antes de dormir e ao acordar.






agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008





01 setembro 2009

josé gomes ferreira / a uma nuvem e a todas as nuvens (1939)






(Li este poema ao Manuel Mendes que
mo pediu para publicar na «Seara Nova».)









O sol abriu em asas
um charco de água podre
e uma nuvem surgiu
no silêncio da tarde.

Mas quem se atreve a ver no céu
um pântano a voar?
Quem procura no coração dos anjos
o sangue do lodo?
Quem tem a coragem de gritar aos deuses:
«Vi-os subir dia terra!»?

Ninguém, ninguém...

Todos te contemplam
como se caísses doutro céu mais longe
para chover nas bocas sequiosas
a esperança do pântano esquecido.
E bradar nos vales das montanhas
a cólera do pântano revoltado.
E molhar até aos ossos
a febre dos mendigos
que desprezam os charcos
mas imploram de joelhos,
num latim de lágrimas,
a tua água atravessada de céu.

Ó homens que chorais
perdidos nos desertos
a abrir sulcos de cobra e vento nas areias
com lágrimas de sede.

Prendei, prendei nos astros
os gritos dos relâmpagos
que não cabem nas bocas
dos homens de joelhos.

Olhai, olhai nas nuvens
as águias orgulhosas
a agonizar silêncio
em olhos de humildade.

Tremei, tremei de medo,
a rezar de mãos-postas
às vossas próprias lágrimas de angústia
com asas de tempestade.

Tapai, cegai o sol
Com mãos de névoa e súplica
para que o mistério do sonho
seja maior do que o homem.

E nas noites misteriosas
com esqueletos de frio
enforcados no luar,
lançai às estrelas
as almas transidas
para aquecê-las
em nuvens de cinzas...
… de rojo no chão sem reparar
que, na terra onde caís
a magoar os joelhos numa prece,
crepita uma chama
funda e sombria...
A sarça ardente das coisas vis
que tudo cria…
A pobre fogueira a arder na lama
que nos aquece...
Enquanto de joelhos,
com os olhos a voarem do corpo,
todos procuram no fumo
a explicação do fogo.

Todos, menos eu!

Eu que nas tardes viris do mundo
só olho para o céu
quando o azul é mais profundo
sem ilusões de nuvens.

E se tenho sede
debruço-me no lodo
para beber com orgulho
a água imunda dos lameiros
que andou pelas estrelas
mas voltou à terra
com o sabor a sangue
de todos os astros.








josé gomes ferreira
poeta militante 1º vol.
moraes editores
1977